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Responsabilidade civil do estado

31 de julho de 2007

Membro do Conselho Editorial e Desembargador aposentado do TJERJ

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No primeiro encontro sobre transporte público que realizamos, começamos a discutir algumas dúvidas surgidas porque ainda não estavam perfeitamente compreendidos os pa-radigmas do novo código. Muitas da-quelas dúvidas desapareceram porque se transformaram em perplexidades, outras foram superadas porque se tornaram um certo consenso. Até porque, surgiram novos fatos sociais, como, por exemplo, o recrudescimento da violência urbana, e isso vai se refletir no tema central de nossa participação, que é a destruição dos ônibus. Além disso, temos também a concorrência predatória do transporte alternativo. Em suma, conseqüências e fatos novos que repercutiram intensamente no serviço de transporte.

O Juiz, hoje, não mais podendo ser apenas o aplicador da lei, a boca da lei e, ao contrário, tendo de ser o verdadeiro solucionador dos conflitos, não pode mais se prender aos códigos. Ele tem de dialogar com todos os segmentos da sociedade para compreender sua realidade social e econômica, e havia muitas dúvidas quanto aos tecnicismos e a estrutura de muitos contratos que vão se tornando cada vez mais relevantes, como, por exemplo, o de seguros.

Já fizemos muitos encontros com os seguimentos das seguradoras, para melhor compreender o tema, e dos transportes. Aliás, uma das perplexidades dos alunos, quando são apresentados aos contratos de transportes em seus
cursos de bacharelado, é a omissão do código de Bevilaqua quanto a esse contrato, perguntando sempre: Como é que um contrato como o de transporte, com sua relevância econômica e social repercutindo diretamente no direito de ir e vir, não mereceu um único e miserável artigo no código civil, que aborda outros contratos de menor incidência como jogo, aposta e etc? A explicação é óbvia: o contrato de transporte é tão complexo e tão diversificado, abrangendo tantas modalidades, que o legislador do passado achou melhor deixá-lo disciplinar por leis especiais.

Então, tínhamos a lei das estradas de ferro, a lei sobre o transporte aéreo, sobre o transporte marítimo. Entretanto,
agora, o novo código resolveu transformar o contrato de transporte em um contrato típico, à luz do direito civil, e estabeleceu suas regras indispensáveis. Claro que não poderia exaurir o tema. Fixou apenas os princípios fundamentais, deixando que, ao redor do código, continuassem gravitando as leis especiais.

Hoje temos uma estrutura jurídica muito mais adequada para a relevância do contrato de transporte. Também não podemos começar a enfrentar o tema sem uma referência inicial à nova ordem jurídica que recepcionamos a partir da Constituição de 88, que provocou um redirecionamento, como eu digo sempre, do eixo filosófico do sistema do direito brasileiro. Nós fomos nos afastando do individualismo e do patrimonialismo, característicos do direito do século XIX, que  tanto influíram no código Bevilaqua, e nos aproximamos da socialidade. No campo da responsabilidade civil, onde essas mudanças foram ainda mais importantes, partimos da culpa em direção à solidariedade e não se pode estudar a responsabilidade civil, senão percebendo os novos paradigmas que oxigenam e inspiram o novo direito privado brasileiro.

O paradigma da função social do direito, colocando-o como um poderoso instrumento de formação de uma sociedade mais justa, mais solidária e mais fraterna, o paradigma da boa fé objetiva que não mais constitui uma simples exortação ética, mas se transforma em um dever jurídico, em uma regra de conduta obrigatória, e o princípio da efetividade do direito, que exige soluções mais adequadas para compor o conflito de interesses e pacificar a sociedade.

Esses novos paradigmas têm uma influência direta sobre a teoria da responsabilidade civil. Nós fomos, nesse caso, nos libertando da velha tradição da teoria subjetiva, ancorada na idéia da culpa, para irmos em direção à teoria objetiva calcada na idéia do risco. Isso é muito importante porque veremos que, no tema que abordaremos, isso será um divisor de águas. Não há a menor dúvida, mesmo um leitor desavisado vai perceber que a evolução da teoria da responsabilidade civil é extraordinária.

Em pouco mais de 200 anos, passamos da culpa à solidariedade e, no campo específico da teoria objetiva, percebemos os avanços do código civil de 2002. Basta citar, por exemplo, o artigo 187, que introduziu uma nova cláusula geral de responsabilidade civil objetiva ao, pela primeira vez e de maneira expressa, equiparar o abuso do direito ao ato ilícito, gerando responsabilidade objetiva. Podemos citar também a questão da responsabilidade pelo fato de outrem que agora, claramente, é classificada pela teoria objetiva.

No código passado, havia uma grande discussão sobre a responsabilidade pelo fato de outro. Discutia-se se ela seria aferida pela teoria da culpa provada ou da culpa presumida ou, até mesmo, pela teoria objetiva diante da ambígua redação dos artigos 1521 e 1523. Entretanto, agora, o novo código diz que essas pessoas que respondem pelo fato de outrem respondem independentemente de culpa. Da mesma maneira,
a responsabilidade pelo fato da coisa, pelo fato dos animais, ruínas de prédios, pelas coisas atiradas do alto de prédios em
lugar indevido, tudo isso agora está claramente localizado no campo da teoria objetiva. A responsabilidade pelo fato do
produto está no artigo 931 do novo código, dizendo que “aqueles que colocam produtos no mercado e que causam
danos a terceiros respondem independentemente de culpa”.

Há até quem entenda que o artigo 931 seria dispensável porque reproduziria um princípio que já estaria consagrado no código de defesa do consumidor, mas é evidente que é importantíssimo o artigo 931, pois amplia a regra da responsabilidade objetiva de quem coloca produtos no mercado e faz com que essa regra se torne independente do direito consumerista. Mesmo que não haja uma relação de consumo típica, quem coloca produtos no mercado agora responde objetivamente, independentemente de ser ou não uma relação de consumo.

Por fim, temos o artigo 927 e seu parágrafo único. Esse então talvez esteja entre os 10 artigos mais importantes do novo código, porque o parágrafo único do artigo 927 é um portão escancarado para que a teoria objetiva invada os territórios em que antes vigorava a teoria da culpa, ou seja, o parágrafo único do artigo 927 estabelece que, quem quer que exerça uma atividade que apresente risco inerente de dano à terceiro, responderá também, independentemente de culpa, ou seja, mesmo na responsabilidade extracontratual, agora, a teoria objetiva passa a dominar.

Foi tão extraordinário o avanço da teoria objetiva que nós hoje podemos dizer, sem exagero, que o que era regra geral no passado, que era a teoria subjetiva, sendo a exceção à teoria do risco, hoje é exatamente o inverso. Hoje a regra geral é a responsabilidade objetiva pela idéia do risco da atividade, do risco-proveito, do risco-administrativo e a exceção passa ser a teoria subjetiva. Isso não é por acaso, é em razão da visão socializante do novo direito voltado para a solidariedade social.

É muito mais importante que se proteja a vítima e não o causador do dano, por isso é muito mais fácil para a vítima obter seu ressarcimento, bastando provar o dano e o nexo causal, alforriando-se do pesado ônus da prova que era de como provar a culpa do autor do dano.

Tudo isso também repercutiu no campo da responsabilidade civil do Estado, sendo aí a repercussão mais surpreendente. Passamos da total irresponsabilidade do Estado, típica dos Estados absolutistas e despóticos em que o rei não podia errar, o Estado não poderia abdicar de sua soberania, sendo acionado pelo cidadão.

Além do mais, poder retirar do Estado recursos para indenizar vítimas de sua atividade poderia inviabilizar suas funções. Então, partimos dessa idéia de responsabilidade do Estado quando a vítima tinha que reclamar a indenização do agente do Estado até o risco integral, quer dizer, da irresponsabilidade ao risco integral. Todos sabemos que foi a partir da constituição de 46 que, finalmente, se consagrou a idéia do risco administrativo, conduzindo a responsabilidade civil do Estado para o campo da responsabilidade objetiva.

Hoje não há a menor dúvida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de que o Estado responde por todos os danos que seus agentes produzirem a terceiros, mas a dificuldade é saber. Este é o tema central da palestra, se ainda resta algum espaço no campo da responsabilidade civil do Estado para teoria subjetiva, ou seja, todos os danos que o particular sofrer serão aferidos à luz do risco administrativo ou, ao contrário, se discutirá ainda a existência de culpa. Sobre esse aspecto, a questão do ato
omissivo, ou seja, a omissão do Estado, nesse particular, três correntes doutrinárias hoje já são percebidas e se digladiam.

Temos uma primeira corrente, liderada por eminentes juristas e respeitados doutrinadores, como Oswaldo Aranha Bandeira de Melo, seguido por seu filho Celso Antonio, no sentido de que, pela conduta omissiva do Estado, o causador não responde objetivamente. Portanto, qualquer dano que resulte na falta do serviço ou na omissão do Estado obrigaria a vítima a provar essa omissão, essa falta de serviço, ao lado dessa teoria que, felizmente, já está afastada pelo entendimento majoritário da doutrina. Surge, então, uma posição conciliatória que já foi referida aqui pelo doutor Juruena, que é a questão dos atos da omissão genérica e da omissão específica.

Entende essa corrente que o Estado responderia objetivamente quando o dano tivesse como causa a omissão do Estado, a falta do agir do Estado, enquanto que, se a omissão fosse genérica, aí sim a responsabilidade seria subjetiva, ou ele não responderia. No entanto, não é sempre fácil distinguir a omissão genérica da omissão específica, por isso, talvez, alguns exemplos da vida urbana possam melhor esclarecer o tema: Vamos imaginar que um motorista bêbado, em uma estrada, atropele e mate um pedestre. Evitar esse dano seria praticamente impossível para o Estado, que não tem recursos suficientes para cada quilômetro da estrada colocar agentes para fiscalizar todos que por ali passem. Nesse caso, não responderia o Estado, mas, se esse mesmo carro dirigido pelo motorista tivesse sido parado pela polícia rodoviária e estes, ainda que percebessem o Estado de embriaguez do motorista, o deixassem seguir viagem, aí sim teríamos um caso de omissão específica.

Vamos também imaginar um veículo com suas lanternas traseiras queimadas e que, com isso, provocou o abalroamento pelo carro que ia imediatamente atrás e não percebeu sua presença à noite. Em princípio, isso seria uma omissão genérica, pois o Estado não poderia prever um acontecimento como este, mas, caso se verifique que esse veículo foi submetido, anteriormente, à vistoria, onde o mesmo deveria ter sido apreendido ou então ser exigido que fossem feitos os reparos devidos, aí sim já seria uma omissão específica.

Um outro exemplo concreto que desaguou no judiciário foi de uma proprietária de um imóvel na praça da bandeira que, em um daqueles temporais de verão, teve seu imóvel invadido pelas águas que se acumularam naquela praça. Se há um temporal inesperado e, com isso, provoca o alagamento das residências ali existentes, isso é entendido como uma omissão genérica, mas, naquele caso específico, a perícia realizada mostrou que o alagamento foi devido, em grande parte, ao entupimento das galerias pluviais que há anos não eram limpas e etc. Por isso, o tribunal condenou o Estado a indenizar a proprietária. Isso dependeria da prudente análise do caso concreto a fim de verificar se o dano decorreu de um dever de agir do Estado que se omitiu, e devido à omissão ocorreu diretamente o dano. Esse seria o segredo da distinção. O Estado deveria agir, mas não agiu, sendo a omissão a causa direta e eficiente do dano. Entretanto, já existe uma terceira corrente que está mais presa ao artigo 927, parágrafo único, daí a importância que lhe foi atribuída.

Há uma corrente, sustentada com grande base doutrinária pelo promotor de Minas Gerais, Roger Aguiar Silva, a qual afirma que hoje o Estado responde objetivamente mesmo nos atos omissivos, independente de ser genérica ou específica. O autor sustenta que, uma interpretação principiológica, e hoje todo o direito moderno é principiológico, se assenta nos valores fundamentais que devem pairar sobre o texto da lei. Nessa interpretação principiológica, portanto, o parágrafo único do artigo 927 se aplicaria também ao Estado, e ele não faz distinção entre omissão e ato omissivo.

Por outro lado, o princípio fundamental hoje que rege a responsabilidade civil é o da solidariedade, então se a atividade do Estado traz benefícios a sociedade, todos os seus membros devem participar, por meio dos impostos pagos, para ressarcir aquele que teve um prejuízo causado por essa atividade do Estado. É ainda uma tese talvez muito avançada, mas tem muito boa sustentação. Claro que não significa como as autoridades do Estado estão preocupadas. Isso jamais significaria um riso integral e evidente de que a teoria do risco administrativo não é risco integral, pois o Estado tem todo o direito de se alforriar do pagamento da indenização, provando um fato capaz de romper o nexo causal, mas, em princípio, pela idéia da solidariedade social, o Estado responderia tanto pela omissão genérica quanto pela omissão especifica.

Chegamos então ao caso do incêndio dos ônibus.

Os que adotam a segunda corrente, que é majoritária, e que ainda fazem a distinção entre a omissão genérica e a específica, diriam que não há o dever de indenizar o Estado, pois isso seria omissão genérica, uma vez que não há como prever o ato predatório de terceiros. Entretanto, os que adotam a terceira corrente certamente dirão que há o dever de indenizar o Estado, ainda que entendessem a situação como uma situação de omissão genérica.

Nós temos que examinar o caso concreto da mesma maneira. Se o fato era previsível, se havia um juntamento da população, uma reação predatória da população, e a autoridade policial, avisada, alertada do risco iminente de uma possível convulsão social, permanece inerte aí, mais uma vez, seria o caso da omissão específica. Parece, fora de qualquer dúvida, para grande alívio do doutor Lelis e de seus companheiros, que não há necessidade, neste caso, de o transportador pagar a indenização. Isso seria tipicamente um fato exclusivo de terceiro que romperia o nexo causal, porque dano causado pelo assalto ao passageiro no curso da viagem deveria ser indenizado pela transportadora. No entanto, por outra circunstância, pela previsibilidade dos fatos, por determinadas linhas, determinados pontos, o assalto seria um fortuito interno, embora, é claro, haja uma grande divergência nesse respeito. Não há incoerência porque existe uma enorme diferença entre um assalto aos passageiros que se limita aos danos patrimoniais e um incêndio provocado em um ônibus por ato criminoso.

Isso realmente extrapola a previsibilidade e o risco inerente da atividade. No caso do incêndio no ônibus – e isso não é um caso isolado –, é absolutamente imprevisível, e o transportador não tem qualquer condição de evitar. Dessa forma, só restaria à vítima suspender suas pretensões indenizatórias contra o Estado e tentar mostrar que essa omissão, no caso concreto, foi específica.

São fatos sociais que agora nos preocupam, frutos dessa violência que caracteriza, infelizmente, nossa vida, e que o judiciário deve, corajosamente, enfrentar, com base, é claro, nas contribuições doutrinárias.