Sobre a orientação jurisprudencial 342 do TST

5 de julho de 2005

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Faz pouco tempo, o TST editou a Orientação Jurisprudencial (OJ) n° 342, segundo a qual “É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva”.

O detido exame dos acórdãos precedentes que serviram para consolidar a posição do TST revela que todos eles têm uma circunstância comum que não se refletiu na OJ n° 342, qual seja o REGIME DE TRABALHO EM TURNOS DE REVEZAMENTO em cada um dos casos julgados e agrupados para a formação da orientação jurisprudencial em exame.

É claro que se tratando de REGIME DE TRABALHO EM TURNOS DE REVEZAMENTO a supressão ou a redução do intervalo intrajornada agride norma de higiene, saúde e segurança do trabalho, em virtude das especiais e prejudiciais condições em que as jornadas são praticadas, conforme ampla literatura de medicina do trabalho.

Entretanto, em REGIME DE TRABALHO DE JORNADA FIXA, essa agressão às normas legais de higiene, saúde e segurança do trabalho pode não existir, como é o caso específico do transporte coletivo urbano e metropolitano, cuja operação está à beira de um colapso por conta do desconhecimento dessa realidade.

O transporte coletivo urbano é aquele operado dentro dos municípios. O transporte coletivo metropolitano é aquele operado entre dois ou mais municípios de uma mesma região.

Apenas como exemplo, o transporte urbano de Brasília é aquele que opera as linhas internas da cidade. O transporte metropolitano de Brasília é aquele que opera as linhas que unem a Capital Federal às chamadas cidades satélites e as linhas entre essas mesmas cidades.

O transporte coletivo de longo curso é diferente: serve municípios distantes entre si, envolvem ônibus diferentes, trabalho de dois motoristas, maleteiro, apoio em rodoviárias etc.

Aqui não se trata de transporte de longo curso.

Aqui se trata da peculiar operação de transporte coletivo urbano e metropolitano, de operação e regime de trabalho idênticos, desenvolvidos em jornadas fixas, não em regime de revezamento de turnos, e com singularidade no que diz respeito ao intervalo intrajornada dos motoristas e cobradores que operam o sistema, em todo o país.

Em virtude dessa OJ n°342 um renomado médico do trabalho, Dr. Luiz Oscar Dornelles Schneider, titular do IMAT – INSTITUTO DE MEDICINA APLICADA AO TRABALHO, com sede em Porto Alegre-RS, elaborou Parecer Técnico que examina a questão da higiene, saúde e segurança do trabalho em casos de trabalhadores rodoviários que operam linhas de transporte coletivo urbanas e metropolitanas, submetidos a redução do intervalo intrajornada.

Esse interessante trabalho revela que:

(a) na maioria das empresas de transporte coletivo a jornada de trabalho tem duração média de 07:20 horas;

(b) em cada final de linha há uma espera de, no mínimo, 10 minutos, antes da retomada do trajeto no sentido inverso, destinada ao ajuste logístico do transporte;

(c) os horários de passagem nas paradas de ônibus são fixos e respeitam uma tabela, que é registrada junto à autoridade pública responsável pela fiscalização do transporte coletivo;

(d) ocorre durante à noite, mas a freqüência de viagens é muito menor, em função do reduzido número de passageiros a transportar nestes horários, o que amplia os períodos de espera nos finais de linha.

Adiante, o Parecer classifica os diversos tipos de “pausas de recuperação durante a jornada”. Interessa ao caso, as pausas inerentes à natureza do trabalho que são assim qualificadas:

“As pausas inerentes à natureza do trabalho são bem características nos casos de se esperar que a máquina complete seu serviço, que uma ferramenta de corte se resfrie, que o equipamento se aqueça, pela chegada de um componente, pelo reparo de uma ferramenta ou de uma máquina. Este tipo de pausa é muito freqüente em áreas de serviços, e também em linhas de montagem, onde os trabalhadores mais jovens muitas vezes conseguem executar a atividade mais rapidamente (devido a maior destreza) e têm algum tempo entre uma peça e a seguinte”.

Este tipo de pausa é inerente à atividade sob estudo, existindo sempre que o veículo chega ao fim de linha, onde os trabalhadores permanecem aguardando, em média, por no mínimo 10 minutos”.

Ao final do Parecer:

“A leitura dos textos acima reproduzidos permite evidenciar claramente que o trabalho realizado pelos motoristas, cobradores e fiscais de transporte urbano, intermunicipal e metropolitano:

• É realizado predominantemente durante o dia;

•• Não é fisicamente pesado;

•• Tem pausas inerentes à natureza do trabalho (finais de linha) que representam mecanismo fisiológico de compensação e de prevenção da fadiga crônica;

Assim sendo, o regime de trabalho destes profissionais do transporte urbano, intermunicipal e metropolitano não guarda qualquer relação de nexo com os regimes de trabalho considerados para fundamentar a Orientação Jurisprudencial 342”.

Tudo isso permitiu que o Dr. Luiz Oscar Dornelles Schneider concluísse:

“É nosso parecer que, frente às características peculiares ao trabalho dos transportadores urbanos, intermunicipais e metropolitanos de passageiros, a redução do intervalo de repouso e alimentação intrajornada não representa risco à saúde ou à segurança dos motoristas, cobradores e fiscais que labutam nesta atividade”.

O interessante de tudo isso é que por uma questão de regulamentação dos horários dos ônibus pelo Poder Público Concedente, tais horários sempre são fixados levando em consideração a própria logística do transporte, que precisa prever atraso por engarrafamento, horários de pique de demanda, chuva, acidentes etc, o que faz, de fato, que ao longo da jornada sempre ocorram paradas de espera (e, conseqüentemente, de descanso) nos extremos das linhas.

Ora, como são linhas urbanas e metropolitanas, os percursos são curtos ou médios, ensejando maior volume de paradas ao longo da jornada. E a prática revela que são nessas paradas, muitas vezes, que o trabalhador rodoviário alimenta-se e descansa.

É disseminada a existência de pequenos comércios, lanchonetes, restaurantes etc, nesses pontos, atraídos pela “clientela” dos usuários do transporte coletivo. Então, o que de fato ocorre são “pausas inerentes à natureza do trabalho” que, de acordo com o Parecer supra referido, evitam agressões à higiene, saúde e segurança do trabalhador, motivo expressamente invocado na OJ n° 342 para negar validade de cláusula normativa de redução de intervalo intrajornada.

Afora essas circunstâncias, existem outras, igualmente peculiares, no transporte coletivo urbano e metropolitano, a justificar a revisão da OJ mencionada.  É que a atividade é de interesse público essencial e não existe, operacionalmente, como fazer coincidir os horários de repouso e/ou alimentação, com as partidas e chegadas ao início e fim das linhas.

Ora, se tal intervalo precisa ser gozado na forma da lei e sem adequação normativa à realidade do sistema, haveria que se implantar uma “parada” de 1 hora, em pleno percurso do ônibus, durante a qual os passageiros aguardariam o seu final, para seguir adiante (!).

Também não é razoável supor a existência de dupla equipe em cada ônibus, só para permitir o intervalo, se esse pode ser gozado de modo reduzido, em virtude da existência de “pausas inerentes à natureza do trabalho”. Isso acarretaria dobrar a mão-de-obra embarcada, com enorme repercussão na tarifa pública, sacrificando a população de usuários.

Ademais, justamente para evitar os malefícios do trabalho em turnos de revezamento, os horários contínuos das jornadas fixas dos trabalhadores precisam atender as exigências regulatórias dos horários dos transportes coletivos.

Em suma: para a operação do sistema de transporte coletivo urbano e metropolitano, é fundamental o aproveitamento dessas “pausas inerentes à natureza do trabalho” com a conseqüente redução do intervalo legal intrajornada através de acordo ou convenção coletiva.

Desde a edição da OJ em questão, o segmento do transporte coletivo de passageiros nas regiões urbanas e metropolitanas estão sem saber o que fazer para seguir operando esse complexo sistema, que depende do cumprimento de horários tabelados pelo Poder Público concedente, de natureza essencial à população, e para o qual o empregador não tem opção de manejo para satisfazer a lei (com mero concessionário de serviço público), salvo mediante o instrumento de negociação coletiva, como é praxe absoluta no setor, desde tempos imemoriais, em relação ao intervalo intrajornada.

De todo o exposto, algumas conclusões:

(a) a OJ n° 342 foi editada com base no exame de precedentes que – sem nenhuma exceção – apreciaram regimes de trabalho desenvolvidos em turnos de revezamento, com sabidos malefícios à higiene, saúde e segurança do trabalho, motivo invocado como causa da própria Orientação;

(b) a atividade dos trabalhadores rodoviários no transporte coletivo urbano e metropolitano não é desenvolvida em turnos de revezamento;

(c) a atividade dos trabalhadores rodoviários no transporte coletivo urbano e metropolitano é marcada por “pausas inerentes à natureza do trabalho”, fator benéfico e não agressor à higiene, saúde e segurança do trabalho, consoante parecer médico de profissional qualificado e especializado na área;

(d) para servir a população usuária, esse serviço de natureza essencial obedece a horários fixados em tabelas e planilhas que levam em consideração o montante de passageiros, as zonas, os percursos, as distâncias etc, sendo operacionalmente impossível fazer coincidir intervalos intrajornadas de 1 hora com as “paradas” nos extremos das linhas;

(e) também não há possibilidade de interromper o transporte de um ônibus com passageiros, em pleno percurso, para o gozo do intervalo do motorista e do cobrador;

(e) por igual, não há viabilidade econômica, nem a mais remota, de duplicar a equipe embarcada para fazer a “dobra” durante o intervalo de 1 hora, pois inviabilizaria o custo da tarifa pública para a população (o transportador é concessionário e, como tal, repassa custos agregados à operação);

(f) os órgãos públicos gestores e fiscalizadores do transporte coletivo urbano e metropolitano têm declarado publicamente que não há como operar o sistema de outro modo (ou seja, com redução de intervalo para aproveitamento das “paradas”);

(g) como a OJ n° 342 é de junho de 2004, as indispensáveis convenções e acordos coletivos do setor, que sempre contemplaram cláusula de redução de intervalo intrajornada, estão paralisadas – muito embora haja interesse negocial de representantes de trabalhadores e de representantes de empresas – em face da invalidade de tal cláusula, mesmo que nesse específico caso não haja dano à higiene, saúde e segurança do trabalho, uma vez que a OJ não excepcionou nenhuma situação.

O segmento do transporte coletivo é apenas um exemplo entre vários outros que estão desnorteados frente à ampla e irrestrita abrangência da OJ n° 342 do TST. Talvez o caso mais ilustrativo seja o dos vigias noturnos, agora submetidos à mesma regra, impossível de ser cumprida. Essa categoria, sabidamente, vai ao trabalho já tendo feito em casa a sua refeição da noite e não pode abandonar seu posto de trabalho para repouso ou alimentação, sob pena de não estar vigiando. A supressão desse intervalo é condição inerente ao desenvolvimento da atividade, sem qualquer ofensa às regras de saúde, higiene e segurança do trabalho. Do mesmo modo, inúmeras outras atividades no Brasil inteiro.

Espera-se que a Comissão de Jurisprudência e de Precedentes Normativos do TST, no uso da faculdade que lhe atribui o inciso III do art. 56 do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, revise a Orientação Jurisprudencial n° 342 para limitá-la às atividades exercidas em turnos ininterruptos de revezamento e demais atividades sabidamente desgastantes, como aquela desenvolvida em contato direto com fornos de altas temperaturas, por exemplo.