Sobre racismo e sexismo no Judiciário

7 de julho de 2020

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O Brasil vive um triste momento histórico, na verdade, o mundo vive. As notícias nos jornais que outrora remontavam a eventos públicos com a presença de várias pessoas e outros assuntos de interesse da sociedade brasileira, mesmo em meio a mais grave, senão maior pandemia mundial, cederam espaço para discussão de um velho tema, conhecido daqueles que o vivem cotidianamente, até que inconscientemente, a despeito de ser ignorado por muitos.

Falo aqui claramente e abertamente sobre o racismo, fenômeno social que passou a ser destrinchado e exposto com maior enfoque após a morte do norte-americano George Floyd no último dia 25/5, em Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos.

Os olhos do mundo se voltaram com tristeza e compaixão sobre a vida daquele que em seu último suspiro antagonicamente sussurrou “não consigo respirar”. Essa frase inundou as multidões, soou com um grito que ecoou para extremos geográficos, alcançou lugares inimagináveis, até então. Todos querem o fim da desigualdade racial, brancos e negros vão às ruas com uma só voz, na linha daquilo que era aclamado por um dos maiores ativistas sobre direito civis, Martin Luther King (1929-1968): “Black Lives Matter”.

Eu, como mulher negra, confesso que não tive coragem para assistir a cena criminosa em sua integralidade. Fiquei nauseada, impactada com a vida humana sendo ali tratada como a de um animal, mas o assunto, o resultado em si, confesso, não me trouxe espanto, porque sei que vivemos em uma sociedade racista e não é preciso assistir à lamentável morte de um homem negro para chegar a esta conclusão.

A conclusão se extrai de uma questão de pele. É no cotidiano, entre olhares, gestos, elogios mascarados de tom diminuto da cor da pele preta – “você é uma negra, com traços brancos, é linda, ah mas você não é tão escura assim” (…) – que se vive e revive todos os dias a chaga social que não pode ser ignorada.

Por muito tempo pensei que tal situação fosse aliada à questão socioeconômica. Nascida e criada na Zona Leste de São Paulo, uma das regiões mais pobres da cidade mais rica do País, a esperança de que este dissabor não se repetisse dormitava no êxito na ascensão de classe social.

Sobreveio então, após anos de muitos estudos, abdicações e escolhas entre compras de livros e quaisquer outras distrações rotineiras, de uma jovem na casa dos seus 20 e poucos anos, a tão sonhada toga. E ela veio com o esplendor digno do seu mister, com a emoção e beleza condizente com a sua importância.

Fui investida no cargo de juíza substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, o qual tenho a honra de compor e lutar com meus pares para a solidificação da prestação jurisdicional. Muitos anseios que acompanhavam a tão almejada investidura no cargo de juíza foram alcançados e sou grata à Deus, por isso. No entanto, teve um que ficou ali, inquieto, inarredável: a convivência cotidiana com as mazelas do racismo enraizado e encartado na nossa sociedade.

No desempenho da judicatura, entre uma audiência e outra, sentenças e decisões prolatadas, outro mal de igual relevância passou a ser ainda mais escancarado. O sexismo. Aqui, diferente do racismo, eu me espantei.

O racismo, seja explícito – o que de fato, nos dias de hoje é muito raro – ou seja implícito, se materializa nas esferas de poder de modo estrutural, com a ausência ou quase nenhuma presença de negros ou negras nesses espaços, o que causa a chamada crise de representatividade para o povo negro. São poucos os jovens negros que quando indagados qual profissão desejam seguir apontam juiz, promotor de Justiça, médico ou engenheiro civil como referência a ser seguida. Lado outro, a representatividade na classe artística e/ou futebolística é inegável. “Eu quero ser jogador de futebol, cantor, modelo, atriz” é o anseio dos jovens negros.

As respostas, ao contrário do que alguns dizem, não se dão porque o negro é preguiçoso e não gosta de estudar. Na verdade, são porque o negro não se vê refletido nestes lugares sociais de poder e não há efetiva política pública para tanto. É difícil se projetar para algo que é totalmente abstrato e fora do seu cenário social.

Agora o sexismo, este sim, diferentemente do racismo se dá de modo explícito e, também, ainda que involuntariamente por meio institucional e estrutural. Há de fato certa dificuldade no reconhecimento do poder estar nas mãos de uma pessoa do gênero feminino. As colegas juízas que acompanham a leitura, assim como outras que exercem cargos nas escalas de poder, com certeza se espelham nesta situação. Não são raras as vezes em que as partes, testemunhas ou até mesmo advogados relutam em se submeter à autoridade feminina em uma sala de audiência, sessão plenária do júri ou outros atos processuais.

Estas situações, com o passar do tempo são internalizadas. A mulher juíza identifica como se portar e como enfrentar os desrespeitos para com sua autoridade, de estar no centro de uma relação social estruturada para que as mulheres ali não estejam. Mas não é uma tarefa fácil. É cansativo, enfadonho e desgastante diuturnamente ter a inteligência emocional para reforçar que tem atributos e razões técnicas para estar ali, não obstaculizados pela sua condição de sexo “mais frágil”.

Acredito, sinceramente, que esta dificuldade decorre da baixa representatividade de mulheres em cargos de direção, chefia e assessoramento nas cúpulas diretivas dos Tribunais de Justiça e cortes superiores, fato que não decorre de conduta específica e voltada a este fim, mas que não conta, também, com conduta voltada ao fim oposto.

Tal qual o racismo estrutural, o machismo institucional e estrutural afeta a própria representatividade plural e necessária ao Poder Judiciário em todas as esferas de atuação. É preciso que mulheres alcancem patamares de presidentes de tribunais estaduais, cortes superiores, assessoramento à presidência do tribunal, corregedoria, conselho da magistratura, escolas da magistratura. É preciso vê-las. É preciso representá-las.

Se esta luta é árdua para as mulheres brancas, o que podemos dizer das mulheres negras que padecem de múltipla discriminação. A tarefa é ainda mais desafiadora. Inicia na própria inexpressividade destas nas cortes de Justiça, em razão do acesso à carreira pelas questões tratadas alhures e como um círculo vicioso, redunda na ascensão profissional e abstinência praticamente total da sua presença nos tribunais superiores e cortes de Justiça.

O contexto histórico de Estado escravocrata reticente na abolição e efetivo bem estar dos negros após o festejado 13 de maio de 1888 – fruto de incansável luta do movimento negro e não de ato exclusivamente volitivo, espontâneo e voluntário da Princesa Isabel – se concretiza, até hoje, 132 anos pós Lei Áurea. Os dados não metem. As mulheres negras segundo censo judiciário de 2018 representam cerca de 2% da magistratura brasileira no cenário dos 38% ocupados pelo gênero feminino.

O resultado decorre de um tratamento desigual conferido às mulheres negras muito antes do ingresso na carreira da magistratura. Exsurge de verdadeira intersecção social opressiva entre raça, classe, gênero que são abalizadas conjuntamente, sem qualquer prevalência entre uma e outra, o que denota a difícil missão daquelas que ousam fazer parte deste inexpressivo percentual. Isso porque, agrega-se ao sexismo já exposto, o racismo agressivo, o mesmo que culminou na morte de George Floyd, a discriminação e outros entraves sociais.

A professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) Kimberlé Crenshaw, citada por Raíza Feitosa Gomes, afirma que a “ interseccionalidade trata especificamente da forma pela qual o racismo, patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. É disto que estamos falando, de fatores múltiplos que quando interligados causam uma explosão de dificuldades e contraposições a serem superadas e que, por conseguinte, influem diretamente no perfil da nossa magistratura, masculina e branca, contraposto aos dados censoriais da população brasileira majoritariamente feminina e negra.

Uma questão foi levantada, passa a ser discutida nas grandes academias e no próprio Poder Judiciário. Estamos diante de um avivamento histórico pela mudança, pelo efetivo fim da interseccionalidade. A solução, para tanto, está no ataque. No ataque coordenado e inteligente de brancos, pretos, homens e mulheres. É preciso reconhecer que a ausência de representatividade é um problema institucional, histórico e arraigado que deve ser sucumbido. O prognóstico é inafastável. Estratégias institucionais devem ser pensada em âmbito nacional e apenas deste modo alcançaremos a verdadeira isonomia, pilar matriz para o Estado Democrático do Direito.

Nota

1 “Cadê a Juíza – Travessias de magistradas negras no Judiciário brasileiro”, Editora Lumens Juris, 2020.