Seminário de Verão da Universidade de Coimbra debate as mudanças climáticas

5 de agosto de 2024

Da Redação

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Fomentar o debate sobre o impacto jurídico e ambiental das mudanças climáticas e promover soluções para um futuro mais sustentável. Esse foi o foco da 29a edição do Seminário de Verão de Coimbra realizado em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal. Com o tema “(Des)ordem climática: propostas para um mundo em transformação”, o evento promoveu o compartilhamento de importantes reflexões entre magistrados, juristas e acadêmicos do Brasil e de Portugal sobre questões urgentes. Entre elas, os desafios da sustentabilidade, a mitigação de desastres ambientais, a justiça climática, a transição energética e o papel da educação para o desenvolvimento sustentável. 

Organizado pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados (IPEJA), pela Associação de Estudos Europeus de Coimbra (AEEC) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), o seminário contou com a participação, do ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Também contou com 15 dos 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), incluindo o diretor-geral da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), ministro Mauro Campbell Marques, e o decano da Corte, ministro João Otávio de Noronha.

O vice-reitor da Universidade de Coimbra, João Nuno Calvão, reforçou a importância da troca de informações e de experiências com a academia e a magistratura brasileira para a universidade portuguesa. “A edição deste ano apresenta um tema cada vez mais relevante que é a sustentabilidade ambiental. O espaço da academia de reflexão é respaldado na ciência e nas evidências científicas. Essa reflexão será seguramente ponderada, sem radicalismo e sem fanatismos verdes”, citou. Para ele, é necessário pensar também na economia, em um tempo em que as desigualdades e a pobreza são crescentes, e nas questões energéticas. “Nossos amigos brasileiros nos ajudarão a refletir sobre esses temas fulcrais para a humanidade”, ponderou.

A sessão inaugural contou ainda com a participação do diretor da AEEC, Manuel Lopes Porto, do diretor da FDUC, Jónatas Machado, do presidente do IPEJA, Rubens Lopes e da diretora-executiva do IPEJA, Cristiane Brito Frota.

Cooperação internacional e uso da tecnologia – O desafio da sustentabilidade foi um dos temas centrais, com a palestra de abertura, moderada pelo ministro do STJ João Otávio de Noronha. O painel também contou com a participação do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. A apresentação concentrou-se nos dois pilares mais importantes para enfrentar os desafios da sustentabilidade: a cooperação internacional e o uso da tecnologia.

Para Lewandowski, o caminho das pactuações internacionais, como a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP), deve ser trilhado com perseverança, já que “os países não podem mais agir sozinhos”. Ele citou ainda o uso da inteligência artificial como ferramenta para auxiliar no tratamento de dados de sensores meteorológicos e de satélites, detectando sinais antecipados de desastres naturais e facilitando a tomada de decisão.

“As mudanças climáticas e a recuperação da sustentabilidade só poderão ser enfrentadas e alcançadas se agirmos de forma concentrada e utilizando as melhores técnicas, com o amparo da ciência e da tecnologia. O caminho das pactuações internacionais recebe muitas críticas, mas esse é um caminho importante que deve ser trilhado. É necessário que façamos um esforço coletivo internacional. Não haverá mais um herói mitológico e solitário para nos amparar”, afirmou. 

O ministro do STF Gilmar Mendes destacou que a Constituição Federal de 1988 dedicou um capítulo sobre a proteção do meio ambiente, positivando o princípio da solidariedade intergeracional na preservação e na proteção da fauna e da flora brasileira. No entanto, ele ressaltou que o Brasil ainda precisa resolver a questão da justiça climática para encontrar o equilíbrio entre a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento econômico, além da solução de questões básicas de desigualdade material como a fome e a falta de saneamento básico. 

“O ideal do desenvolvimento sustentável deve ser justo e equitativo. É necessário um novo modelo de desenvolvimento que seja assertivo, a ponto de garantir um grau adequado de proteção ambiental e distributivo para impedir que populações vulneráveis paguem o preço da nossa inércia. É preciso conjugar responsabilidade social com justiça climática intergeracional”, disse.

Direito da Mudança Climática – O ministro do STJ Joel Ilan Paciornik falou no painel sobre vulnerabilidade e resiliência climáticas e ressaltou a evolução jurisprudencial do STJ em matérias de Direito Ambiental, com a consolidação do princípio in dubio pro natura, mas apontou que esse avanço “não tem sido suficiente para trazer mecanismos eficazes de combate à criminalidade ambiental”.

Na sequência do painel, o ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva ressaltou que o estado de emergência climática tem levado a um número crescente de litígios ambientais e ao surgimento do Direito da Mudança Climática, novo ramo jurídico que corresponde ao direito de viver em um clima limpo, saudável e seguro a partir da atuação do Estado e de particulares na proteção climática. 

“A partir do estado de emergência climática, surge o reconhecimento do clima como um bem jurídico dotado de autonomia que leva à criação de um direito com princípios e regras próprias. No Brasil, pode-se dizer que a Lei no 12.187/2009, da Política Nacional sobre Mudança do Clima, é a norma fundante do Direito Climático. Lá estão fixadas as diretrizes do microssistema legislativo climático como os incentivos econômicos para a redução de emissão de gases do efeito estufa e a venda de crédito de carbono como maneira mais célere de reduzir as emissões”, afirmou.

Crimes ambientais e Reforma Tributária O ministro do STJ Rogério Schietti alertou para as dificuldades que o Poder Judiciário brasileiro enfrenta em matérias de Direito Ambiental e na busca por justiça climática durante o painel “Democracia e justiça climática”. Ele citou como obstáculos a dificuldade de quantificação dos danos e seu equivalente monetário para integral reparação e a seletividade do Sistema de Justiça Penal. 

Na sequência do debate, o ministro do STJ Gurgel de Faria defendeu a existência de uma conexão entre a democracia, o meio ambiente e a tributação e explicou que a Reforma Tributária brasileira, aprovada em dezembro de 2023, apontou como princípio a proteção do meio ambiente a partir de uma “função extrafiscal de estimular setores que protejam o meio ambiente e desestimular áreas que sejam prejudiciais ao meio ambiente”.

O  ministro do STJ Sebastião Reis Júnior também citou a Constituição, leis e normas de proteção do meio ambiente como a Política Nacional do Meio Ambiente, a Política Nacional do Saneamento Básico, a Lei dos Crimes Ambientais e a Lei dos Recursos Hídricos. “Não falta legislação no Brasil para preservar o meio ambiente, mas há uma necessidade de mudança de mentalidade”.

Impactos na saúde pública O evento também abordou as “Mudanças climáticas e saúde pública”, painel moderado por Miguel Gorjão-Henriques, sócio no departamento de Direito Europeu e de Concorrência do escritório de advocacia Sérvulo. Ele esclareceu que a União Europeia não possui competência própria para legislar em matéria de saúde pública para abordar as questões das alterações climáticas. “As atribuições são muito limitadas, porque a estrutura e o financiamento do sistema de saúde são competências dos estados-membros”, destacou.

O médico e presidente da Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), Breno Monteiro, falou sobre os problemas que precisam ser enfrentados com urgência no Brasil e no mundo. Entre eles, o desmatamento da Amazônia, que representa um risco significativo à saúde pública, pois aumenta consideravelmente a probabilidade de surgimento de novos vírus com potencial para causar epidemias e até mesmo pandemias. “Precisamos fortalecer os sistemas de saúde pública para prevenir e responder a surtos que possam iniciar essas doenças e, principalmente, educar a população local sobre o risco deste desmatamento”, declarou.

Já o diretor presidente da Fundação Faculdade de Medicina (FFM) da Universidade de São Paulo (USP), Arnaldo Hossepian Junior, destacou que o instituto se preocupa com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) antes mesmo de eles serem definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015. “Em 2020, nós criamos uma comunidade temática para que fossem apurados os trabalhos realizados pelos professores daquela casa desde 2012, e quantos deles guardavam relação com os 17 ODS”. Segundo ele, apenas em relação ao Objetivo 13, que trata de ações contra a mudança global do clima, são 46 trabalhos produzidos.

O ministro do STJ Marcelo Navarro Ribeiro Dantas apresentou aos colegas portugueses a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), que definiu como “o maior sistema público de saúde do planeta”. Ele destacou “que o conhecimento acumulado sobre as mudanças climáticas coloca em xeque a pretensa capacidade da espécie humana de conquistar as contingências da vida e de criar para si o mundo ideal.” Para o magistrado, ao contrário do que se esperava, nem a industrialização, nem a ciência resolveram todos os problemas da humanidade. “O desenvolvimento político e tecnológico talvez pareça se assemelhar a um processo de autodestruição”.

Para o advogado Luis Felipe Salomão Filho, o Brasil já caminha, pelo menos na esfera legislativa ou de arcabouço legal, no sentido de adaptar o ordenamento jurídico a medidas mais concretas para a política nacional sobre a mudança do clima. Durante o painel sobre  incentivos para a mitigação e adaptação climáticas, o ministro do STJ Mauro Campbell Marques chamou a atenção para a necessidade de uma visão interdisciplinar sobre o tema. “A questão climática nos indica um novo olhar para o meio ambiente, agora atrelado a uma visão, sobretudo, mais humanista”, pontuou.

O desembargador do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF-2), Marcus Abraham, tratou do tema da proteção do meio ambiente na perspectiva da recente reforma tributária, em especial o imposto seletivo, que incide sobre produtos nocivos à saúde e poluentes ao meio ambiente, como combustíveis fósseis.  

O ministro José Afrânio Vilela, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao citar decisões de pequena e grande monta que passaram por suas mãos, declarou que “essas pequenas agressões somadas se tornam grandes agressões”, das quais o meio ambiente não têm como se recuperar facilmente. “A sentença do juiz não resolve a prevenção. O acordo que condena, inclusive no âmbito criminal, ele pode, sim, impor responsabilidade. Mas o meio ambiente continua a sofrer a ofensa, a ferida aberta não cicatriza através de uma decisão judicial. Compreendo hoje que é uma política que deve ser supranacional, visando preservar a vida no planeta como um todo”, opinou.

Economia circular e sustentabilidade Moderado pela professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Fernanda Paula Oliveira, o painel “Economia circular, infraestruturas e transição energética” colocou em xeque o dilema “desenvolvimento econômico e social versus sustentabilidade e preservação do meio ambiente e ecologia”. O tema foi abordado pelo também professor da instituição, Jorge André Alves Correia.  “O que queremos buscar é a eficácia nas propostas para o mundo em transformação. E não emergência, que implica medidas de curto prazo, quase sempre casuísticas. Portanto, procuramos medidas de médio e de longo prazo, com uma programação e planejamento que possam se revelar eficazes e que induzam uma colaboração entre o setor público e o provado”, esclareceu. 

Educação ambiental Sobre “Educação e cultura para o desenvolvimento sustentável”, o ministro do STJ Humberto Martins citou que as sociedades empresariais desempenham um papel positivo na geração de emprego, do provimento de bens e serviços e movimentam a economia. No entanto, “geram um impacto negativo dos custos sociais e ambientais quando violam o meio ambiente e agridem o bem-estar social e a saúde das pessoas na legislação”. 

Já a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Isabel Valente, abordou a perspectiva de uma localidade específica do mapa global, ou seja, a educação para preparação e adaptação às alterações climáticas nas regiões ultraperiféricas da União Europeia (RUP).  

O ministro do STJ Marco Aurelio Buzzi explicou as relações das mudanças do Código de Defesa do Consumidor e a preservação do meio ambiente e consumo sustentável. “A dilapidação dos recursos naturais não é imputada apenas à indústria, ao comércio, ao agronegócio. O consumo tem uma consequência muito mais drástica, porque ele é o reflexo exatamente do esgotamento dos nossos recursos naturais”, enfatizou o ministro.

Fechando o painel, o ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca abordou o tema a partir da teoria dimensional dos direitos fundamentais. “As gerações futuras têm o direito de receber o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Para tanto, pensamos na Amazônia, no Pantanal, pensamos em várias riquezas naturais do mundo, mas esquecemos evidentemente, de que para isso temos que ter planejamento e que precisamos, sim, de uma Constituição sustentável, que pense na equidade intergeracional.”

Encerramento – O encerramento do Seminário foi realizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, que trouxe números alarmantes. Segundo ele, o mundo conta com sete bilhões de seres humanos, que produzem 1,4 bilhão de toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano – uma média de 1,2 kg de resíduos por dia para cada pessoa no mundo. “Como tratar isso do ponto de vista da sustentabilidade?”, questionou. Para ele, não basta mais só uma legislação ou decisões judiciais que previnam e, eventualmente, punam e até reparem os danos. “Temos necessidade de um pacto geral e, a partir disso, além daquele trinômio clássico, ‘prevenir, reprimir e restaurar’, a integração”, concluiu.  

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