Edição 167
Tempo, ironia e linguagem forense
21 de julho de 2014
Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo Magistrado aposentado, Professor
Confesso meu aborrecimento com os tais embargos. Não pelo resultado. Vivo desde cedo as divergências dos tribunais, recordando tio Dario a esbravejar contra os votos desfavoráveis. Para meus alunos, achei um bordão: “Terra boa de criar morcegos!”. A classe relaxava, a lição prosseguia. Meu aborrecimento é outro: as mais de duas horas de erudição em linguagem rebuscada e rebarbativa. Lamentei não falar javanês. Acudiu-me à memória comentário de Mário Henrique Simonsen, feito à saída de uma audiência em que figurara como testemunha:
– Essa gente ignora que tempo é dinheiro! – ironizou, zangado.
Sua contrariedade era com o juiz do processo que quis saber o significado de muitas expressões do mercado financeiro. Para ele, economista e professor, o melhor seria trocar o depoimento por um glossário de termos usuais. Não digam que o grave da hora exigia a profundidade de razões bem argumentadas. O problema é que o voto visava mais ao interesse geral da sociedade e menos aos colegas de plenário arraigados às suas convicções. Nem creio que o eminente decano, culto e educado, aprovaria Nelson Rodrigues na irreverência que alardeava que “de gente burra só quero vaias”.
Lógico que apreciamos o debate ao vivo pela televisão. A questão é a eficiência e a racionalidade do método. Ganharíamos todos se a decisão vitoriosa fosse proclamada em tópicos fundamentados, destacando as contrarrazões dos vencidos. Adotada essa prática, haveríamos de combater a linguagem prolixa e vaidosa, sendo obrigatório o uso do vernáculo, evitando estrangeirismos. Combater, de mais, o “juridiquês” e o “legalês”. Repensar, enfim, como exortou Pasquale Neto, na Folha de S. Paulo de 18/9/2013, a impertinência de pérolas do gênero “com supedâneo no artigo…” e não “com base…”, que todos entendem.
Não nego valor à tecnicidade e ao ritualismo. O que prego é a simplificação da linguagem para ganharmos em sentido e clareza narrativa. Nas decisões judiciais, de qualquer instância, o excesso verbal gera contradições ou obscuridade, motivando embargos de declaração para esclarecimentos. Tampouco cogito de vulgarização para facilitar a compreensão dos processos. Expressões consagradas permanecem. Por exemplo, desacato, arrolamento, prevaricação. Proponho é o fim do risível e a consciência do ridículo. Óbvio que os agora célebres embargos infringentes continuam até que o legislador resolva eliminá-los das cartilhas recursais.
A par disso, parece-me já intolerável, hoje, o requinte burlesco de termos como “decisão objurgada”, “sodalício”, “digesto processual”, “novel diploma”, “idade provecta”, “disposição contumeliosa”. Toda linguagem deve ser pertinente e adequada. Soa pedante formular frases rocambolescas para externar o cotidiano da vida de relações. Empregar teorias, como a do domínio do fato, exige explicações antes de aplicá-la à trama criminosa. O objetivo final é o bem da Justiça, reduzindo desinteligências, o peso das críticas, as hostilidades, e mesmo, curiosamente, anedotas e picardias como catarses sociais.
Sei da verborragia do nosso bacharelismo atávico. Em 1920, Sinhô, em Fala, meu Louro, fez piada com a loquacidade de Ruy Barbosa. Custa-nos encerrar discurso ou qualquer escrito. No entanto, urge sepultar os panegíricos da medieva idade; chegamos ao terceiro milênio. O homem faz o estilo. Devia haver censura retórica para cortar palavras, as repetições e o apreço narcísico à erudição. Se acusarem que a sentença é coloquial e pobre, responder com Nelson Rodrigues: “Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos”. Na história de cada processo, a esperança maior é atingir a essência das controvérsias e decidir do modo mais simples, sem “perfumar a flor”, diria João Cabral de Melo Neto.
Há nisso tudo grande ironia. As montanhas de ações correntes e a teimosia da judicialização dos conflitos deveriam estimular a criatividade para otimizar o princípio da razoável duração dos processos. Há ainda o dado jurídico-normativo. As pessoas pensam em termos de normas claras e unívocas, sobretudo no Direito Penal, de sorte a confiarem que o Direito tem a última regra do jogo. O resultado, muitas vezes, é frustrante, e a maioria recebe as decisões como ultraje e prevaricação. Não são os juízes; é a lei que permite sucessivos embargos de embargos, declaratórios ou infringentes. Para piorar, sobram casos de omissão legislativa.
Nesse cenário, é provável que a crítica de Simonsen tenha sido empírica e sumamente injusta. A verdade nua e crua é que a legislação em vigor surge lacunosa, desconexa e caótica, amiúde carecida das luzes doutrinais, com reflexos nos atos do Poder Judiciário a quem incumbe consolidar, a exemplo da antiga Roma, uma nova fase na construção do jurídico brasileiro. Encontrar o meio termo das virtudes possíveis – para afirmar a efetividade dos direitos com justiça real – é o desafio de todos que exibem o belo nome de jurisprudentes.