O estado de crise quase sempre esteve presente na realidade dos clubes de futebol no Brasil. Nesse contexto, como se sabe, são raríssimos os clubes que não convivem com um passivo milionário, consequência de administrações amadoras e/ou imprudentes, com receitas penhoradas ou bloqueadas para satisfazer credores trabalhistas, cíveis ou fiscais, ausência de responsabilidade dos dirigentes e, com efeito, capacidade de pagamento, investimento e reestruturação praticamente inexistentes em razão da pouca ou nenhuma segurança jurídica para novos investidores.
Em síntese, grande parte dos clubes de futebol brasileiros, organizados, historicamente e predominantemente, sob o regime associativo (sem fins lucrativos), no qual ‘tudo é de todos e nada é de ninguém’, possuem muito mais dívidas do que receitas para saldá-las, não havendo, assim, qualquer perspectiva efetiva de geração de caixa futuro, dependendo de tempos em tempos de inúmeras e recorrentes (des)medidas emergenciais do Estado para resgate essas entidades. O futebol brasileiro sempre viveu e ainda vive uma realidade marcada por atrasos salariais de funcionários e atletas, descumprimento de direitos, não pagamento de impostos e total ausência de responsabilidade dos gestores.
A mais recente crise econômico-financeira dos clubes de futebol, obviamente, foi provocada pela interrupção abrupta das atividades decorrente da pandemia de covid-19. Assim como em praticamente todos os setores da economia, a crise sanitária impôs uma série de medidas restritivas que atingiram em cheio as atividades desportivas, particularmente o futebol, que depende da disputa constante de campeonatos para auferir receita corrente (bilheteria, cotas de patrocínio, programas de sócio torcedor, cotas de transmissão, etc.) para saldar obrigações de curto e médio prazos.
Nesse sentido, e independente dessa última crise, o Congresso Nacional já vinha trabalhando há alguns anos para criação de um arcabouço legislativo que pudesse atacar, de forma definitiva, os fatores que levaram e levam o nosso futebol ao colapso econômico-financeiro que, inevitavelmente, apresenta reflexo direto nos resultados desportivos. Abre-se aqui um parêntese para destacar que o sistema associativo não pode ser considerado como o único e exclusivo fator que gerou todos os problemas apontados, mas, certamente, é um dos principais motivos, tendo em vista o ganho de importância econômica desta atividade e, via de consequência, o inevitável incremento de complexidade na gestão dessas entidades, que não mais suporta administrações amadoras, a exemplo do que normalmente ocorre nas associações civis sem fins econômicos/lucrativos.
Os critérios políticos de escolha dos dirigentes das associações e a pouca regulamentação de suas atividades contribuem significativamente para aumentar a gravidade da situação financeira dos clubes de futebol. É prática mais comum do que deveria ser, infelizmente, o dirigente amador/torcedor se preocupar apenas em gastar para a montagem de elencos capazes de conquistar títulos, deixando ainda mais dívidas para seu sucessor e assim por diante.
Infelizmente, os atuais dispositivos do Código Civil aplicáveis às associações não cuidam de tais temas, dada sua finalidade não econômica. E os dispositivos específicos da legislação esportiva também não foram capazes de mudar esse cenário em favor do saneamento das finanças dos clubes, agravando a crise técnica (os clubes vendem jogadores cada vez mais novos para saldar obrigações básicas – luz, água, impostos, etc.) e financeira do futebol brasileiro.
Salvo algumas raras exceções que, por esforços próprios, fizeram o seu dever de casa e hoje têm, por ora, situação econômica privilegiada, é possível afirmar que a grande maioria dos clubes de futebol das séries A e B, que já não apresentavam viabilidade antes da crise mais recente, se tornaram ou tornar-se-ão completamente inviáveis se essa realidade não fosse profundamente alterada.
Ainda assim, mesmo considerando todo esse contexto insustentável, pergunta-se: Qual é a verdadeira relevância dos clubes de futebol, a ponto de merecer uma lei específica para estimular a transformação dos clubes associativos em sociedades empresárias?
Sem falar do que o futebol representa para o nosso País em termos de cultura, lazer e paixão, a principal resposta a essa pergunta é o grande impacto socioeconômico que esse esporte pode gerar. A Fundação Getúlio Vargas (FGV), no estudo “Mensuração Sócio Econômica e Financeira do Futebol Brasileiro”, estimou que se os clubes no Brasil fossem mais bem organizados e menos endividados, a participação no Produto Interno Bruto (PIB) que hoje representa 0,7% passaria a ser de 1,2%, em menos de uma década, e o número de postos de trabalho gerados, que hoje gira em torno de 370 mil, ultrapassaria a casa dos dois milhões de novos empregos diretos e indiretos.
Além disso, a situação econômica do País, piorada em larga escala pela recente pandemia, com reflexos sentidos não apenas no Brasil, como no mundo todo, não permite mais que o Estado promova soluções paliativas de tempos em tempos (Ex. Profut, Atos de Concentração Trabalhista, Timemania, etc.), sem que não haja praticamente nenhuma mudança na realidade administrativa e organizacional dessas entidades.
Nesse contexto, após o impulso criado pelo Deputado Federal Pedro Paulo (PSD-RJ), ao relatar e aprovar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.082/2016 (Clube-Empresa), o Projeto de Lei nº 5.516/2019, proposto pelo Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e relatado pelo Senador Carlos Portinho (PL-RJ), foi aprovado nas duas casas legislativas, transformando-se na Lei nº 14.193, promulgada em 6/8/2021 e publicada no Diário Oficial da União em 9/8/2021, ficando popularmente conhecida como a Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Não há dúvidas de que Lei nº 14.193/2021 representou um avanço significativo em relação ao modelo associativo centenário das agremiações de futebol brasileiras, especialmente sob a ótica da atração de novos investidores que, consequentemente, de forma positiva e reflexa, faz aumentar a taxa de recuperação de créditos perante essas entidades. Este novo arcabouço jurídico, fundado nos propósitos de (i) resgatar atividades economicamente viáveis e importantes para o Brasil; e (ii) permitir com que essas entidades fossem, de uma vez por todas, melhor geridas (gestão profissional típica das atividades empresárias) trouxe dois aspectos importantes para qualquer decisão de investimento, que são a previsibilidade e a segurança jurídica, a partir de um arcabouço legal definido, mensurável, pelo qual se consegue saber, claramente, quais são os incentivos econômicos que estão dispostos em cada clube que se está analisando. E que permite, portanto, sem mencionar o ganho de desempenho desportivos dessas entidades, o entendimento do futebol como negócio que é, que cria empregos, apresenta racionalidade econômica e gera valor para o País.
A Lei da SAF tratou, dentre tantos temas, de (i) um novo modelo societário (SAFs), com aplicação subsidiária da Lei nº 6.404/1976; (ii) formas de transformação do sistema associativo para o empresarial (transformação stricto sensu, cisão ou constituição de uma nova sociedade por iniciativa de pessoa natural, jurídica ou fundo de investimento); (iii) regras de compliance aplicáveis às entidades desportivas organizadas como sociedades empresárias; (iv) novo regime fiscal; e (v) alternativas quanto à possibilidade de organizar e ordenar os passivos de uma associação que desenvolve atividade econômica, de um jeito tal que consiga despertar o interesse de investidores qualificados e, paralelamente, satisfazer os direitos dos credores por meio de mecanismos objetivos de transferência de receitas das SAFs para pagamento das dívidas do passado (regime centralizado de execuções, recuperação judicial e extrajudicial).
Quanto a este último aspecto, graças à capacidade de novo ordenamento das dívidas, é legítimo destravar processos que estão engavetados nos clubes brasileiros, sejam projetos de novos aportes (novos investidores), como também de real estate para melhor utilização dos estádios disponíveis, investimentos em novas receitas como criptoativos e aplicação de recursos nas categorias de base para aperfeiçoar a qualidade técnica e a formação social das novas revelações.
Ao constituir a Sociedade Anônima do Futebol, que deve ser gerida com a racionalidade de uma empresa, contando com uma governança profissional, um sistema de compliance específico para o futebol, espera-se alcançar um nível de desenvolvimento mais elevado do que o existente atualmente, deixando de ser normalizadas situações relacionadas a calotes de dívidas, longos atrasos salariais e pouco ou nenhum recolhimento de impostos.
Diante de todo esse contexto (entidades centenárias, dívidas, importância econômica, atração de investidores, tudo isso misturado a muita paixão), ao desenhar o conjunto de dispositivos legais que acompanhariam a SAF, o legislador adotou diversos entendimentos que fogem, em certa medida, à interpretação comum das regras jurídicas, tanto na seara societária/empresarial quanto na trabalhista, tributária e recuperacional. Esse contexto tem desafiado os tribunais e operadores do Direito de forma geral a intensificarem os debates com o objetivo de alcançar a melhor interpretação da norma, de forma a garantir previsibilidade e segurança jurídica para todas as partes envolvidas nesse processo de transformação e modernização do futebol brasileiro.
O adequado entendimento e interpretação da Lei nº 14.193/2021, especialmente sob a ótica da preservação da atividade e, simultaneamente, da proteção dos credores atingidos por eventual transformação do clube associativo em empresa, exigirá dos operadores do Direito uma integral compreensão dos objetivos do legislador, considerando os mecanismos de estímulos e proteções dispostos na referida legislação, além da aplicação, na exatidão, de alguns dispositivos, na medida em que se trata de norma especial e lógica, pensada para a efetivação do objetivo de transição, modernização, profissionalização e desenvolvimento dos clubes de futebol.
Sem dúvidas, em que pese a necessidade de aprimoramento constante e ajustes futuros, comum em qualquer legislação, a Lei da SAF representa um novo marco para o futebol brasileiro, a não mais depender de ações emergenciais do Estado, explorando assim todo o seu potencial como verdadeira atividade econômica que é.