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Responsabilidade Urbanística do Município em Loteamentos

5 de abril de 2002

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No exercício do poder de polícia, a Administração compete o poder­ de ver de agir na forma da Lei. As regras que disciplinam o parcelamento do solo urbano decorrem exata­mente da Lei 6766/79. Trata-se de diploma de magna importância, porquanto diz respeito diretamente a preceito fundamental da Constitui­ção, qual seja, o direito a moradia. Em assim sendo, por força do artigo 40, compete ao Poder Executivo municipal regularizar o loteamento não autorizado, ou executado sem observância das determinações do ate administrativo de licença. Assim agindo, evitara lesão aos padrões de desenvolvimento urbano e defendera os direitos dos adquirentes de lotes.

Na verdade, compete ao Município promover adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, nos termos do artigo 30, VIII, da Constituição Federal. Portanto, ab initio, já configura falha do serviço, a existência de loteamentos clandestinos, porque caracterizam negligencia no exercício do poder de policia.

Entretanto, conforme permissivo contido no artigo 38, da mesma lei, a Prefeitura Municipal poderá promover a notificação do loteador, visando a suspensão dos pagamentos a serem feitos pelos adquirentes, ate a sanação da falta.

Cria-se, portanto, mecanismo jurídico compensatório. Isto é, ante a falha do Serviço de Fiscalização, para que não haja, desde logo, dever de indenizar, nos termos do artigo 37, § 6° da Constituição Federal, abre-se oportunidade para que a Prefeitura faltosa redima seu erro e providencie (ela própria), a urbanização do loteamento e obtenha o reembolso dos gastos, mediante levantamento das prestações depositadas, com os respectivos acréscimos de correção monetária e juros. Estão autorizados novos equipamentos urbanos e ate expropriações para regularizar o loteamento. Permanecendo saldo devedor, poderá a Prefeitura res­sarcir-se diretamente junto ao loteador.

A Lei Magna brasileira contempla, entre os princípios que regem a atividade administrativa, o princípio da eficiência. A Emenda Constitucional 19, de 4 de junho de 1998, introduziu nova redação ao artigo 37 da Constituição Federal. A ênfase dada pelo legislador exsurge desde a abrangência redacional. Se­ria suficiente mencionar: A Administração Pública obedecera aos princípios … Entretanto, quis a Emenda patentear de forma inequívoca que estava se referindo a direta e a indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ao lado de princípios de consagração unânime no Direto Administrativo dos países civilizados, tais como legalidade e publicidade, passou a figurar o princípio da eficiência.

Na verdade, tal principio tão-somente veio a tona. Antes, já estava implícito no sistema, merecendo a mesma respeitabilidade constitucional, a teor do disposto no artigo 5°, § 2°, que proíbe a exclusão dos direitos e garantias decorrentes dos princípios por ela adotados, ainda que implícitos. Com efeito, antes mesmo da novidade principiológica, a indenizabilidade dos prejuízos decorrentes das falhas no Servi­ço Publico já pressupunha a exigência de observância de eficiência na sua prestação.

Todas as normas constitucionais estão mutuamente imbricadas, no dizer sempre oportuna de Celso Bastos, em sua obra Hermenêutica e Interpretação Constitucional, pagina 103. Na verdade, a analise do tema enseja aprofundamento que poderia conduzir aqui a algum desvio, mas o fato é que, estando o município incluído indissoluvelmente na no­ção pétrea de Republica Federativa, seu desempenho, empenha o dever de cumprir a pró­pria Constituição. Conclui-se, portanto, que, sendo os princípios, preceitos fundamentais (por óbvio) seu descumprimento abre ensanchas a argüição preconizada no artigo 102, § 1°, da Constituição Federal.

Em excelente e pioneira monografia sob titulo: “Tratado de Arguição de Preceito Fundamental”, Andre Ramos Tavares considera que Dois são, na verdade, os argumentos que fundamentam a adoção do sentido mais lato de inconstitucionalidade ou descumprimento da Constituição. Assim, alem da possibilidade de qualquer comportamento ser contrario a Carta Constitucional, como ex­posta linhas acima, tem-se que toda a inconstitucionalidade esta nivelada no mesmo patamar, ou seja, não se faz gradação ou mensuração da suposta intensidade de uma inconstitucionalidade eventualmente detectada. Ou há a inconstitucionalidade ou não ha, vale dizer, a inconstitucionalidade é sempre absoluta em sua manifestação. Isso faz com que toda lei, ate normativo ou comportamento praticado em descompasso com a Constituição revista-se da nota da inconstitucionalidade, ainda que essa inconstitucionalidade atinja toda a comunidade (caso da lei geral incompatível com a Constituição) ou apenas um interesse individual (caso de um particular que com seu comportamento nocivo viola direitos fundamentais de outro, ou da Administração Publica, que desconsidere direitos individuais em suas práticas diárias). (Ed. Saraiva, 2001, pag. 170)

Resulta evidente, portanto, que comportamento de agente administrativo enseja a abertura de processo de Arguição, quando descumpre preceito fundamental.

Apesar do disposto no artigo 6° da Constituição Federal, assegurando o direito a moradia, como fundamental, apesar ainda do que vem determinado no artigo 182 do mesmo diploma magno, acerca da política urbana e da necessidade de implantação de Pianos Diretores, o fato é que o tema “loteamentos clandestinos” esta permanentemente na ordem do dia. São ações criminosas que vitimizam milhares de pessoas incautas que, na busca da realização do “sonho da casa própria”, caem nas garras de falsos empreendedores, seduzidas pelas facilidades do parcelamento do preço.

Excluídos os casos extremos de loteamentos em áreas invadidas, existem aqueles implantados em áreas adquiridas, mas sem o preenchimento das exigências legais. A aqui­sição de unidade em “condomínios”, “jardins”, “granjas”, “chácaras”, “esplanadas”, qualquer que seja o belo nome, sem numero da matrícula no Registro de imóveis, só traz transtornos. O adquirente compra, paga, mas não se torna dono, isto é, nunca terá o domínio. Não poderá ter escritura, nem averbar eventual compromisso de compra e venda no Registro de imó­veis.

O cumprimento dos requisitos da Lei 6766/79 não é tarefa fácil. Alem dos requisitos privatisticos, muitos deles elencados na Lei de Registros Públicos, os que nos interessam decorrem das posturas do ordenamento urbano. Vem arroladas na própria Lei ora em exame (art. 6°), merecendo menção: as curvas de nível; indicação dos arruamentos contíguos a todo o perímetro; o tipo de uso predominante a que o loteamento se destina e as características, dimensões e localização das zonas de uso contiguas. Tudo isso é imprescindível para que haja coincidência com o planejamento, incluindo as ruas que compõem o sistema viário da cidade, relacionadas com o loteamento pretendido. Outro dado preocupante, principalmente em São Paulo, que mereceu a atenção do legislador: faixas sanitárias do terreno necessárias ao escoamento das águas pluviais e as faixas não edificáveis. A lei trouxe aperfeiçoamentos ao longevo Decreto 58/37, o qual ainda permanece em vigor em alguns artigos. Dispondo sobre o parcelamento do solo urbano, disciplina a matéria e tipifica crimes, para algumas hipóteses de transgressão. O que se passa, todavia, é que os ladinos “loteadores” atribuem as suas arapucas, a denominação de condomínio fechado. Com isso, tentam inserir-se no regime jurídico da Lei 4591/64, que disciplina condomínio em edificações e incorporações imobiliárias. Na verdade, ha um hiato entre um regime jurídico e outro, o que não passou ao olvido das autoridades policiais e judiciárias, acerca da prodigiosa imaginação dos aproveitadores.

De inicio, verifica-se que conjunto de casas, com edificações justapostas, é uma forma de enganar o adquirente, que fica eterna­mente subscritor de cotas ideais do terreno. Tal mecanismo contravém flagrantemente a confi­guração física. A Lei de Incorporações Imobiliárias adequa-se a sobreposição de moradias, isto é, num terreno são edificados vários pavimentos, cada um com dez apartamentos, por exemplo. É fisicamente impossível dividir como­damente a área. A solução é fácil e contemplada na Lei: faz-se a divisão em frações ideais. Quando, entretanto, as moradias são construídas, uma ao lado da outra, é elementar que cada qual terá o próprio terreno, não havendo necessidade de divisão ideal. A fração é delimitada, cercada e privada. Observados os recuos edilícios, o interessado terá adquirido um terreno, coincidentemente com uma casa. A parte, eventuais dificuldades com os alvarás, entre eles o habite-se, a qualidade dos materiais, o funcionamento das torneiras, o adquirente faz jus a matricula independente, pressupon­do-se, evidentemente que o alienante tenha matricula em seu nome.

Loteamentos pressupõem dois crivos de controle e regulamentação: um municipal, outro registrário, com exigências incrustadas na Lei de regência, e na Lei de Registros Públicos 6015/73. Incorporações Imobiliárias, todavia, pressupõem somente um crivo, qual seja, o registrario, pressupondo-se obviamente, a aprovação da planta e construção com ela consentânea.

Por este motivo, os espertalhões, mesmo edificando unidades justapostas, optam pelo rótulo de condomínio fechado, para contornarem os requisitos de arruamento, destinação de áreas institucionais e submissão as autoridades municipais. Formam-se bolsões habitacionais que agridem elementares preceitos urbanísticos. Evidentemente que o propósito do disfarce conduz também a ganância quanto a ganho imediato, isto e, normalmente os incorporadores incluem entre as clausulas contratuais o dever de pagar condomínio. Entretanto, tal pratica é terminantemente ilegal, isto porque as benfeitorias a serem introduzidas hão de estar incluídas nos custos do empreendimento. Não podem, portanto, permanecer em aberto, para implementação, a medida que o dinheiro for sendo arrecadado.

Nesse sentido, a Egrégia Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo tem claríssimo estudo, emanado do Processo CG 1816/94, com a seguinte ementa: É descabido o repasse, para futuros adquirentes de lotes, do custo das obras de infra-estrutura, necessária para a implantação de loteamento. Não deve ser registrado o parcelamento quando o contrato­ padrão contiver clausulas que repasse para os futuros adquirentes de lotes o custo com as obras de infra-estrutura, que devem ser obrigatoriamente realizadas pelo loteador, ficando ainda claro que o preço dos lotes deve ser certo e determinado, cumprindo que o adquirente possa conhecê-lo previamente, assim como a importância de vida em moeda corrente nacional, ou ainda o prazo, forma e local de pagamento.

Sem que possa ser exigível taxa condominial, mui rapidamente, os muros, que artificiosamente davam aspecto de condomínio fechado, se rompem. Desaparece o que deve­ria ser a portaria, não ha controladores de transeuntes e a área se converte num autentico labirinto, porque não houve observância dos requisitos de arruamento, tais como largura e traçado. Estará vulnerado outro preceito fundamental contemplado na Constituição Federal, qual seja, a função social da propriedade. Cumpre-a a propriedade urbana quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Desaparecem as funções sociais da cidade e o bem­estar de seus habitantes.

Entretanto, se constatado, posteriormente, que o loteamento não esta registrado, nem aprovado pelas autoridades municipais, apesar do documento de compra fazer menção ao regime jurídico da Lei 4591/54, o fato é que ha parcelamento do solo urbano, mesmo que, no local, estejam edificadas muitas casas.

Para os fins do artigo 27, § 1°, da LPSU, terão o mesmo valor de pré-contrato a promessa de cessão, a proposta de compra e reserva de lote ou qualquer outro instrumento, do qual conste a manifestação de vontade das partes, a indicação do lote, o preço e o modo de pagamento, e a promessa de contratar. consequentemente, tem o mesmo alcance contratual, eventual subscrição de cotas, ou mesmo missiva dirigida ao loteador, ainda que sedizente incorporador.

O regime jurídico, portanto, fica definido, ante a realidade fática. Passa-se que, por força do artigo 6° da lei retro mencionada, antes da elaboração do projeto de loteamento, deve ser solicitada a Prefeitura Municipal, a definição das diretrizes para uso do solo e das áreas reservadas para equipamentos urbano e comunitário. Da planta devera constar, pelo menos a demonstração de que a declividade não excede 30%, alem, evidentemente, do títulos de propriedade.

Os vendedores que tentaram escapar das exigências da lei do parcelamento do solo urbano, introduzindo o regime jurídico da lei de incorporações imobiliárias, agiram no vazio, todavia, porquanto a realidade fala mais alto. Seus disfarces ruem rapidamente, porque não se trata de venda de parcelas ideais do terreno. Tampouco de unidades sobrepostas. Ao contrario, as casas são edificadas lado a lado, e os terrenos, nitidamente demarcados. Tentam também impor cobrança de taxa condominial, sem preenchimento de exigências mínimas, sem prestação de contas e sem escolha de representantes, nem aprovação previa de orçamentos.

Os doutrinadores não ignoram tais expedientes. Em exemplar monografia sobre o tema, Arnaldo Rizzado, ensina: “De maneira muito simplista, procura-se, não raramente, implantar loteamento, ou formas assemelhadas, dando-lhe outra configuração jurídica, com o fito básico de afastar as exigências da Lei 6766, não reservando-se, assim, terreno para as áreas verdes, vias e demais equipamentos, e não submetendo-se o proprietário a complexidade do procedimento administrativo e cartorário, que constitui um fator de inibição nas iniciativas de abrir novos loteamentos”. (omissis) “Desde que a situação interna revele a especificação de lotes dimensionados em metragens certas, a atribuição de áreas comuns, espaços para vias e outros equipamentos, não há como não reconhecer um loteamento, ou mesmo um condomínio fechado uma ou outra hipótese demandando os trâmites de acordo com a Lei 6766 ou a Lei 4591/64. (Promessa de Compra e Venda e Parcelamento do Solo Urbano, 5ª Ed., pag. 37).

O instrumento assinado no ate da alie­nação, seja ele qual for, tem plena validez de contrato de promessa de venda, para os fins do artigo 27 da Lei aqui tratada. Isto porque seu parágrafo primeiro, inclui como tal, ate re­serva de lote, ou qualquer outro instrumento. Portanto, ha gritante transgressão a determina­ção do artigo 37, cujo teor veda prometer vender parcela de loteamento não registrado.

A responsabilidade do Município, portanto decorre ex lege competindo-lhe ressarcir todos os prejuízos que o administrado já tiver sofrido, mais os que vier a sofrer.

A policia das construções se efetiva pelo controle técnico funcional da edificação particular, tendo em vista as exigências de segurança, higiene e funcionalidade da obra segundo sua destinação e o ordenamento urbanístico da cidade, expresso nas normas de zoneamento, usa e ocupação do solo urbano”. (Direito Municipal Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, 11ª Edição, Malheiros, pag., 407).

Por força do artigo 159 do Código Civil, aquele que causar prejuízo a outrem, e obrigado a indenizar. Por sua omissão, o Município devera arcar com o ressarcimento dos danos patrimoniais do comprador. Por força, com mais razão, do disposto no artigo 37, § 6°, da Cons­tituição Federal, estará configurada a falha no Serviço Publico, reforçando o dever de indenizar.

A Constituição da Republica dispõe expressamente que: “As pessoas jurídicas de Direito Publico e as de Direito Privado prestadora de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa” (art. 37, § 6°). O exame desse dispositivo revela que o constituinte estabeleceu para todas as entidades estatais e particulares prestadora de serviços públicos a obrigação de indenizar a vitima, independentemente de culpa no evento lesivo. (Direito Municipal Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, 11ª Edição, Malheiros, pag. 407).

Por força do disposto no artigo 40 da Lei 6766/79, esta o munícipe legitimado a compelir o poder publico municipal a agir na defesa de seu direito. Trata-se de poder-dever, de cujo exercício a Administração não pode abrir mão.

Celebrando o contrato de compra nessa situação, vê-se o administrado preso de uma cilada, porque não tem como alienar algo que se apresenta falto de legalidade. Normalmente, o material empregado é de ultima qualidade. Em menos de um ano de uso, as portas já não fecham, ha somente uma fossa séptica para varias casas e o escoamento de água pelo sis­tema hidráulico e precário. A tudo isso, o Municípios mostra-se indiferente, se sua fiscalização for ineficaz, contrariamente ao artigo 37 da Cons­tituição Federal que impõe a observância do principio da eficiência.

O Município poderá ser condenado judicialmente a regularizar o loteamento, tornan­do-o adequado a Lei 6766/79, alem de ser condenado a compor os prejuízos suportados pelo administrado, referentemente ao serviço publico falho e ineficiente, que tiver acarretado o mau negócio, com aquisição de lote irregular e casa sem planta aprovada.