Edição 117
Sobre Música, Filosofia e Interpretação do Direito
30 de abril de 2010
Carlos Gustavo Direito Juiz de Direito do TJ/RJ, Professor da PUC/RJ
O mundo do Juiz — no exercício do seu métier — é o processo. Já se ouviu, inúmeras vezes, a afirmação de que o que não se encontra nos autos do processo não se encontra no mundo. Ele conhece e analisa apenas o que lhe é apresentado. E finalmente aplicará o Direito, ciência humana abstrata, ao caso concreto. O Juiz não é um abstrato. Ele precisa do caso concreto para realizar a sua função. Neste momento, na aplicação do Direito ao fato, se interpretará a Lei.
Não se pode, como alerta Garapon, cair em caricaturas. Deve-se evitar tanto a imagem do Juiz como mero aplicador da Lei como a de um arbitrário que decide tudo de forma subjetiva (Les Vertus Du Juge, Antoine Garapon, Julie Allard, Frédéric Gros, Dalloz, Paris, 2008, p.5). Por isso, o Juiz é um intérprete da lei. Aquele que dá vida ao texto morto.
Com efeito, a interpretação não difere do contexto musical. Na alegoria de um grande jurista, Mauro Cappelletti, o Juiz, tal como o músico, interpreta a lei como se interpreta uma partitura. Explica Cappelletti que, a partir do final do século XIX, criou-se uma grande literatura sobre o conceito de interpretação, o intento desta discussão foi o “de demonstrar que, com ou sem consciência do intérprete, certo grau de discricionariedade, e, pois de criatividade, mostra-se inerente a toda interpretação, não só a interpretação do Direito, mas também no concernente a todos os outros produtos da civilização humana, como a literatura, a música, as artes visuais, a filosofia, etc..” Diz o professor italiano que “em realidade, interpretação significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-los e — no caso do juiz, não menos que no do musicista, por exemplo — reproduzi-los, aplicá-los e realizá-los em novo e diverso contexto, de tempo e lugar”. (Juízes Legisladores? – Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre 1993, p.21).
Seriam, então, os Juízes músicos? Afinal vivem em um mundo individual no qual a sua arte somente aparecerá quando o seu sentimento (origem da palavra sentença) for exposto através da interpretação da lei ao caso concreto. Não é isso que os músicos fazem? Não trabalham sozinhos para dar a melhor interpretação aos seus sentimentos dentro de regras preestabelecidas. Não existe música sem ordem.
Daniel Barenboim afirma que a música é a comprovação de que paixão e ordem podem andar juntas. No Direito, a ordem é pressuposto necessário para o exercício de uma paixão. O Juiz, como intérprete, pode ser também um apaixonado desde que observe a ordem predeterminada. A observância da ordem é a própria razão de ser do Direito. Não há tolhimento intelectual quando se observam as regras anteriormente estabelecidas.
E que músico seria o Juiz? Na interpretação do que já existe ele pode criar, assumindo, neste caso, o papel de um compositor. Mas, na maioria das vezes, ele trabalha com o seu instrumento para dar vida à obra que outro escreveu. Ele interpreta sentimentos. Aprende a ouvir o que lhe é dito por outrem dentro da sua realidade social e histórica. O desafio de interpretar uma lei é o mesmo que se tem para interpretar uma música barroca no tempo atual com os instrumentos modernos. O julgador tem que saber analisar os fatos sob uma perspectiva objetiva e subjetiva. Não existe — e isto é uma afirmação absoluta — Juiz neutro. A imparcialidade não se relaciona com a neutralidade. O Magistrado carrega em seu julgamento a sua formação de vida. Sua fé ou a ausência dela, sua cultura, sua história, tudo será levado em conta — dentro do seu tribunal interno — para se chegar ao resultado final da decisão.
Maria de Lourdes Sekeff, ao analisar a relação entre a música e a psicanálise, tratando especificamente de Beethoven, afirma que “a vida do artista se entrelaça ao seu processo de criação, imprimindo a essa produção um estilo pessoal e único (e apenas nesse sentido), pois que o homem é fruto de sua história, seu ambiente, seu psiquismo. E reconhecendo a complexidade da natureza de Beethoven, sua produção se torna mais compreensível e mais humana” (Música, estética de subjetivação – tema com variações, AnnaBlume, 2009, p. 37).
Nesse sentido, Cappelletti afirma que “é obvio que toda reprodução e execução variam profundamente, entre outras influências, segundo a capacidade do intelecto e estado da alma do intérprete. Quem pretenderia comparar a execução musical de Arthur Rubinstein com a do nosso vizinho ruidoso? E, na verdade, quem poderia confundir as interpretações geniais de Rubinstein, com as também geniais, mas bem diversas, de Cortot, Gieseking ou de Horowitz?”
Deveras, prossegue Cappelletti, não há texto musical ou poético, nem tampouco legislativo, que não deixe espaço para variações e nuances, para a criatividade interpretativa. Basta considerar que as palavras, como as notas na música, outra coisa não representam senão símbolos convencionais, cujo significado encontra-se inevitavelmente sujeito a mudanças e aberto a questões e incertezas.
Sabemos que a música pode servir como uma técnica de relaxamento, dentre outras utilidades subjacentes a sua oitiva pura e simples. Mas acredito que a música, como objeto intelectual de estudo — seja aprendendo a ouvi-la seja estudando-a como música —, pode ajudar especificamente o Juiz para a melhoria do seu exercício profissional.
Neste contexto, o que me parece mais importante é a observação das diversas interpretações musicais dadas por músicos distintos à mesma obra. Assim, as nuances interpretativas dadas por Rampal, Moyse, Galway ou Pahud, todos grandes flautistas, mas com formações distintas, a uma mesma obra de Vivaldi ou Bach, por exemplo, podem nos ensinar que mesmo diante da mais alta qualidade técnica há diferenças interpretativas marcantes. Esta diferenciação permite identificar caminhos intelectuais que são tomados — por exemplo — quando do julgamento de grandes questões jurídicas. É o uso da arte para a busca da justiça.
Em um primeiro momento, parece loucura ou até mesmo pretensão tentar comparar aquilo que definimos como arte com o dia a dia de decisões judiciais. Mas, para ajudar nesta comparação, podemos recorrer às lições de Lia Tomás, que ensina que na Antiguidade “a música era compreendida de um modo complexo, pois ela possuía vínculos diretos com a medicina, a psicologia, a ética, a religião, a filosofia e a vida social. O termo grego para música, mousiké (pronuncia-se mussikê), compreendia um conjunto de atividades bastante diferentes, as quais se integravam em uma única manifestação: estudar música na Grécia consistia também em estudar a poesia, a dança e a ginástica. Esses campos, entretanto, não eram entendidos como áreas específicas, como saberes e atuações próprios como se os concebem hoje, mas sim como áreas que poderiam ser pensadas simultaneamente e que seriam, assim, equivalentes. Todos esses aspectos, quando relacionados com a música, tinham igual importância e, portanto, não existia uma hierarquia entre eles” (Música e filosofia – estética musical – Irmãos Vitale – 2004, SP, p.13)
Nessa linha, o ensino da música deve se inserir — dentro do que estamos tratando aqui — em um contexto mais amplo do que ele é inserido nos dias atuais. Se formos acompanhar o desenvolvimento da história da música, percebemos que ela passou de parceira da filosofia e da matemática para a posição de matéria coadjuvante no ensino humanístico. O que se propõe é justamente a reversão deste quadro. Trazer o ensino musical — seja no campo da análise estética, seja no campo do exercício da música — para o pensamento jurídico teórico. Pode-se, por exemplo, em um nível de abstração intelectual, transformar os Juízes em músicos e diante desta transformação analisar a arte de ambos — dos juízes e dos músicos.
Pergunta-se, enfim: o que será que o estudo da música pode nos mostrar para o estudo do Direito? Note-se que na antiguidade — e até mesmo na época do Iluminismo — alguns pensadores relegavam aos músicos o papel de meros artesãos, colocando os apreciadores da música em uma posição mais elevada que estes. Isto porque não se via qual a contribuição intelectual que a música daria aos seus executores. Estes, os músicos, desenvolviam apenas uma técnica, fruto de sua respectiva dedicação ao instrumento. Não se valorizava o virtuoso. O executante era aquele que seguia à risca as indicações feitas pelo compositor.
Rousseau chegava a afirmar que dentro do currículo de um homem bem nascido a técnica instrumental era um mero detalhe. Na realidade, entendia-se que aquele que ficava horas a fio se dedicando ao estudo do instrumento não tinha tempo para apreciar a boa música. O fato de dominar um instrumento era apenas uma demonstração de boa técnica, tal como o artesão demonstra quando realiza um trabalho. Não se valorizava a interpretação da música.
Em uma analogia, podemos comparar a ideia, à época da Revolução Francesa, do Juiz como mero aplicador da lei com o músico que “apenas” tocava o seu instrumento. Lembre-se de que para Montesquieu o Juiz era apenas “a boca da lei”. A ideia de Poderes harmônicos e independentes — na forma esboçada por Montesquieu — tinha como pressuposto o Poder Executivo como coordenador das atividades dos demais Poderes. Note-se que a própria Constituição Francesa de 1958 não alçou o Judiciário ao nível de um dos Poderes do Estado.
Dentro deste pensamento o bom Juiz era aquele que tinha uma boa técnica em aplicar a lei. O Juiz não poderia criar a lei, ele apenas a dizia. Era — dentro da nossa comparação — o mesmo papel a que era relegado o instrumentista que apenas tocava o seu instrumento. A posição mais nobre ficava para os compositores, que seriam os legisladores.
Todavia, para contestar esta concepção, que relegava um papel de mero executor ao instrumentista e ao juiz, a filosofia moderna — musical e do direito — construiu a ideia de que no momento da execução há criação da música e no momento da aplicação há criação do direito. Esta criação é justamente o poder dado pela ideia de interpretação. Em uma palavra, o intérprete sempre inova.
A proposta, então, é no sentido de se comparar a interpretação musical com a função judicante, com o intuito justamente de se entender estas duas áreas do saber humano. Verificar suas semelhanças e compreender suas diferenças. Trabalhar a música como parceira do direito. Estudar a música dentro do seu viés filosófico. Esquecer os juristas para ouvir Bach, Mozart e Beethoven como filósofos e doutrinadores.
O saber é um só. Há um encontro entre os teóricos do direito e aqueles que estudaram a música. Sócrates, Platão, Aristóteles, Boécio, Santo Agostinho, Rousseau, todos pensaram no Estado e na música. A volta da interdisciplinaridade do saber é necessária diante de um mundo que consome e se consome. Pensar a música não apenas para o simples consumo prazeroso e também para o ensino específico da arte de julgar.
Note-se que a tradição filosófica, como ensina Garapon, não distingue a atividade de julgar das outras atividades humanas, se interessando sobre a questão do julgamento dentro de um largo senso. Para a filosofia, o julgamento pode tanto ser moral, de gosto ou de conhecimento (p. 05).
Nesta linha, o grande flautista Quantz — professor de Frederico II —, ao escrever, em 1752, o seu ensaio de um método para aprender a tocar a flauta transversa, ensinava em capítulo próprio como se deve julgar a música e os músicos. Lembre-se de que o conceito de gosto nasce dentro da ideia de paladar. Nas palavras dos enciclopedistas do sec. XVIII, é o sentimento que se tem das belezas e das deficiências nas artes: uma discriminação imediata, como a da língua e do paladar, que se antecipa à reflexão.
Esta subjetividade de conceitos sobre arte e justiça e a busca da interpretação como forma de se entender tais conceitos é a simbiose que nutre a ideia aqui trazida da música e do direito como atividades intelectuais diretamente interligadas.