Retorno do voto de qualidade no Carf: um grave erro de prioridades

12 de julho de 2023

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Alvo de críticas ostensivas, o voto duplo, de qualidade, ou de minerva no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), que dá à Fazenda o poder de desempatar os julgamentos de processos administrativos envolvendo a apuração e a cobrança de tributos, teve a sua aplicação afastada pelo art. 19-E da Lei no 10.522/2002, incluído pela Lei no 13.988/2020.

A nova lei prevê que em empates no julgamento de processos administrativos de determinação e exigência de crédito tributário não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9o do art. 25 do Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

Não obstante os esforços dos legisladores que conduziram à nova sistemática, o Governo Federal publicou em 13/1/2023 a Medida Provisória no 1.160/2023, a qual restabeleceu o instituto ao prever no art. 1o que na hipótese de empate na votação no âmbito do Carf, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no § 9o do art. 25 do Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972.

Isto é, de cambulhada, ressuscitou-se o voto de qualidade no Carf, o que levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dois partidos políticos a ajuizarem as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no 7.347/DF e no 7.353/DF no Supremo Tribunal Federal (STF), distribuídas ao Ministro Dias Toffoli.

Em 4/5/2023, a previsível caducidade da MP no 1.160/2023 em 1o/6/2023 levou o Governo Federal a apresentar na Câmara dos Deputados o PL no 2.384/2023 para, dentre outros, restabelecer o voto de qualidade. A proposta tramita em regime de urgência.

Em 3/7/2023, o relator da proposta na Câmara apresentou parecer preliminar pela aprovação da reintrodução do voto de desempate no Carf com uma nova roupagem costurada em negociações entre a OAB e o Ministério da Fazenda, iniciadas após a propositura da ADI no 7.347/DF no STF.

Na linha do acordo, o voto de desempate seria então acompanhado da exclusão de multas e juros de mora em caso de julgamento favorável à Fazenda, bem como do cancelamento da representação fiscal para fins penais.

A despeito das renúncias recíprocas para se atingir uma solução intermediária, o fato objetivo é que o voto de minerva no Carf viola a segurança jurídica, os princípios administrativos republicanos, o devido processo legal e o próprio DNA do órgão, forjado na ideia de paridade entre a Fazenda e o contribuinte, por si só incompatível com o voto duplo da Fazenda.

Nota-se que o PL no 2.384/2023 tem por principal justificativa a alegação de que o modelo paritário provocou a reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários e favoreceu indevidamente o contribuinte, fazendo com que cerca de R$ 59 bilhões, por ano, deixarão de ser recolhidos.

Ocorre que inexiste – por isso não foi apontada na justificativa – a alegada reversão, nem a efetiva perda de receita. Muito pelo contrário, as estatísticas do próprio Carf revelam que a regra não favoreceu os contribuintes, pois houve desempate automaticamente favorável àqueles em apenas 1,3% dos julgamentos entre 2020 e 2022.

Os mesmos dados mostram que no período de aplicação (2020 a 2022) do art. 19-E da Lei no 10.522/2002, a média de julgamentos unânimes subiu de 76,4% (2017 a 2019) para 81,2% (2020 a 2022) ao mesmo tempo em que os julgamentos majoritários caíram de 17,2% (2017 a 2019) para 14,9% (2020 a 2022) e os votos de minerva caíram de 6,4% (2017 a 2019) para 2,6% (2020 a 2022), sugerindo o surgimento de uma postura jurisprudencial que evitava empates que poderiam favorecer automaticamente o contribuinte.

Aliás, muito se discute sobre a finalidade meramente arrecadatória do voto de desempate no Carf, sendo que dados oficiais atualizados até 27/6/2023 mostram que em 2023, desde a vigência da MP no 1.160/2023, 4,8% dos casos foram resolvidos com o voto duplo da Fazenda8, sendo que desses, 94,7% foram desempatados em favor do Fisco.

Tais fatos, per si, refutam a justificativa dada para o retorno do voto de minerva no Carf, mas a questão central é outra: é necessário racionalizar o sistema tributário.

Como se sabe, como sintoma de um ambiente jurídico, fiscal e burocrático truncado, o Brasil possui o maior contencioso tributário judicial e administrativo do planeta, não havendo paralelo em nenhum outro lugar do mundo: em 2018, o contencioso pendente de resolução correspondia a 50,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, equivalente a mais de R$3,4 trilhões; em 2019, correspondia a 75%, equivalente a R$5,44 trilhões. Piorando as perspectivas, o desfecho desses litígios demora em média 18 anos e 11 meses, segundo dados de 2017.

No ranking mundial dos sistemas tributários mais complexos, segundo o Global MNC Tax Complexity Project, integrante do Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG, German Research Foundation), entre os 100 países pesquisados, em 2016 o Brasil ocupava a 100a posição, ou seja, era o País com o sistema tributário mais complexo do mundo. Em 2018, dos 58 países pesquisados, o Brasil estava na 55a posição. E em 2020, entre os 69 países observados, ocupava a 60a posição, estando assim sempre no pântano da mais alta complexidade tributária.

Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que há graves disfunções estruturais inerentes ao sistema tributário e disfunções burocráticas relativas às administrações tributárias no Brasil, com riscos atrelados aos procedimentos necessários ao cumprimento das obrigações tributárias, com impacto negativo no ambiente de negócios e na competitividade das organizações produtivas, gerando potencial de prejudicar o desenvolvimento nacional.

No mesmo ato, o TCU reconheceu que a Receita Federal está sempre a editar grande quantitativo de normas tributárias e a atualizá-las com frequência, o que sabidamente cria riscos afetos aos procedimentos necessários para preparar, declarar e pagar tributos federais, necessitando-se adotar-se medidas para orientar os contribuintes acerca das inovações obrigacionais trazidas por essas normas – o que na prática não acontece.

Na prática, significa dizer que a tarefa de interpretar o intrincado acervo de normas tributárias e honrar os infindáveis encargos é tão arriscada quanto incerto é, ao final, a Fazenda conceder ao contribuinte o carimbo da conformidade tributária.

Inerente à complexidade do sistema e à natural dúvida sobre a correção da exigência ou do montante de tantos tributos a recolher, o peso da carga tributária é um fator de estímulo ao litígio, pois força o exaurido contribuinte a buscar alívios contra a expropriação excessiva do seu patrimônio. Afinal, como Padre Antônio Vieira afirmou em um de seus sermões, o maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados tributos.

Ou seja, o alto grau de litígio não é a causa, mas, sim, o sintoma de uma realidade causada pela legislação e pela própria administração tributária e fiscal, criadoras de um ambiente hostil para o contribuinte e para o setor produtivo.

Eis que as justificativas do PL no 2.384/2023, assim como da MP no 1.160/2023, são genéricas, rasas e ignoram a necessidade premente de uma profunda reforma do sistema, que pressupõe, por sua vez, uma transformação de mentalidade sobre a solidariedade tributária, sobre a burocracia, sobre as dinâmicas comerciais, sobre a geração de riqueza e sobre o peso da carga fiscal, valendo lembrar que, conforme Ludwig von Mises, renomado economista liberal, a nação mais próspera será aquela que não tiver colocado obstáculos ao espírito da livre empresa e da iniciativa privada16, fato amplamente demonstrado em 2018 pelo Índice da Heritage Foundation após mais de duas décadas de estudos sobre o nível de liberdade econômica das nações e dos seus resultados de longo prazo.

Com efeito, a discussão sobre o voto de desempate é infrutífera e míope, uma vez que erra gravemente na avaliação das prioridades e trata (e muito mal) tão somente o sintoma (litígio), ignorando-se completamente a necessidade de racionalização do sistema tributário, deixando assim de sanar os reais entraves para o crescimento econômico do País e para o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no art. 3o da Constituição Federal.