Edição 279
Sonho de um recreio sem bedéis
7 de novembro de 2023
Frederico Mendes Júnior Presidente da AMB
A Justiça Eleitoral ocupa o centro do debate público, alvo de críticas dos dois grupos que polarizam a política nacional. Se, no passado recente, era objeto de fake news que questionavam a confiabilidade da votação eletrônica, agora, a motivação dos ataques é o trabalho regular dos tribunais na fiscalização de partidos e candidatos. Ao desagradar indistintamente guelfos e gibelinos, a Justiça Eleitoral dá provas de sua imparcialidade – afinal, não está a serviço de nenhum projeto além da efetividade da prestação jurisdicional.
Neste cenário em que a existência da Justiça Eleitoral é refutada, cumpre revisitarmos a história das eleições no Brasil, marcada por fraudes desde que a primeira cédula foi depositada na primeira urna, ainda antes da proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Não havia, então, eleições livres, mas um aparato informal de manejo da vontade do eleitorado, que ficou conhecido como “voto de cabresto” – por meio do qual se mantinham os interesses e privilégios das elites dominantes.
O “voto de cabresto” prosperou na República Velha, vinculado a outras figuras icônicas do período: os coronéis, que exerciam o poder de forma autoritária, dentro de redutos eleitorais controlados – que, infelizmente, em muitos lugares, até hoje se encontram vigentes. Na época, impunha-se o “cabresto” de dois modos, ora por coerção (isto é, sob sopapos e pontapés), ora em troca de benesses e favores. Semelhante movimento, pendular, levou à consolidação dos mais característicos fenômenos da política brasileira: a violência e o clientelismo.
Foi nesse contexto que Getúlio Vargas, “Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil”, em 24 de fevereiro de 1932, editou o Decreto no 21.076, que estabeleceu o Código Eleitoral e criou a Justiça Eleitoral – composta de um tribunal superior, de cortes regionais nas capitais das unidades da Federação e de juízes eleitorais nas comarcas. É sabido que o subscritor do ato normativo, pouco depois, com a emergência do Estado Novo, veio a romper com o ordenamento; porém, a necessidade de uma entidade responsável pela lisura do pleito, ali demonstrada, segue atual e urgentíssima.
Os detratores da Justiça Eleitoral acusam-na de se constituir como uma singularidade do Brasil – o que é evidente e não representa qualquer demérito, pois um País de extensões colossais, que promove eleições em todos os seus cinco mil municípios a cada biênio, só pode ter um modelo próprio, afeito às suas carências e adaptado às demandas de seus cidadãos. Todavia, que ninguém se engane: as grandes democracias do mundo não prescindem, jamais, de organizações encarregadas das eleições, mesmo que fora do Judiciário.
Nos Estados Unidos, a Federal Election Commission é uma agência que atua no controle do financiamento das campanhas, sobretudo no que se refere a limites e proibições impostas às legendas e seus postulantes. Na Índia, a Election Commission of India regula e supervisiona o processo eleitoral e desfruta da prerrogativa de agir na hipótese em que a legislação não é suficiente para lidar com determinadas situações. No Reino Unido, há a Electoral Comission; na Alemanha, o Bundeswahlleiter; na Espanha, a Junta Electoral Central; no Canadá, a Elections Canada; no México, o Instituto Nacional Electoral; e, na Argentina, a Cámara Nacional Electoral – apenas para ficarmos em alguns exemplos.
Tais nações possuem instituições incumbidas das eleições – e nenhuma é cópia da outra, embora se baseiem igualmente no fundamento de que, nas democracias, as eleições devem ser gerenciadas por órgãos autônomos e independentes; do contrário, aqueles que já desempenham mandatos eletivos estarão em inevitável situação de vantagem, a conduzir a máquina em proveito particular, subvertendo os princípios constitucionais de que todo poder emana do povo e de que todos são iguais perante a lei.
A Justiça Eleitoral, indispensável para assegurar a continuidade do Estado Democrático de Direito, torna-se a cada dia mais relevante e proficiente. De acordo com dados do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a produtividade da Justiça Eleitoral cresceu 64,8% em 2022 na comparação com 2018, ano em que também ocorreram eleições presidenciais. Esse aumento vertiginoso foi uma contingência do momento histórico, a que os magistrados souberam responder com prontidão.
A insistência em dissolver a Justiça Eleitoral faz lembrar um diálogo entre os personagens doutor Godinho e João Eduardo, em “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz, livro publicado em 1875. Diante dos impropérios deste à igreja, aquele retorquiu, enfarado: “Quando tiverem dado cabo da religião de nossos pais, que têm os senhores para a substituir? Que têm? Mostre lá!” A verdade é que, a julgar pela ausência de propostas de um organismo que assuma as funções reservadas à Justiça Eleitoral, seus antagonistas não tencionam aperfeiçoar o sistema, mas tão somente eliminá-lo – no sonho idílico de um recreio sem bedéis.