Sentença dupla

28 de abril de 2014

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Ruy-CelsoEm 7 de janeiro de 2014, o reconhecido jornalista Janio de Freitas publicou na coluna que mantém na Folha de São Paulo, irrepreensível artigo intitulado Sentença Dupla, fazendo expressa refe­rência às desumanas condições dos presídios brasileiros, onde, segundo o colunista, sentenciados cumprem não só as penas a que foram condenados pela Justiça, mas “outra condenação, implícita na primeira e não declarada”.

Contextualizando o tema, o articulista põe no centro da sua argumentação os casos do Presídio de Pedrinhas, no Maranhão, no qual durante o ano de 2013, ocorreram 59 mortes, com 14 decapitações de presos por outros presos, e do Presídio Central de Porto Alegre, que recente­mente foi objeto de notificação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil, em razão das “monstruosidades ali impostas aos presos”.

O artigo de Janio, com clareza e simplicidade de escrita, própria de um jornalista experiente, chama atenção não só pela análise crítica e precisa sobre o assunto, mas também pela “sincronicidade”, no sentido que Carl Jung deu ao termo, que guarda com o pensamento de Eugenio Raul Zaffaroni sobre a medida das penas.

Zaffaroni, como é conhecido no mundo jurídico, é o tratadista de Direito Penal mais citado e estudado da América Latina, com obras publicadas em diversos países e muitas traduções. Professor da Universidade de Buenos Aires e Magistrado da Suprema Corte Argentina, coleciona títulos e láureas acadêmicas internacionais decorrentes de seus estudos nas áreas do Direito da Criminologia.

Em uma de suas teorias, amplamente difundidas no Brasil, Zaffaroni trata da medida das penas criminais, intitulando um ensaio de sua autoria de “Las penas crueles y la doble punición” (La medida del castigo, el deber de compensacion por penas ilegales, p. 355-376).

Muito interessante, e aqui reside a “sincronicidade” anteriormente referida, pois o sentido do termo “doble punicion” utilizado por Zaffaroni na abordagem jurídica da matéria é o mesmo de “dupla sentença” de que lançou mão o jornalista brasileiro em sua análise e opinião.

Ambos se referem ao fato dos encarcerados, normalmente, não cumprirem simplesmente as penas que lhes foram impostas judicialmente. Muito além disso, sofrem dentro dos presídios outras penas arbitrárias, executadas de forma imediata, que são cruéis, desumanas e degradantes.

No Brasil, comprovadamente, e denunciado até pelo Conselho Nacional de Justiça, os presos são rotineiramente torturados, física e moralmente, não só pelos agentes estatais, mas também por outros presos.

Segundo Zaffaroni, que tem a mesma visão sobre toda a América Latina, as torturas e crueldades impingidas aos detentos também são penas, e por isso “constituem uma dupla punição: uma ilegal e outra legal”. No entender desse criminalista poder-se-ia no entanto, contrariando seu pró­prio pensamento, construir um sofisma de que as penas cruéis e torturas não são penas formalmente estabelecidas, e portanto não há uma dupla punição pelo Estado.

Contudo, o jurista portenho responde ao sofisma por ele mesmo construído, com outro: Se o Estado resolvesse comprar somente vacas negras, poderiam então concluir que as vacas brancas e malhadas não seriam vacas”. Ou seja, não é pelo fato do Estado não assumir as aflições ilegais impostas aos reclusos em cadeias e penitenciárias como penas, que elas deixam de ser penas. Se existem no plano real, devem obrigatoriamente ser consideradas pelo Direito e pela Justiça.

Por isso, além de ratificar as severas críticas do colunista da Folha de São Paulo quando se refere à omissão de autoridades, de todos os níveis, em relação às perversidades a que são submetidos os encarcerados no Brasil, e a hipocrisia daqueles, que ainda assim insistem em “acreditar” em reabilitação de condenados, mesmo sabedores da forma degradante como as penas são cumpridas no país, existe outro fator que recrudesce essa situação: trata-se do total desconhecimento, ou senão desprezo, da sociedade em geral em relação à diferença abismal entre o tempo no cárcere e o tempo social. Entre o tempo objetivo, contado em horas e dias para todos, e o tempo subjetivo, que é a medida pessoal de cada um. Este último é tempo sentido, muito diferente do tempo medido pela física.

Estudos com essa preocupação indicam que o apenado ao ingressar no cárcere não só para no tempo, mas inicia seu calvário.

Um dia numa prisão tem uma dimensão subjetiva diversa de seu dia vivido em liberdade, no trabalho ou no lar.

Quem quantifica o tempo, e o faz lento ou rápido, são os sentidos humanos em conformidade com os prazeres ou desconfortos.

Uma dor na madrugada dificulta a percepção que o dia irá ressurgir logo mais. Ao passo que em uma madrugada em festa, a vontade, às vezes, é que o tempo não passe.

Eis as palavras de um recluso: Para quem está no inferno, um minuto é uma eternidade. Assim, o momento parece propício para uma profunda reflexão sobre algumas sugestões apresentadas por Zaffaroni, na mesma obra já mencionada, na busca de amenizar ou compensar o sofrimento das “vítimas” das verdadeiras “masmorras” existentes em toda a América Latina:

a) Primeiramente é preciso admitir que a tortura, os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, impostos por agentes estatais a uma pessoa em razão do cometimento de um delito, seja como castigo ilegal ou como meio ilegal de obtenção de prova, são penas;

b) Sendo penas devem ser compensadas com as penas legais que forem impostas pelo mesmo delito ou que o recluso já venha sofrendo por esse fato;

c) O não reconhecimento da imperiosidade desta compensação implica agregar à violação aos Direitos Humanos individuais sofrida por uma pessoa, outra violação, de igual natureza, em razão da imposição de uma dupla punição pelo mesmo fato;

d) A individualização do montante compensatório deverá ser feita partindo da hierarquia do direito afetado pelo comportamento dos agentes do Estado e a magnitude da lesão a esse direito.

Visando facilitar a reflexão proposta, especialmente entre os que se socorrem do instituto da “coisa julgada” para manter o suplício dos sentenciados, lembra Zaffaroni ser “absurdo esgrimir uma garantia para prejudicar o amparado pela mesma garantia. É preciso reconhecer que frequentemente se manipulam as garantias de forma perversa, pretendendo justamente que prejudiquem aos que estão destinados a tutelar”.

Já sobre os cálculos que podem ser feitos para compensar a “Sentença dupla” ou “Doble punicion” em favor do infeliz “enjaulado”, é inevitável lembrar que a Justiça deve trabalhar no território da ética e não da matemática. Assim, aos seres espiritualizados, compete apenas refletir e sonhar, sobretudo sobre o sonho alheio roubado e infernizado, deixando os cálculos para momento posterior, que qualquer calculadora o auxiliará na tarefa.

Referências bibliográficas _____________________________________________________

FERREIRA, Ajauna Piccoli Brizolla. O tempo e o tempo na prisão. Disponível em: www.esedh.pr.gov/arquivos/file/o tempo o tempo na prisão.pdf
ZAFFARONI, Raul Eugenio e outros. La medida del castigo: el deber de compensacion por penas ilegales,Buenos Aires: Ediar, 2012