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Será que esqueceram a Constituição?

5 de maio de 1999

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(Discurso proferido na posse como Presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região, em abril de 1999)

“Vou falar um pouquinho sobre essa nossa Justiça brasileira. A questão é que, como todas as instituições, isso de qualquer país, ela não nasce com um ato mágico, é uma criação da sociedade, que no Brasil, no período colonial, nós não tivemos justiça, diversamente do que ocorreu por exemplo, nos Estados Unidos. Somente com o alvará de 1º de maio de 1908 é que a Organização Judiciária apresentou sua primeira feição brasileira, tendo como cúpula a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, conservando-se íntegra durante todo o império.

Com o advento da República, o sistema se rompeu, apesar do surgimento do Supremo Tribunal Federal, que, como cúpula de toda a Magistratura Brasileira, deu início a uma nova e brilhante fase de nossa Judicatura.

Tivemos, de início, as Relações do Brasil. Isso, portanto, só com a vinda da Família Real, em 1808. As Relações da Bahia, do Estado do Rio de janeiro, do Estado do Maranhão e do Estado de Pernambuco.

Essas Relações foram implantadas com os juízes importados, vieram de fora. Não estou falando do Juiz de Fora, que já era uma Judicatura, de Portugal, que, ao iniciar o seu trabalho aqui, afastava a Judicatura Ordinária, automaticamente.

Posteriormente, em 1828, criou-se o Supremo Tribunal de Justiça. Essa era a nossa base judiciária nacional. Uma reprodução, ainda de composição reinol, nos estilos das Ordenações Manuelinas, Afonsinas e Filipinas. Finalmente, o Supremo Tribunal Federal que, na sua primeira composição, contou com dez juízes do Sistema Imperial.

Evidentemente, que não seria aqui o local, nem o momento próprio para discorrer sobre esse trabalho, ingente, enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, enfrentou, além dessa dificuldade endógena, de juízes altamente capacitados, no entendimento das ordenações, entenderam a República, e uma República Federativa. As crises, evidentemente, não eram do Judiciário. A própria instituição, nascente, florescente, a se formar e a se estruturar.

Nesse ínterim, com a Proclamação da República, surge um primeiro evento, importantíssimo quebrando essa cadeia, rompendo com esse elo da nossa história colonial. Eu digo, colonial, por força de expressão, porque, colônia, nunca houve aqui, até 1808.

Surgiu a Justiça Federal. A exposição de motivos, assinada pelo então Ministro CAMPO SALLES, é de uma atualidade impressionante. Destacarei, apenas, um pequeno trecho.

Então, com o Decreto nº 646, de 11/10/1890, Ievado ao generalíssimo Marechal DEODORO DA FONSECA, ilustríssimo conterrâneo do Dr. MELLO PORTO e meu, diz o seguinte:

Generalíssimo, o principal, senão o único intuito do Congresso, na sua primeira reunião, consiste, sem dúvida, em colocar o Poder Público dentro da legalidade. Mas esta missão ficaria, certamente, incompleta se, adotando a Constituição e elegendo os depositários do Poder Executivo, não estivesse, todavia, previamente organizada a Justiça Federal, pois que só assim poderão ficar, a um tempo e em definitivo, constituídos os Três Poderes — órgãos da soberania nacional. Trata-se, portanto, com este ato, de adotar o processo mais rápido para a execução do programa do governo provisório, com seu ponto culminante: a terminação do período ditatorial. Se não dissesse o número do Decreto, poderia até ser mal interpretado. Mas, o que, principalmente, deve caracterizar a necessidade da imediata organização da Justiça Federal, é o papel de alta preponderância a que ela se destina representar como órgão de um Poder no corpo social. Eis as bases da nossa nova justiça Republicana. O Poder Judiciário é um poder da sociedade. Ele representa a sociedade e, inclusive, tem o dever de defendê-la de agressões de todos os Poderes do Estado, inclusive do próprio Poder Judiciário.

Cumprir e fazer cumprir

O princípio fundamental é ainda o da exposição: de que só um poder judicial independente é capaz de defender, com eficácia, a liberdade e os direitos dos cidadãos na luta desigual entre o indivíduo e o Estado. Foi, neste organismo, rigorosamente observado: ‘Não há nem pode haver Justiça honesta, sem uma Magistratura independente. E, uma Justiça sem escrúpulos, é a pior de todas as calamidades públicas’.

Essas reflexões, que eu passo quase que simbolicamente, têm um conteúdo, mais ou menos, assim: que num Estado Democrático de Direito se exige uma Constituição no sentido material, mas não é aquela discussão antiga nossa, de Constituição no sentido formal, Constituição no sentido material, é no sentido norte-americano, ou seja, da implementação: os direitos constitucionais.

Constituição é democrática porque ela deve atender a todos os segmentos da sociedade, grandes e pequenos, e até os médios, não faz distinção. E quando, no Brasil, se diz que a nossa Constituição prometeu demais, sinceramente essa é uma visão retrospectiva, e não prospectiva. Isso é uma visão reacionária, no pior sentido da expressão, no sentido intelectual mental e social. Evidentemente que a parte que não puder ser implementada, não trará nenhum benefício, nem piora, mas negar a Constituição sob o pretexto de que ela prometeu mais, é trair a Constituição.

Acabamos, aqui, de prestar um compromisso equivalente a um juramento: o Brasil abandonou o juramento, mas o compromisso tem o mesmo valor moral de cumprir — eu acrescentei, porque não estava na papeleta — e fazer cumprir a Constituição e as Leis. Não basta cumprir, e isso está hoje em várias Constituições modernas da Europa, como na espanhola, na portuguesa: cumprir e fazer cumprir.

Todo brasileiro tem o direito de expressar sua opinião

Só gostaria de lembrar, porque o nosso efeito corresponde a um ato cívico, de que nós não fazemos comícios: fazemos Justiça e falamos para a sociedade, falamos para nós mesmos. É nosso dever fazer isso, não só nos autos, mas na vida.

Nosso sistema está fragmentado, está inviabilizado pelos próprios mecanismos nele adotados. Os códigos tramitam há mais de trinta anos no Congresso, e a própria reforma da Magistratura, agora tão alardeada e em boa hora, retorna a esse tema. Felizmente, grande sensibilidade do Parlamento. O Presidente Michel Temer, um homem de ciência e de sapiência, política e jurídica, assumiu esse compromisso. É trabalho sério e conta com o apoio de toda a Magistratura brasileira, dos advogados, do parquet e de todo os ramos da nossa Justiça.

Função de julgar, segundo Roger Perrot, dentre outros aqui colecionados, é uma das prerrogativas da soberania ao lado da função legislativa, que edita normas, e da executiva, que assegura a sua aplicação. E isso, na França, que está reformulando inteiramente a sua instituição judiciária, para livrar do contencioso, por força da União Européia.

Já fui devidamente entrevistado antes de tomar assento neste Plenário, e, enfim, não poderia deixar de dar uma palavrinha sobre um assunto de tanta relevância e atualidade: perguntaram-me o que achava da declaração do Ministro Celso de Mello e da declaração do colega Vice-Presidente e Corregedor do Egrégio Tribunal Regional da 1a Região, Dr. Tourinho Netto, também nobilíssimo colega de concurso. Então, eu disse ao jornalista que todos os brasileiros, no nosso regime, que é democrático, embora uma democracia muito imperfeita, têm o direito de expressar sua opinião. Até o Presidente do Supremo Tribunal Federal tem esse direito. Mas trata-se de uma opinião pessoal, e não cabe a mim, então, apreciar opinião de pessoa alguma. notadamente do Ilustre Jurista e Presidente do glorioso Supremo Tribunal Federal. Mas, trata-se de uma opinião pessoal. E que, o parâmetro indicado pelo jornalista, o Dr. Tourinho Netto, não se trata de uma opinião pessoal, trata-se de um ato oficial. É um provimento recomendando aos Senhores Juízes Federais, se porventura intimados, a não comparecerem à denominada CPI do Judiciário, nem lhe prestarem qualquer informação. Ela está fundamentada, tem, inclusive, doutrina. Disse ao jornalista que não cabia a mim também apreciar atos oficiais, exceto em processos, mas que eu a considerava bem fundamentada. Ele me perguntou: O Senhor concorda? Eu disse: Não cabe a mim concordar nem muito menos discordar. Apenas estou afirmando que, no meu modo de ver, está bem fundamentada.

Agora, falo por mim: O eminente Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Antonio de Pádua Ribeiro, termina o seu artigo de hoje, na mesma página do Fernando Veríssimo, da seguinte maneira:

Observo, por fim, que o meu posicionamento sobre o judiciário e sobre a sua CPI nada tem a ver com o do Ministro Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal, segundo dão a entender algumas publicações pela imprensa. Tenho evitado pronunciar-me sobre o tema, porquanto vem sendo tratado sob o fluxo de grandes paixões e obscurecerem a razão. Tenho o dever pessoal, por convicção e institucional, pelo cargo que ocupo, de defender as prerrogativas do Judiciário, indispensáveis que são para a manutenção do Estado Democrático de Direito e desse dever não me demitirei.

Será que esqueceram a Constituição?

Subscrevo com todos os pontos, todas a vírgulas e destaques. E acrescento: estou diante de mestres do Direito Constitucional. Não os nomeio por constrangimento meu. E, evidentemente, é  apenas um ponto de vista. Mas, consultei a Constituição e nela não há previsão de competência do Congresso Nacional para apreciar qualquer ato do Poder Judiciário.

Estranhei muito que autoridades públicas consagradas, Juristas, não indicassem o fundamento constitucional nessas exposições.

Será que esqueceram a Constituição? Não se lembram do bom hábito do General Eurico Gaspar Dutra, de trazer sempre o seu livrinho, como eu sempre faço? Tenho uma edição menor, de bolso. Já está no coração, mas é preciso vê-Ia, abri-Ia, respeitá-Ia, aplicá-Ia e fazê-Ia aplicar.

O que existe na Constituição — e qualquer contradita eu registrarei, para mudar o que estou dizendo aqui — são poderes para o Congresso Nacional, através do seu Plenário, ou de qualquer uma das suas duas Casas, Senado Federal ou Câmara dos Deputados, promover CPI, convocar Ministro de Estado a prestar informações, sob pena de crime de responsabilidade. Não faz nenhuma referência a membros do Poder Judiciário.

O que existe ainda — está no art. 71 — na Constituição, é a competência do Congresso Nacional para, através do Tribunal de Contas da União — isso apenas no âmbito federal — verificar, com relação a quaisquer dos poderes, a legalidade, relativamente a gestão de recursos públicos, prestação de contas. E isso o Judiciário tem feito rotineiramente.

O Dr. Bandeira de Mello Filho acentuou, com absoluta propriedade, ser uma CPI absolutamente inútil para o fim propalado, porque, se já dispõe de todo esse material, obrigatoriamente coletado pelo Tribunal de Contas da União e remetido ao Congresso, das duas uma: ou não quis tomar conhecimento das propaladas Irregularidades ou foi condescendente com elas, porque, ao não encaminharem ao Ministério Público, como é do preceito constitucional, em tese, estará cometendo o crime de prevaricação.

O Dr. Bandeira de Mello Filho muito bem acentuou que o Ministério Público, na maior parte dos casos, já adotou iniciativas. E, neste Tribunal, temos examinado casos.

O que é mais estranho ainda, espantoso e quase inacreditável é que a mesma autoridade que tomou a iniciativa, chegando a ameaçar até a suicidar-se, se não fosse à frente, também pretendia extinguir o próprio Tribunal de Contas.

Com toda franqueza, fico pensando se nós merecemos, nós como País, uma Justiça que, na opinião universal, unânime de especialistas, como Eugênio Safaroni — integrante da gloriosa Justiça da irmã República Argentina — considera o País como o único cuja Justiça está se aproximando do nível europeu, que está reformulando, como disse, seus padrões, e fico a me lembrar da exposição de motivos de 1890, aqui já destacada.

Será que isso é justo, compatível com nosso baixo nível político e de consciência institucional? Nós merecemos isso? É um pesadelo ou, realmente, essa matéria deve tomar o seu destino natural, como se fez na inspiração do nosso grande humorista e filósofo, Luís Fernando Veríssimo.

Mas o assunto é serio: se fosse jocosidade, ao se fazer a menor menção de se investigar possíveis irregularidades ocorridas em setores da economia do País, logo vem os temores anunciados de que isso poderia causar danos enormes no exterior, prejudicando a posição do nosso País no mercado financeiro internacional.

Que todos cumpram o seu dever

Pergunto: e uma Justiça que se quer colocar no Banco dos Réus? Nem o poder moderador do Imperador Pedro II fez isso. É para humilhar? Quem? O Juiz ou a sociedade? É para não assegurar os direitos consagrados na Constituição? Constituição Cidadã, mal defendida, porque tem o dever de fazê-Io? Iríamos regredir ou vamos ficar estáticos?

Se a Constituição não serve, se não é lida, pelo menos não se faz nenhuma referência a ela, a não ser vagamente que o Supremo, oportunamente, irá apreciar, mas é uma instituição, tem o dever de imediatamente, embora não tenha uma função administrativa nacional.

E o que dizer da adjudicatura dos Estados, onde não há a mínima hipótese de uma CPI do Congresso Nacional?

O Presidente da República, com todo respeito, um ilustre professor, vem a público, afirmando que o Colégio dos Presidentes dos Tribunais de Justiça praticou um ato que pode incitar, convidar a um conflito, um litígio entre os poderes. Mas quem começou isso foram os Presidentes dos Tribunais de Justiça, foi o Colégio de Presidentes?

Finalmente, ouvi, também, de uma autoridade, que, de acordo com a Constituição, como a CPI é dotada de poderes de Juiz, poderia fazer essa convocação. Mas, se no outro preceito se diz que é só para Ministros, então, certamente, que isso deve estar equivocado. Porque se trata apenas de um inquérito, semelhante a um inquérito policial: não pode apreciar, não pode condenar.

A Constituição manda remeter as conclusões para o Ministério Público. E, assim sendo, com a mesma empolgação, mas serena, firme e decidida com que o Ministro Antonio de Pádua Ribeiro se posicionou, digo, como Presidente deste Tribunal, que, se depender da Presidência — já consultei os eminentes Companheiros da atual administração, Arnaldo Esteves e Frederico Gueiros — S. Exas., pelo menos me disseram, concordam absolutamente. O Dr. Tourinho Netto tomou a atitude correta em defesa de um Poder — porque também um Juiz de 1a Instância é o mais vulnerável e o Tribunal não pode ficar passivo diante de um ataque frontal iminente.

Nesta Região, acredito que o nosso Tribunal, que sempre se portou nesse nível, sustentando a Constituição e as Leis que a não contrariem, cumprirá integralmente no seu conjunto e por seus membros o Juramento que todos fizemos e reafirmamos a cada momento, como hoje se fez.

Que o destino nos seja mais generoso, e confio — não sou do tipo da velhinha de Taubaté — em que brasileiros que ocupem postos de importância, no momento decisivo, saberão agir com dignidade. Confio também que o Supremo Tribunal Federal, tal como fizeram o Presidente Antonio de Pádua Ribeiro e o Dr. Tourinho Netto, e como faço eu, aqui, todos cumpram o seu dever.”