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Sonegação e Concorrência Desleal

23 de novembro de 2012

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O mercado brasileiro de cigarros caracteriza-se por um elevado grau de informalidade, posto que aproximadamente 30% do total de cigarros comercializados no País (32 bilhões de cigarros) são fruto de contrabando ou sonegação fiscal, o que gera prejuízos anuais aos cofres públicos da ordem de R$ 3.000.000.000,00 (três bilhões de reais).

O aumento crescente da carga tributária incidente sobre a fabricação de cigarros é parte integrante da política pública de restrição ao consumo dos produtos derivados do tabaco e, também, um imperativo de justiça fiscal vis a vis o caráter supérfluo do produto (Constituição Federal, art. 5o, caput, e art. 150, II). A carga tributária do cigarro representa, atualmente, cerca de 65% (sessenta e cinco por cento) do preço de cada maço de cigarro pago pelo consumidor final.

Nesse contexto, a sonegação fiscal, praticada em setor tão peculiar, gera consequências relevantes, que merecem do legislador regras especiais, que inibam a utilização de iniciativas ilícitas de não pagamento contumaz de tributos como instrumento de obtenção de indevida vantagem concorrencial.

A fabricação e comercialização de cigarros envolve atividade cuja tributação é orientada, primordialmente, pelo signo da extrafiscalidade, e aquele que não paga tributos, além de lesar, gravemente, os cofres públicos e de inviabilizar políticas sociais que seriam custeadas com o produto dessa arrecadação fiscal, poderá promover a venda de cigarros a um preço muito inferior ao real preço de custo e, o que é mais grave, abaixo daquele praticado por seus concorrentes, que cumprem com as suas obrigações tributárias. Em outras palavras, o sonegador de impostos nesse segmento da economia pratica verdadeira concorrência desleal, na medida em que seus preços artificialmente  baixos desviam clientela de concorrentes que cumprem suas obrigações fiscais afrontando o princípio da livre concorrência (Constituição Federal, art. 170, III; Lei no 9.279/96, art. 195, III).

E como forma a evitar, ou ao menos reduzir, o descumprimento das normas fiscais, há, com relação à fabricação de cigarros, exigência especialíssima, imposta pela Receita Federal do Brasil, que consiste na exigência de obtenção pelos fabricantes de Registro Especial. Faz-se impositiva, ademais, a utilização do Sistema de Controle e Rastreamento da Produção, denominado SCORPIOS, similar ao existente para o setor de bebidas (Sistema de Controle de Produção de Bebidas – SICOBE).

Há mais de três décadas vigora o Decreto-Lei no 1.593/77, o qual determina que, após o devido processo legal administrativo, a Receita Federal do Brasil poderá cancelar o Registro Especial concedido aos fabricantes de cigarro, caso seja constatado o descumprimento reiterado de obrigação tributária, prática de conluio, fraude, crime contra a ordem tributária, dentre outras hipóteses.

Não se trata de exigência isolada na legislação, já que diversos outros diplomas legais e a própria Constituição Federal preveem mecanismos semelhantes, em maior ou menor intensidade, de indução à regularidade fiscal, pelos quais a quitação de tributos é exigida para o exercício de determinados direitos. Cite-se, por exemplo, a contratação com o Poder Público depende da comprovação da regularidade fiscal (Constituição Federal, art. 195; § 3o; Código Tribunal Nacional, art. 193; Lei de Licitações, no 8.666/93, art. 29).

Embora, em processos judiciais, instaurados por empresas que não ostentam regularidade fiscal, seja alegada a inconstitucionalidade da exigência do Registro Especial pela Receita Federal do Brasil, ainda não concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.952, o colendo Supremo Tribunal Federal, através de decisões proferidas no controle difuso, vem decidindo no sentido de que a exigência legal do Registro Especial é compatível com a Constituição Federal.

Em emblemático julgamento relativo à fabricante de cigarros American Virginia, na Ação Cautelar nº 1.657/07-RJ, que tinha por objeto restabelecer o Registro Especial da fabricante, sob o fundamento de que a sua revogação teria configurado sanção política, a Suprema Corte, após constatar a existência de débitos tributários que somariam mais de dois bilhões de reais e, ainda, averiguar a reiterada prática de sonegação fiscal, concluiu que o procedimento de cassação de seu Registro Especial pela Receita Federal do Brasil não afrontou a Carta Politica.

No voto condutor do Ministro Cezar Peluso, que abordou a questão tanto pelo prisma da sonegação fiscal, como pelo aspecto de que o inadimplemento sistemático causa desequilíbrio concorrencial no setor, o tema foi abordado, nos seguintes termos:

Prevê o Decreto-Lei no 1.593/77, como condição inafastável para o exercício da atividade econômica da industrialização de cigarros, um conjunto de requisitos que, se descumpridos, subtraem toda licitude à produção. Tal imposição parece-me, já neste juízo sumário, de todo razoável e válida. (…)

O IPI é rubrica preponderante no processo de formação do preço do cigarro, de modo que qualquer diferença a menor no seu recolhimento, por mínima que seja, tem sempre reflexo superlativo na definição do lucro (neste caso, aparentemente arbitrário) da empresa. Que dizer-se, pois, da repercussão do seu não recolhimento? Esse poderoso impacto dos tributos na estrutura de custos e preços da produção, não menos que no lucro do produtor, é incontestável realidade matemática. (…).  Ora, como a alíquota de IPI, em relação à indústria de cigarros, é substancialmente mais elevada, seu não recolhimento (coeteris paribus) aumentará, de forma ainda mais ostensiva, a variação do lucro sobre o faturamento. O Decreto-Lei nº 1.593/77 outorga exclusivamente aos detentores de registro especial na Secretaria da Receita Federal o direito de exercer atividade de fabricação de cigarros, cuja produção, como aduz o memorial da Fazenda, é meramente tolerada pelo poder público, que a respeito não tem alternativa política e normativa razoável. Sua função está em resguardar interesse específico da administração tributária no controle da produção de cigarros e que não é apenas de cunho fiscal-arrecadatório. Antes, a indústria do tabaco envolve, como é intuitivo, implicações importantes sobre outros atores e valores sociais, tais como os consumidores, os concorrentes e o livre mercado, cujos interesses são também tutelados, com não menor ênfase, pela ordem constitucional(…).

Dadas as características do mercado de cigarros, que encontra na tributação dirigida um dos fatores determinantes do preço do produto, parece-me de todo compatível com o ordenamento limitar a liberdade de iniciativa a bem de outras finalidades jurídicas tão ou mais relevantes, como a defesa da livre concorrência e o exercício da vigilância estatal sobre setor particularmente crítico para a saúde pública.

Daí que o poder previsto no Decreto-Lei e as conseqüências que dele tirou a autoridade fazendária se afiguram válidos prima facie: se a regularidade fiscal é condição para vigência do registro especial, que, por sua vez, é condição necessária da legalidade da produção de cigarros, não há excogitar lesão a direito subjetivo da autora, mas ato administrativo regular (conforme às regras), que abortou perpetuação de uma situação de ilegalidade.

Outra importante ferramenta destinada a refrear a sonegação no mercado de cigarros consiste na recente e bem-sucedida adoção do preço mínimo (Lei nº 12.546/11), a qual viabilizou o estabelecimento de uma base de cálculo economicamente verossímil para a imposição tributária no setor que, aliada à presunção de ilegalidade de qualquer preço abaixo do estabelecido,  facilita a fiscalização tributária e exaure o  argumento de que os varejistas aumentam suas vendas adquirindo esses produtos em virtude da atratividade do preço final ao consumidor.

A expressiva evasão fiscal do setor de fabricação de cigarros é de conhecimento geral há vários anos, e sempre esteve associada à concorrência desleal por parte das empresas que não cumprem as obrigações fiscais. O assunto, inclusive, já foi objeto de atenção do Congresso Nacional, através da instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito, no ano de 2004, para apurar os fatos relacionados à pirataria de produtos industrializados, e há numerosos pronunciamentos do Governo Federal a respeito do tema.

Não obstante o controle rigoroso por parte da Administração com relação às etapas do processo de fabricação e comercialização dos produtos derivados do tabaco, previsto no Decreto-Lei no 1.593/77, é fato constatado pelas estatísticas que o arcabouço normativo, até então vigente, não era suficiente para combater, de forma eficaz, a prática de sonegação fiscal, e, por conseguinte, a concorrência desleal no setor.

E, nesse cenário, por iniciativa salutar do Poder Executivo de combate ao  comércio ilegal de cigarros, foi editada a Medida Provisória no 563/12, e, posteriormente promulgada a Lei nº 12.715/12, que promoveu alterações relevantes ao Decreto-Lei no 1.593/77, ao introduzir  novas exigências para obtenção do Registro Especial e hipóteses adicionais para a sua cassação.

A nova legislação prevê que a comercialização de cigarros sem o devido cumprimento de obrigações instrumentais, tal como a ausência de emissão das respectivas notas fiscais, poderá ocasionar a cassação do Registro Especial.

As novas regras que visam ao cumprimento de obrigações acessórias como condição para a manutenção do Registro Especial são relevantes, na medida em que atualmente não há dúvidas de que os deveres instrumentais possuem importância imprescindível tanto na identificação do evento tributável, como para o exercício do controle exercido pela Administração pública.

A Lei no 12.715/12 também dispõe que não será concedido novo Registro Especial à empresa, caso conste de seu quadro societário pessoa física que tenha participado, na qualidade de sócio, diretor, gerente ou administrador, de outra pessoa jurídica, que teve o seu Registro Especial anteriormente cancelado. Essa exigência se justifica pela reiterada iniciativa de acionistas e quotistas de fabricantes de cigarros de, após longo percalço do governo para promover o cancelamento do Registro Especial de empresa sonegadora, simplesmente migrarem para outra empresa, para dar continuidade à sua estratégia comercial de reduzir o preço dos produtos através do não pagamento de impostos.

No mesmo sentido, o novo diploma legal também passou a vedar a produção de marcas de cigarros anteriormente comercializadas por fabricantes que tiveram o Registro Especial cancelado, através de novos fabricantes. Pretendeu o legislador combater manobra, até então largamente praticada, de, após ter o seu registro cancelado, a empresa punida com a cassação de seu Registro Especial transferia suas marcas de cigarros à outra, como forma de manter seu produto no mercado e, possivelmente, continuar a auferir lucros com a ardilosa empreitada.

A finalidade do novo diploma legal é a de controlar a produção e comercialização de cigarro, de modo a garantir a coexistência harmônica das liberdades, especialmente a liberdade de concorrência, e não causa, por essa razão, restrição excessiva, nem desproporcional ao direito fundamental de livre exercício de atividade lícita. Ao contrário, as novas regras inibem o exercício abusivo e ilícito desse direito e contribuem sobremaneira para a manutenção do equilíbrio entre os concorrentes do setor.

Afinal, a garantia ao livre exercício de atividade econômica, assim como qualquer garantia constitucional, não é absoluta, mas passível de ser condicionada pela ordem jurídica. Cabe ao Estado regular e estabelecer as normas que lastrearão o exercício da atividade econômica, sempre tendo em vista o bem-estar social, sendo certo que, no âmbito da peculiar atividade econômica de fabricação e comercialização de produtos derivados do tabaco, estão em jogo relevantes interesses sociais, os quais as novas normas em vigor pretendem tutelar.

Pelo exposto, o recrudescimento das exigências pelo Governo Federal para a obtenção da licença especial, com a finalidade de atuação no setor, terminará por ocasionar aumento da arrecadação de tributos, por meio da melhora da eficiência da máquina fiscalizatória. Essa medida provocará a consequente redução da sonegação, preservando o equilíbrio concorrencial no mercado, e, em última análise, resguardando o interesse de toda a sociedade.

Notas___________________________________

1 Conforme relatório final do Estudo da Fundação Getúlio Vargas, em agosto de 2010, sobre o tema “O Sistema Tributário e o Mercado de Cigarros: Evolução Análises e Perspectivas”.

2 Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em Ação Cautelar nº 1.657-6/RJ, Rel. Cezar Peluso, j. 16.5.2007.

3 O referido voto foi acompanhado pelos Ministros Carlos Ayres de Brito, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cármen Lúcia e Ellen Gracie.

4 O artigo 7o do Decreto no 7.555/11 fixou o preço mínimo de venda no varejo de cigarros em R$3,00 (três Reais) para o exercício de 2012.

5 A Lei nº 12.546/11 sujeita o varejista a penalidades expressivas, tais como o perdimento dos cigarros comercializados em desacordo com esta norma e a proibição da comercialização de cigarros, pelo prazo de cinco anos-calendário a partir da aplicação da pena de perdimento.

6 A íntegra do Relatório da CPI pode ser acessada através do site da Câmara dos Deputados

<http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/52-legislatura/cpipirat/relatoriofinal.pdf.>

7 Empresas Industriais de Cigarros que Sonegam os Tributos Devidos, conforme entrevistas do Secretário da Receita Federal do Brasil, publicadas no O Globo, 20.8.2007; Folha de São Paulo, 09.12.2007; O Estado de São Paulo, 12.02.2008.

8 A Lei no 12.715/2012 foi publicada no Diário Oficial da União de 18.9.2012, resultante da conversão da Medida Provisória no 563/2012.

9 “Art. 2o O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos: (…)

§ 1o Para os fins de aplicação do disposto no inciso II do caput, deverão ser consideradas as seguintes práticas reiteradas por parte da pessoa jurídica detentora do registro especial:

I – comercialização de cigarros sem a emissão de nota fiscal;”

10 “Art. 2o-B. Fica vedada a concessão de novo registro especial, pelo prazo de 5 (cinco) anos-calendário, à pessoa jurídica que teve registro especial cancelado conforme disposto no art.

2o (…)”

Parágrafo único. A vedação de que trata o caput também se aplica à concessão de registro especial a pessoas jurídicas que possuam em seu quadro societário:

I – pessoa física que tenha participado, na qualidade de sócio, diretor, gerente ou administrador, de pessoa jurídica que teve registro especial cancelado conforme disposto no art. 2o”

11 “Art. 2o -D. É vedada a produção e importação de marcas de cigarros anteriormente comercializadas por fabricantes ou importadores que tiveram o registro especial cancelado conforme disposto no art. 2o.”