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Síndrome da covardia moral

31 de janeiro de 2008

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Por trás da arrogância dos grandes responsáveis pela leniência legal brasileira em relação aos facínoras – aqueles pretensos discípulos do Marquês de Beccaria, que, por um suposto entendimento “científico” do valor das penas (repetindo ad nauseam a falácia “o que vale é a certeza de punição e não o rigor das penas”) e por uma falsa noção de “direitos humanos”, geraram, entre nós, um desrespeito à vida sem paralelo em qualquer democracia civilizada do mundo contemporâneo – está uma profunda covardia moral, identificável por muitos sintomas, a ponto de já poder ser diagnosticada como verdadeira síndrome.
O primeiro sintoma de seus portadores é a ignorância deliberada (não real, pois tratamos de “intelectuais” supos-tamente bem informados) em relação ao que se passa em outros países no campo da defesa da sociedade frente a seus criminosos. Os que ficam à beira de um ataque de nervos todas as vezes em que se fala na redução da maioridade penal acham natural o fato de  apenas Guiné, Colômbia, Equador, Venezuela e Brasil, ao contrário do resto do mundo, adotarem a maioridade penal aos 18 anos. Julgarão eles que as sociedades desses cinco países, em contraste com as européias, as norte-americanas e as mais evoluídas asiáticas, são as únicas sábias quanto ao entendimento do amadurecimento do ser humano e da fase etária em que pode se responsabilizar por seus atos? Não podem achar isso – pois tão estúpidos não são –, mas lhes falta a coragem de destoar daquilo que a mofina inteligentsia cabocla considera “politicamente correto”.
Outro sintoma é o uso da falsificação rasteira, ridícula, dos argumentos em favor do enquadramento legal mais rigoroso de menores delinqüentes, aumentando o tempo de internação daqueles de alta periculosidade – como, por exemplo, o famigerado Champinha, que, além de estuprar, passou cinco dias comandando os amigos no rodízio de estupros e torturas à jovem Liana Friedenbach, de 16 anos, para ao final trucidá-la com muitas facadas.
Veja-se, agora, o que recentemente se escreveu contra os que pregam o aumento do rigor legal: “Pregam penas de internação mais longa para crianças e adolescentes em conflito com a lei, condenando-os alegremente às sevícias e aos estupros que prevalecem nas instituições fechadas”. Quer dizer, o Champinha é um adolescente em simples “conflito com a lei” e seria uma barbaridade deixá-lo correr o risco de ser estuprado e seviciado em “instituições fechadas” (devem achar certo deixá-lo livre para estuprar e seviciar em instituições abertas).
Terceiro sintoma está na hipocrisia – que já contaminou fortemente o ordenamento jurídico brasileiro – de considerar todos os facínoras “recuperáveis” para a sociedade, o que bem se traduz, em se tratando de menores infratores, na substituição dos termos “pena” ou “punição” por “medidas socioeducativas”.
O cidadão comum sabe perfeitamente que há facínoras absolutamente irrecuperáveis, incapazes de absorver quaisquer valores éticos a ponto de eliminarem a vida humana com a mesma facilidade com que se mata um inseto – e, às vezes, até por pura diversão. Só uma cínica covardia deixará de considerar que a necessidade maior da sociedade é proteger-se da ação desses indivíduos, impedindo que possam reincidir em suas descomunais violências – e não protegê-los, visando recuperá-los.
Quarto sintoma da síndrome é o hábito de desqualificar, como “emocional”, as propostas de endurecimento das penas, atribuindo-se essa “emoção” aos interesses de segurança exclu-
sivos da “classe média”, visto que toda a violência e os assassi-natos que ocorrem diariamente nos “guetos” das periferias nem chegam aos jornais e, por isso, não “comovem” a população. É como se esses bem-pensantes pretendessem que aqueles que têm bom nível de vida, de trabalho, de inserção na sociedade, não tivessem direito algum de exigir maior rigor na punição dos facínoras porque nas favelas e periferias é assim mesmo e, de certa forma, precisamos “socializar” os efeitos da violência – antes de tentar acabar com ela.
Quinto sintoma é a facilidade com que os portadores dessa síndrome invocam um abstrato “critério de autoridade” com base em pesquisas ou estatísticas desconhecidas (e seguramente inexistentes). Costumam usar expressões do tipo “como se sabe” (quem sabe?), “as estatísticas demonstram” (onde estão elas?), “como a História ensina” (História do quê, ensina como?), “está provado que” (quem provou, onde estão as provas?) e frases semelhantes. Então dizem: “Está provado que o aumento do rigor das penas para os crimes hediondos não diminui, só aumenta a criminalidade”. Ou: “Como se sabe, a redução da maioridade penal não resolverá o problema dos menores infratores”. Já é má-fé afirmar que se tenha a intenção de “resolver” inteiramente o problema da violência praticada por menores com a pura e simples redução da idade de responsabilização criminal.
Em nenhum país (exceto os cinco sábios dos dezoito aninhos) se adotaria essa visão reducionista idiota para simplificar um dos aspectos mais complexos da crimina-lidade entre todos os povos do mundo.
Tem-se atribuído a uma terrível “distração” ou ao açoda-mento dos congressistas nacionais o fato de a recente Lei 11.464/07, que pretendia tornar mais rigorosa a punição dos facínoras, fazer escandalosamente o contrário ao permitir a liberdade provisória (antes vetada) para os praticantes de crime hediondo. Mas não houve distração alguma. O que prevaleceu foi essa síndrome da covardia moral, com todo o seu potencial de contágio entre os agentes dos Poderes da República.