Edição

Segurança jurídica da atuação da autoridade monetária

31 de agosto de 2011

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Nota do Conselho Editorial

Segurança jurídica é sinônimo de confiança na Justiça, ou seja, em um Sistema Judiciário sério, justo e confiável.

A confiança no Sistema Judiciário representa a garantia de uma justa e equitativa decisão em caso de divergência ou conflito entre as partes contratantes, sejam elas privadas ou públicas. No nosso caso, essa confiança é parte integrante do “Risco Brasil”, segundo o qual se mede o preço (juros) que o País habitualmente paga para levantar empréstimos, seja no mercado interno, seja no mercado internacional. Ao que se sabe, a segurança jurídica é o primeiro item nas considerações do investidor estrangeiro.

O “Risco País” pode ser influenciado por vários fatores, destacando-se a  capacidade de resgatar suas dívidas, o que depende, naturalmente, da situação fiscal do Governo, da dívida externa, do equilíbrio do balanço de pagamentos, do nível das reservas cambiais, enfim, da liquidez e capacidade de amortizar suas dívidas e efetuar, regularmente, o pagamento dos juros devidos. Em resumo, o “Risco País” é sinônimo do “Risco Soberano”.

No conjunto, como assinalado, esses riscos significam o potencial de ocorrência de um default da dívida, uma moratória no pagamento do principal ou dos juros.

Do ponto de vista das relações contratuais entre empresas privadas, esses mesmos riscos existem e como podem resultar em conflito de interesses, digamos entre uma parte nacional e uma estrangeira, torna-se fundamental a questão da segurança jurídica.

Um exemplo claro de sentimento de segurança jurídica pode ser encontrado no sistema financeiro brasileiro, no qual prevalecem normas e regulamentos transparentes, baixados em estreita observância dos mandamentos legais. Os bancos estrangeiros, autorizados a operar no Brasil, sentem-se em absoluta confiança em relação ao Banco Central, porque sabem que o BC atua estritamente dentro dos princípios constitucionais.

Como é fácil perceber, a segurança jurídica varia de país a país, e não é a mesma nos Estados Unidos ou na Venezuela, na União Europeia ou na Rússia, no Japão ou na China, no Brasil ou na Argentina. Do ponto de vista da segurança jurídica, o Brasil é um dos países mais confiáveis.

Por essa razão, aplaudimos o presente artigo.
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Quando nos propusemos a escrever sobre a segurança jurídica e sua relevância para a atuação da autoridade monetária, tínhamos em mente, em especial, questões práticas que há muito ocupam a pauta dos reguladores de distintos segmentos da economia, como resultado da progressiva racionalização da burocracia estatal, desde o advento do Estado moderno. Segurança jurídica, nesse contexto, costuma ser entendida sob a perspectiva do que os economistas denominam de “risco legal” dos atos do regulador, ou seja, o risco de que tais atos venham a ser inquinados de ilegais pelos órgãos de controle interno e externo e pelo Poder Judiciário, com manifestos prejuízos para a execução das políticas públicas.

Essa temática nos traz a lembrança de lição extraída da obra de importante constitucionalista português, que reforça a nossa convicção na relevância do intercâmbio constante entre as ciências da Economia e do Direito: “O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas.”[1]

Permita-nos o leitor, pois, compartilhar brevemente as nossas conclusões sobre tão importante temática. Ao falarmos na segurança jurídica dos atos do regulador do sistema financeiro, referimo-nos a predicado de tais atos que apresenta duas facetas, uma objetiva e uma subjetiva. Por um lado, os atos praticados pela autoridade monetária necessitam ser efetivos, de modo a influenciar (objetivamente) variáveis micro e macroeconômicas, em consonância com as políticas públicas governamentais. Por outro lado, os atos do regulador influenciam projetos, interesses e direitos de particulares, exercendo, por conseguinte, efeitos (subjetivos) sobre as expectativas dos agentes econômicos. Trata-se, naturalmente, de aspectos de um único fenômeno (faces da mesma moeda, por assim dizer), cuja cisão é justificada unicamente por propósitos analíticos.

Ainda que acadêmica na essência, essa constatação tem aplicações práticas evidentes, pois prestigia, simultaneamente, a racionalidade estratégica na atuação da autoridade monetária e a esfera de desenvolvimento autônomo da personalidade de cada indivíduo. Verifica-se, destarte, que o regulador do sistema financeiro apenas pode atuar após se certificar de que seus atos – sejam normas, processos administrativos, intervenções em mercado, práticas de negócio, sanções – conformam-se aos princípios e regras legitimamente consagrados por nosso ordenamento jurídico.

A segurança jurídica constitui, antes de tudo, atributo fundamental de qualquer regime republicano e democrático. Os cidadãos devem conhecer com antecedência as normas a que se sujeitam, as quais, a seu turno, devem resultar de procedimentos legislativos e regulamentares estabelecidos em consonância com a Constituição e as leis. Entendemos que os procedimentos legislativos se revelam legítimos quando asseguram aos cidadãos não apenas a capacidade de eleger representantes, mas igualmente a oportunidade de influenciar com suas opiniões a elaboração das leis, além de fiscalizar sua execução. A seu turno, as normas regulamentares mostram-se legítimas quando sua produção atende aos preceitos materiais e procedimentais veiculados pela Constituição e pelas leis.

Nesse contexto, a atividade do Banco Central encontra-se confinada em balizas legais precisas, que expõem os interesses públicos que devem pautar a atuação da autoridade monetária, além das vedações a que se sujeita e das regras e procedimentos aplicáveis à edição de normas, à intervenção em mercado, ao exercício da supervisão e ao restante de suas atribuições legais. O Banco Central do Brasil, ciente de suas responsabilidades econômicas e sociais, busca contribuir para a legitimidade de suas decisões com os instrumentos que a ordem jurídica põe a sua disposição, cabendo mencionar, dentre outros: a divulgação de relatórios e a publicação tempestiva de dados; a prestação de contas ao Parlamento, ao Governo e à sociedade civil; a condução da supervisão em estrita conformidade com os princípios constitucionais; a realização de consultas públicas sobre projetos de normas; a sujeição a auditorias interna e externa; a manutenção de um canal de comunicação para o recebimento de denúncias e reclamações; a participação ativa em diversos foros internacionais. Tais medidas contribuem para que as atividades regulatória, interventora e supervisora do Banco Central do Brasil atendam aos preceitos legais pertinentes e levem em consideração informações e opiniões oriundas de distintas fontes, revelando-se, nesse sentido, juridicamente seguras.

Não acaba aí, entretanto, a importância da segurança jurídica para a atividade da autoridade monetária. A literatura econômica costuma frisar o destacado papel das expectativas dos agentes de mercado para a condução adequada da política econômica. Ao influenciar as expectativas individuais na linha dos objetivos e das metas governamentais, o Banco Central aumenta a eficiência dos instrumentos que a lei põe à sua disposição para concretizar os interesses públicos na estabilidade monetária e na estabilidade financeira. A segurança jurídica da atuação da autoridade monetária desempenha, aqui, papel relevantíssimo. Dúvidas acerca da constitucionalidade e da legalidade do arcabouço regulatório aplicável às intervenções em mercado podem influenciar negativamente as expectativas dos agentes econômicos, reduzindo a eficácia das operações do Banco Central.

Essa afirmação pode ser aclarada com um exemplo. Suponhamos que o Banco Central empregue, em deter­minadas intervenções em mercado, uma modalidade de contrato cuja legalidade é publicamente contestada (por exemplo, mediante procedimento instaurado por órgão de controle externo). A depender do grau de incerteza entre os agentes de mercado, pode-se cogitar que as contrapartes do Banco Central passem a demandar remunerações maiores, para fazer face ao risco legal de que os negócios sejam anulados, o que redunda em maior dispêndio de recursos públicos. Seria concebível, inclusive, que os agentes econômicos evitassem contratar com a autoridade monetária, com a consequência de que o instrumento negocial em apreço ver-se-ia despido da capacidade de influenciar as variáveis econômicas no sentido almejado. Percebem-se facilmente, nesse exemplo, os efeitos danosos que a insegurança jurídica pode acarretar para a boa condução da política econômica.

Situação semelhante pode ocorrer com a edição de normas pelo Banco Central, a exemplo de regras prudenciais dirigidas às instituições integrantes do sistema financeiro. Dúvidas a respeito da conformidade de tais normas à Constituição e às leis podem levar seus destinatários a questioná-las administrativa ou judicialmente ou, talvez, simplesmente descumpri-las. Esses percalços, a par de reduzirem a eficácia das normas impugnadas, com possíveis riscos para a solidez do sistema financeiro, conduzem a desnecessários dispêndios de recursos, relacionados à instauração de processos administrativos punitivos e à judicialização de conflitos.

Correndo o risco de enfastiar o leitor, permitimo-nos apresentar mais um exemplo da relevância da segurança jurídica para a atuação do supervisor do sistema financeiro. As sanções cominadas pela entidade supervisora, após regular transcurso de processo administrativo, devem ser efetivamente impostas aos infratores, pois, do contrário, ver-se-ia diminuída a eficiência da atividade de fiscalização. Afinal de contas, se os agentes econômicos supõem que as penalidades fixadas pelo Banco Central não serão de fato aplicadas – é dizer, se confiam na impunidade –, surge para alguns deles o estímulo para descumprir as normas dirigidas ao sistema financeiro. É patente, assim, que deve haver segurança jurídica não apenas quanto à possibilidade de sancionar quem viole determinados preceitos administrativos, mas também a respeito da efetiva imposição de penalidades, com os consequentes aumento do estímulo ao cumprimento das normas postas pelo Banco Central e redução dos dispêndios com a instauração de procedimentos administrativos punitivos.

Não temos dúvidas de que a problemática a que fazemos referência merece estudos mais aprofundados. Contudo, diante dos propósitos do presente documento, limitamo-nos a dedicar estas breves linhas para frisar que a segurança jurídica dos atos do Banco Central, nos seus papéis de regulação, supervisão e intervenção na ordem econômica, justifica-se, primeiramente, por consistir em imperativo republicano de respeito aos direitos individuais e, ademais, por aumentar a racionalidade e a eficiência da atuação da autoridade monetária. Segurança jurídica não se confunde, portanto, com o mero controle de riscos legais. Riscos podem ser tolerados em maior ou menor medida, a depender de suas dimensões e do apetite de cada indivíduo para tolerar as consequências de eventos futuros e incertos. Com a legalidade, entretanto, não se pode transigir. Trata-se de princípio fundamental do Estado de Direito e pressuposto inarredável da atividade administrativa racional.



[1] O excerto provém de CANOTILHO, J. J. Gomes.  Direito Constitucional e Teoria da Constituição.  2ª ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 250.