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Seminário coloca em debate a subtração internacional de crianças

20 de fevereiro de 2018

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Realizado em 4 de dezembro, no auditório do Conselho da Justiça Federal (CJF), em ­Brasília, o seminário “Subtração Internacional de Menores” reuniu um público formado por magistrados, membros do Ministério Público, procuradores, defensores públicos, advogados, servidores e estudantes com interesse na matéria.

O evento, cujo objetivo foi propiciar a interpretação e a aplicação efetiva das convenções internacionais elaboradas no âmbito da Conferência da Haia no que se refere à subtração internacional de menores, teve coordenação geral do ministro Raul Araújo, corregedor-geral da Justiça Federal e diretor do Centro de Estudos Judiciários do CJF. Ao se pronunciar, o ministro ressaltou a importância do tema, segundo ele, um dos mais sensíveis no Brasil e no mundo. “A maioria dos casais, quando do desfazimento de suas uniões, infelizmente, não cuida de excluir de seus conflitos os filhos, que acabam muitas vezes traumatizados, resultando, em alguns casos, até em subtração internacional de menores”, avaliou.

A mesa de abertura foi formada pelo ministro Humberto Martins, vice-presidente do Superior ­Tribunal de Justiça (STJ) e do CJF; o também ministro do STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva, coordenador científico do seminário, ao lado da desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1). Completaram a mesa Roberto ­Carvalho Veloso, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe); Carlos Eduardo Barbosa Paz, Defensor Público-Geral Federal; Ignacio Goicoechea, oficial de Ligação da Conferência da Haia para a América Latina; e Felipe Sarmento, secretário Geral do Conselho Federal da OAB-Nacional.

Ao dar início ao programa, o ministro Humberto Martins explicou que a Convenção da Haia, de 1980, sob os aspectos civis do sequestro internacional de crianças e, também, a Convenção Interamericana, de 1989, sobre a restituição internacional de menores, “são tratados que têm por objetivo proteger o bem estar, a garantia e a proteção de crianças em situação de ruptura familiar e que foram deslocadas de forma abrupta de seus países de residência habitual, ou que estejam sendo retidas sem autorização de um dos pais em outro país, buscando retorno imediato e ­seguro do menor ao país de residência habitual”. De acordo com o ministro, o sequestro internacional de crianças é um debate que polariza as discussões no cenário jurídico nacional e internacional, pois envolve questões familiares de extrema relevância para a ­sociedade, afetando de forma direta as crianças e os adolescentes que são retirados do convívio da pessoa que tem a sua guarda legal.

Um dos coordenadores científicos do seminário, o ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva, em seu pronunciamento, tratou da relevância da discussão do tema da subtração internacional. “Esse evento tem importância bastante singular porque marca, talvez, o ponto de inflexão na interpretação e na aplicação da Convenção de Haia. Como sabemos, este é um instrumento de cooperação internacional, de caráter processual, e tem por finalidade assegurar o retorno de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado contratante, ou que neles estejam retidas ­indevidamente”. Ainda na opinião do ministro, os Estados devem se valer de procedimentos de urgência, que são descritos em todos os guias de boas práticas. “Um dos princípios-chaves é a celeridade na aplicação da Convenção”, enfatizou.

Ele ainda lembrou que, no ano de implementação da Convenção, importantes passos foram tomados pelo Brasil, como o aumento no rigor do controle de saída de crianças nas fronteiras do País, ainda que estas estejam acompanhadas de seus pais ou responsáveis. “Esse tipo de cuidado não se verifica em muitos países. Além ­disso, aqui existe assistência judiciária gratuita, o que também acontece em muitas localidades”.

Para a desembargadora Mônica Sifuentes, do TRF-1, também coordenadora científica, a questão da resolução dos casos no menor tempo possível deve ser priorizada, a fim de evitar desgastes psicológicos decorrentes do estabelecimento de vínculos afetivos. “O Brasil ainda, infelizmente, não conseguiu alcançar o tempo ideal para cumprimento dessa convenção, de modo a atingir o melhor interesse da criança”, afirmou. A magistrada também indicou como um dos pontos nevrálgicos da aplicação da Convenção no Brasil o treinamento dos juízes e operadores do Direito para melhor conhecimento desse instrumento. “Por isso a necessidade cada vez maior da realização de seminários como este. Quanto mais a convenção for divulgada, quanto mais todos se tornem conscientes de sua importância, mais aptos estarão a atuar e mais rápido será o comprimento desta Convenção”.

A conferência de abertura, presidida pelo ministro do STJ, Gurgel de Faria, foi proferida por Mary ­Sheffield, juíza membro da Rede Internacional de Juízes da Haia, nos Estados Unidos. Em seu pronunciamento, a magistrada explicou que a Convenção define o prazo de seis semanas para que haja uma decisão final, para minimizar os danos psicológicos que a criança sofre com tal situação, porém, afirmou que o uso excessivo de recursos judiciais para protelar o retorno da criança dificulta o processo de readaptação no país de origem. Sheffield ressaltou, ainda, os problemas que decorrem da demora em resolver essas pendências judiciais e os reflexos que são acarretados nas crianças e em seus pais – ainda que sejam apenas seis semanas, como ­estipula a Convenção, as mudanças nas crianças podem ser enormes, segundo ela.

A magistrada também revelou que os casos de subtração internacional de crianças são mais comuns do que se imagina, com cerca de 10 mil registros por ano. “Como juíza, observo que os casos de custódia de menores são bastante delicados, pois a decisão do tribunal vai trazer impactos para toda a vida da criança. Daí a necessidade de um arcabouço legal para a resolução dos processos de forma rápida”, declarou.

O painel inicial do evento teve como tema “Responsabilidade Internacional do Brasil no cumprimento da CH80” e foi presidido pelo ministro do STJ, Og ­Fernandes. A primeira a se apresentar foi a Coordenadora do Núcleo de Subtração Internacional de Crianças da Autoridade Central Administrativa ­Federal (ACAF), Lalisa Froeder Dittrich. Ela focou sua palestra na explicação do real papel da instituição que representa. ­“Ouvimos muito que, como Autoridade Central, nossa principal preocupação é cumprir um tratado a ­qualquer custo; que estaríamos mais preocupados com a imagem que o Brasil está passando para os outros países do que com a própria situação da família e da criança brasileira. Eu gostaria de reafirmar que somos movidos pela ­responsabilidade que temos em relação a essas famílias e crianças, independentemente de nacionalidade. ­Nossa experiência nos mostra que a beleza dessa Convenção é justamente aproximar as pessoas, nos colocarmos no lugar de quem teve um filho subtraído e tentamos ajudar essa pessoa”, declarou.

Na sequência, apresentou-se Ignacio Goicoechea, oficial de Ligação da Conferência da Haia para a América Latina. “Estou à frente da aplicação do ­convênio a respeito da Convenção de Haia na América Latina há pelo menos 25 anos. Espero que este evento possa acelerar a evolução que temos alcançado”. O ­palestrante fez uma abordagem de diversas Convenções internacionais e legislações que asseguram os direitos das crianças em todo o mundo, também reforçando a questão da necessidade de eliminar a demora na ­aplicação da Convenção.

Para Fernanda Menezes Pereira, coordenadora de Controvérsias de Direito Internacional da Advocacia Geral da União (AGU), a grande questão que se deve ter atenção é a responsabilidade que tem o Brasil de implementar medidas que tornem efetivas as normas da Convenção, uma vez que esta tem sua importância embasada no fato de estabelecer normas claras e ­objetivas em situações que envolvem mais de um Estado. “É importante ressaltar que, quando se trata de direito internacional, muitas vezes esse viés preventivo é mais relevante que o repressivo. Porque tanto se pode presumir que ambos os Estados têm interesse no cumprimento da Convenção, como muitas vezes a ­penalização não permite que se alcance o real objetivo almejado”, declarou.

O painel foi encerrado com a apresentação de ­Nádia de Araújo, professora de Direito Internacional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). De acordo com a doutora, a Convenção foi feita em uma época em que esse problema da saída unilateral da criança não contava com nenhum ­instrumento senão aqueles da cooperação internacional clássica, e que obviamente não atendiam aos reclamos dessas situações. “Agora, quase 40 anos depois, outros pontos passaram a ficar em evidência. A Convenção tem o papel importantíssimo de prevenção. Então, à medida que a percepção sobre este instrumento foi ampliada, e considerando o aumento da movimentação entre as pessoas dos diversos países, temos, em certa medida, menos casos de subtração internacional”, avaliou.

Renata Bento, psicanalista e perita em Vara de Família

Retorno e direito de visita
O segundo painel do seminário tratou da “Obrigação de retorno imediato da criança – as exceções do art. 13, b, da Convenção da Haia de 1980”, sendo presidido pelo ministro do STJ, Napoleão Nunes Maia. Como palestrantes, apresentaram-se Kássio Nunes Marques, desembargador Federal do TRF-1; e Denise Neves Abade, Procuradora Regional da ­República-SP e Secretária Adjunta de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República.

“O direito de visitas e boas práticas na agilização do cumprimento da Convenção da Haia de 1980” foi o foco do terceiro e último painel, sob presidência de Mauro Campbell Marques, ministro do STJ. Os palestrantes foram Guilherme Calmon, desembargador Federal do TRF da 2a Região; Natalia Camba Martins, advogada da União, Categoria Especial e Coordenadoria Geral da ACAF; Henrique Jorge Dantas da Cruz, Juiz Federal da Seção Judiciária do Pará; e Renata Bento, psicóloga, psicanalista e perita em Vara de Família.

O desembargador Guilherme Calmon destacou em sua exposição que, ao tratar dos casos, “é preciso distinguir o direito de visita estabelecido na Convenção do direito de visita do Código Civil brasileiro”. Por sua vez, a advogada da União, Natalia Martins, ressaltou que o direito do menor à convivência familiar ampla sempre deve ser priorizada na regulamentação do direito de acesso (visitas transnacionais). Já a psicanalista e perita em Vara de Família Renata Bento iniciou sua explanação com um convite à reflexão sobre a utilização do termo “direito de visitas” já ter sido substituído por “direito à convivência”, uma vez que “pai e mãe não devem ser considerados visita”. A especialista apresentou recortes de situações periciais que fazem parte do cotidiano dos estudos psicológicos de crianças envolvidas em litígio de seus pais onde revelam profundo sofrimento emocional, em alguns casos, alienação parental. “Todo processo ­judicial onde há disputa pelo menor, é traumático para o infante”.

A psicanalista sugere atenção para a diferença entre conjugalidade e parentalidade; a primeira pode ser rompida, a segunda é para sempre. Nos processos ­judiciais observa-se confusão entre esses dois termos. Para finalizar, a especialista lembra a necessidade de um olhar mais atento, uma vez que os pais, envolvidos nestas disputas, perdem a capacidade de pensar e ­decidir sobre o destino de suas vidas, depositando no Judiciário este difícil encargo. “A criança afastada de um de seus pais não terá sequer a chance de conhecer o outro genitor ou construir suas próprias críticas a respeito deste; tampouco laço afetivo. É nessa situação que de forma perversa pode se sequestrar parte da vida emocional de uma criança, roubando dela sua história.”

Encerramento
A conferência de encerramento foi proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes. Para o magistrado, a principal discussão ­sobre a subtração internacional de menores no Brasil atualmente deve ser sobre o cumprimento aos tratados firmados pelo País, baseados em relações de reciprocidade que fazem parte de “um programa civilizatório”. Por isso, conforme o ministro, é indispensável pensar em medidas de organização e procedimento para assegurar que os acordos elaborados no âmbito da Convenção da Haia sejam efetivamente cumpridos. “Do contrário, parecemos os párias no universo das relações. Exigimos o cumprimento desse pacto, obtemos êxito, mas não conseguimos conferir reciprocidade. Quando o fazemos, é com muita lentidão por razões de difícil justificação.”

O seminário Subtração Internacional de Menores foi realizado pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ/CJF) em parceria com o STJ, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), o Instituto Justiça e Cidadania, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), e os Ministérios da Justiça (MJ) e das Relações Exteriores (MRE).