Edição 289
Simplificação da linguagem jurídica nas medidas protetivas de urgência um dever para a garantia do acesso à justiça substancial
9 de setembro de 2024
Priscila Vasconcelos Juíza de Direito no Tribunal de Justiça de Pernambuco
Rosimeire Ventura Leite Juíza de Direito do TJPB / Professora do PPGPD da Enfam
O patriarcado, como sistema social que privilegia e valoriza os homens em detrimento das mulheres, perpetua uma estrutura de poder que resulta na dominação masculina, frequentemente mantida por meio da violência. Essa opressão de gênero está intrinsecamente ligada a outras dinâmicas de poder, como as relações de classe e raça, o que faz com que as mulheres negras, por exemplo, vivenciem uma vulnerabilidade ainda maior. Para enfrentar essa realidade, é fundamental que a linguagem utilizada nas decisões judiciais seja clara e acessível, de forma que todas as mulheres, independentemente de sua escolaridade ou condição social, compreendam as proteções que lhes são conferidas.
A Constituição Federal, a Lei Maria da Penha e diversos instrumentos normativos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Belém do Pará reforçam a necessidade de proteção contra a violência de gênero.
As medidas protetivas de urgência (MPU) são fundamentais no combate à violência doméstica e familiar, proporcionando resposta rápida e eficiente para proteger as vítimas. Dados atualizados até 30 de junho de 2024 mostram a distribuição de 316.744 medidas protetivas de urgência na justiça brasileira, sendo a classe processual o maior número de novos casos. Por outro lado, a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher revela que 30% das brasileiras já foram vítimas de algum tipo de violência, com aumento significativo em todas as formas de opressão nos últimos dois anos.
Tal cenário exige que juízas e juízes adotem postura mais sensível e atenta, colocando a vítima no centro da prestação jurisdicional, respeitando as fragilidades. Muitas vítimas relatam não compreender as proteções que lhes foram concedidas, o que as impede de identificar e de denunciar violações. Essa situação revela lacuna significativa no sistema de justiça: a linguagem técnica, repleta de jargões e de formalismos, que dificulta a compreensão da decisão judicial pelas vítimas, compromete a eficácia da MPU e obsta o acesso à justiça substancial.
A pesquisa sobre percepção e avaliação do Poder Judiciário brasileiro, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2023, mostra que a incompreensão jurídica é um dos principais fatores que desmotivam as pessoas a buscarem justiça. Além disso, o relatório “Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres” destaca o descontentamento das vítimas com a falta de informações claras, mostrando que muitas saem das audiências sem entender o processo ou os direitos que lhes são garantidos.
Nesse contexto, simplificar a linguagem jurídica deve ser visto como uma ferramenta de empoderamento, que permite às mulheres romperem o ciclo de violência ao entenderem plenamente os seus direitos e as medidas de proteção concedidas. Emerge como uma estratégia essencial para combater a desinformação, aproximar o Judiciário da sociedade e garantir um acesso à justiça que seja efetivamente protetivo.
A linguagem simples é aquela que organiza as ideias de forma clara, usando palavras familiares e frases bem estruturadas, permitindo que qualquer pessoa compreenda facilmente o texto. Assim, simplificar a linguagem jurídica não significa empobrecê-la, mas sim torná-la mais eficaz. Essa abordagem não compromete a precisão técnica, ao contrário, fortalece a cidadania e evita exclusões no acesso à justiça. Cumpre observar que o Pacto Nacional pela Linguagem Simples, lançado pelo CNJ em 2023, destaca a necessidade de combinar técnica jurídica com comunicação clara para garantir o acesso à justiça.
Portanto, a simplificação da linguagem jurídica nas MPUs vai além de uma questão de estilo. É necessidade urgente para que as vítimas de violência doméstica compreendam e exerçam seus direitos de forma segura. Ao adotar uma linguagem mais acessível, o Judiciário não só torna a tutela jurisdicional formalmente disponível, mas também efetivamente eficaz, promovendo uma justiça inclusiva, empática e democrática, essencial para o verdadeiro acesso à justiça substancial.
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