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Tempos que foram e voltam sutilmente

15 de fevereiro de 2016

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Tecio-Lins-e-SilvaTivemos 21 anos de ditadura. Muita gente boa não gosta do nome, prefere esconder a verdade com eufemismos que não resistem a uma fria análise do que foi a vida dos advogados brasileiros naquele período.

Hoje, depois de o primeiro civil assumir a Presidência da República, em 15 de março de 1985, tivemos um surpreendente – e longo – período de estabilidade institucional. Promulgada a Constituição Cidadã, na época uma Carta digna do orgulho nacional, permitiu sete eleições presidenciais realizadas com escrutínios confiáveis e que levaram à alternância de partidos políticos no poder; o incremento da livre participação da sociedade nos debates públicos; o combate à censura; o afastamento de um presidente acusado de corrupção e o inegável fortalecimento de nossas principais instituições.

Esses 30 anos de democracia de fato garantiram a independência dos três Poderes da República, um mérito incontestável. O Supremo Tribunal Federal (STF) julga com a mais absoluta liberdade.

Se, por um lado, amadurecemos a democracia, fortalecemos suas instituições, aumentamos a participação da sociedade nos debates políticos e condenamos a censura, por outro somos permanentemente revisitados pelos fantasmas de outrora e estamos longe de nos livrar dos ranços ditatoriais. Não são raras as demonstrações de autoritarismo por parte de representantes dos três Poderes da República. Ao contrário do que se pensa, há punições em excesso e ainda se aplica a tortura como método de “confissão” nos porões das delegacias e penitenciárias do País.

No âmbito do Poder Judiciário, são os advogados as maiores vítimas desses resquícios ditatoriais, comumente apresentados sob um falso manto democrático.

Exemplo recente disso é a limitação, cada vez mais intensa, do uso do nosso remédio heroico, o Habeas Corpus (HC). Cumulado a esse preconceito, acrescentem-se os métodos pós-modernos de tortura por meio das chamadas “Delações Premiadas” em troca da liberdade, da atenuação das acusações e da negociação, inclusive, da própria pena a ser cumprida.

Tornou-se comum essa prática que impõe a renúncia ao direito de defesa, ao direito de não se incriminar, ao direito ao silêncio e ao fim da imunidade penal da mentira para os acusados da prática de atos criminosos.

Tal qual ocorreu com a decretação do Ato Institucional no 6, de 1969 – é inevitável a comparação – do dia para a noite os advogados foram surpreendidos por uma mudança total de entendimento do STF, proferida pela primeira vez nos autos do HC 109.956. Abruptamente, sem qualquer aviso prévio, passou a prevalecer, na Corte Suprema, a lógica de que é inconcebível a impetração de HC em substituição ao recurso cabível contra o acórdão que tenha denegado a ordem na instância inferior.

Qualquer advogado militante sabe que, a despeito de toda a informatização da Justiça, um recurso não é encaminhado aos Tribunais Superiores em menos de 30, quiçá 60, dias. E, quando o assunto é liberdade, quem está preso tem pressa.

Ainda bem que essa limitação durou pouco e as cortes encontraram uma forma de contornar essa prática.

Mas não são só essas as arbitrariedades modernas, com as quais convivem os advogados. Também preocupam as crescentes invasões aos escritórios de advocacia: computadores e arquivos de clientes são permanentemente devastados e a ação é fundamentada em mandados de busca e apreensão genéricos que afrontam a legalidade.

Não bastasse isso, os advogados são obrigados a delatar seus clientes, ou são igualados a eles, como se criminosos fossem. Como poderá sobreviver a advocacia, especialmente a criminal? Como garantir ao cidadão seu direito de defesa, se a ameaça de persecução penal recai sobre quem o representa?

Vivemos hoje o tempo do Estado Policial, das frequentes limitações ao exercício da defesa, de Leis que afrontam prerrogativas da Advocacia. Tempos em que os juízes não recebem advogados, desconfiam de nossos escritos e da nossa palavra; são situações estas nunca vistas no País, nem mesmo nos períodos mais sombrios, nem na época dos Atos Institucionais do regime militar.

Nesse momento de arbítrio e fúria, vale revisitar o passado, com a consciência do que não queremos repetir e a humildade de reconhecer que alguns exemplos de cordialidade e respeito à Advocacia precisam retornar nos dias atuais.

A ditadura militar brasileira, com seus seus 17 Atos Institucionais (AIs) editados sem qualquer legitimidade e regulamentados por 104 atos complementares, desmantelou os Poderes e órgãos do Estado, ignorando e tornando letra morta a Constituição. Suspendeu a democracia e criou um Estado de exceção, enterrando o Estado de Direito e as instituições democráticas.

Logo na decretação do primeiro AI, tornou-se clara a afronta direta ao equilíbrio dos Poderes, transferindo-se poderes excepcionais para o Executivo, ao mesmo tempo em que se subtraía a autonomia do Legislativo e do Judiciário.

A ditadura foi enrijecendo ano após ano e, no período entre 1968 a 1978, o Brasil viveu os piores momentos da repressão. O golpe dado como AI-5 sepultou de vez a democracia, proibindo qualquer manifestação de natureza política, autorizando a cassação dos mandatos eletivos, a suspensão dos direitos políticos, a demissão ou aposentadoria de juízes e de funcionários públicos, o fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, a suspensão do HC nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular e determinando o julgamento dos “subversivos” em tribunais de “crimes políticos”. Menos de um ano depois, em setembro de 1969, foi editada a severíssima Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei no 898/1969), que punia os “subversivos” com dez, 20, 30 anos de cadeia, prisão perpétua e pena de morte.

O regramento excepcional criado pelo Regime Militar praticamente impossibilitava a defesa dos presos políticos, pois nada pode ferir mais a luta pela defesa da liberdade do que o fim de seu melhor instrumento, seu remédio heroico, o HC. Eu próprio vivi intensamente os anos da ditadura e sou testemunha ocular dessa recente história, em que as liberdades e outros tantos direitos fundamentais estiveram rompidos, impedindo que o exercício da Advocacia pudesse ser realizado de maneira livre.

Nesse período, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) exerceu papel fundamental. A tortura foi oficializada pelo regime militar como método de investigação penal. Assim, desconstituir a prova produzida sob este procedimento odioso, inconcebível, passou a ser o objetivo principal dos criminalistas brasileiros e, por isso, a importância de suas atuações na luta em defesa dos perseguidos políticos.

Não era possível ao advogado avistar-se com o cliente preso, pois a Lei de Segurança Nacional, de 1969, estabelecia prazo de incomunicabilidade de 10 dias. Assim, antes de qualquer estratégia de defesa, o desafio do advogado era quebrar a incomunicabilidade. Isso sem poder fazer uso de HC!

As conversas, quando finalmente autorizadas, frequentemente se davam diante de agentes da ditadura, de modo que o segundo desafio do advogado era conseguir um
mínimo de privacidade.

Os chamados “anos de chumbo” – final de 1968, até o fim do governo Médici, em março de 1974 – foram os mais repressivos da ditadura, com muitas prisões injustas, torturas e mortes. Os desmandos do Estado totalitário incluíam, ainda, o recrudescimento da censura à imprensa, à música, ao teatro e ao cinema e o cerceamento absoluto da liberdade de expressão, manifestação e pensamento.

Durante quase dez anos, a Lei previu pena de morte para crimes políticos. O Decreto-Lei no 898/1969 atribuía aos juízes militares poderes de vida ou morte sobre os indivíduos, até dezembro 1978, quando foi editada a Lei no 6.620/1978. Denominada “Nova Lei de Segurança Nacional”, embora mantivesse as mesmas tipificações penais da lei anterior, ao menos diminuiu significativamente as penas atribuídas aos crimes contra a Segurança Nacional, isto é, aos chamados “crimes de sangue”. Era o início do arrefecimento da ditadura, mas apenas o início.

O Movimento pela Anistia ganhou força, com apoio de entidades como a OAB, a Associação Brasileira de Imprensa e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. As denúncias de violações aos direitos humanos cruzaram o oceano. O Brasil começou a ser cobrado por organizações internacionais e por países que viviam regimes democráticos e mantinham relações diplomáticas com o governo brasileiro.

Pressionado interna e externamente, o governo militar elaborou e encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de Lei de Anistia extremamente restritivo, que não incluía os presos da luta armada e os chamados “crimes de sangue”. O Movimento de Anistia insurgiu-se contra tal projeto, exigindo sua ampliação, para incluir os presos políticos por crimes àquela época considerados de “terrorismo”, como sequestro, assalto a banco e ações de devastação e saqueamento, bem como para inserir o que ainda hoje se busca: a localização dos desaparecidos políticos, a identificação dos mortos pela repressão do Estado e a punição dos agentes que praticaram tortura aos opositores do regime.

Os presos “excluídos” da Lei de Anistia mobilizaram-se contra o referido Projeto de Lei e entraram em greve de fome, por tempo indeterminado, em vários presídios do País, assim permanecendo durante 33 dias, até a sanção da Lei da Anistia, no dia 28 de agosto de 1979. Embora considerada uma vitória sob o ponto de vista político, a Lei de Anistia permaneceu sendo criticada, por seu caráter restritivo.

Tamanha injustiça só foi corrigida pela via do Judiciá­rio, destacadamente, mais uma vez, pela ação dos Advogados, que tiveram um duplo papel, ora no plano político (luta pela anistia, direitos humanos e liberdades), ora no plano jurídico (o dia a dia do Foro da Justiça Militar, o contato com a clientela, a representação e o importante papel desempenhado pela OAB).

Pode-se dizer que a anistia no Brasil se processou em duas frentes diversas: a política e a jurídica. E esta última deve-se, sobretudo, ao exercício da Advocacia.

Como já apontado acima, com a reforma da Lei de Segurança Nacional, em dezembro de 1978, reduziram-se, significativamente, as penas atribuídas aos presos políticos. Cabia, então, aos advogados, exigir a aplicação da nova Lei, para libertá-los, fosse por extinção de pena, fosse por liberdade condicional. Por isso é que, durante muito tempo, tinha-se a falsa impressão de que a Anistia havia alcançado também os militantes da guerrilha armada. Não alcançou.

O fato de eles terem sido soltos, por decisão dos Tribunais Militares, não significa que tenham sido anistiados. Diferentemente daqueles que voltavam do exílio, os presos políticos tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos.

A Advocacia conseguiu, mesmo no auge da ditadura, fazer que a Justiça Militar cumprisse o papel de não permitir que fosse instalada no País uma Justiça de Exceção. O Estado era de Exceção, mas a Justiça não.

Hoje, vivemos em um Estado Democrático de Direito, temos uma das Cartas Constitucionais mais belas do mundo, eleições livres e diretas para o Executivo e o Legislativo e uma democracia em permanente processo de construção e fortalecimento. Como pode, apesar desse cenário, a Advocacia brasileira sofrer abalos frequentes e tão violentos? É inconcebível!

Entre os mais recentes exemplos de afronta à Advocacia, podemos citar a Lei Anticorrupção (Lei no 12.486/2013), inspirada na legislação americana antiterrorista, fundamentada sob a lógica da “lei e da ordem”, do medo e do terror. Tal lei limita o exercício de nossa profissão, ao determinar o comportamento que devem ter os Advogados ao tomarem conhecimento de que seus clientes, eventualmente, cometeram atos de improbidade ou contrários à lei. Desrespeita-se o direito de defesa!

O direito de defesa é sagrado e não pode ser desvirtuado por uma equivocada lógica que confunde o advogado com o cliente!

O Brasil tem cedido às pressões internacionais e importado legislações que não nos vestem bem. Não nos servem, não cabem em um País ainda tão marcado por longo período ditatorial e, sobretudo, em um País que não possui, em seu histórico, episódios recentes de “terrorismo”.

Foi a ditadura que utilizou tal nomenclatura para descrever crimes praticados contra o Estado que, longe de configurar “terrorismo”, representavam uma tentativa de retomar a democracia pela força e se rebelar pela luta armada. Certo ou errado, aquele era o método adotado por jovens guerrilheiros que em nada se assemelha ao que chamamos de terrorismo nos dias atuais, cujo temor tem sido alastrado pelos Estados Unidos da América.

É no bojo dessas propostas que não nos servem que tem sido importado o preconceito e uma verdadeira satanização da Advocacia.

Não é a primeira vez que isso ocorre. Também a Lei no 12.683/2012, “para tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro”, exige que o profissional liberal envie às autoridades informações sobre operações de seus clientes, entre outras medidas que, à toda evidência, ferem o direito ao sigilo resguardado pela Constituição do Brasil.

Caso se recuse a cumprir a determinação legal, o profissional liberal pode ser considerado, por omissão, partícipe do crime de lavagem praticado por terceiro. Além disso, pode responder administrativamente pelo fato. Tremendo despropósito da Lei! Não à toa, a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) ajuizou a Ação de Inconstitucionalidade no 4.841, contra tais dispositivos da Lei no 12.683/2012, ainda em tramitação no STF, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello.

Tais determinações – de que o advogado seja um fiscal e delator de seu cliente – ferem de morte o Estatuto da Advocacia que prevê, no artigo 7o, inciso XIX, como um direito do advogado:

Recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.

 A relevância do sigilo profissional é tamanha que, mesmo quando presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, as informações de seus clientes devem ser preservadas. Segundo o art. 7o, XX, § 6o do Estatuto da Advocacia, em qualquer hipótese, é:

Vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.

Mas, não há limites para a sanha persecutória! Não bastasse a abominável delação, após a publicação da Lei de Lavagem de Dinheiro, diversos Procuradores da República começaram a sustentar que, se o réu estava respondendo a uma ação penal por lavagem de dinheiro, não poderia pagar honorários advocatícios. Sustentavam que o advogado receberia recursos provenientes de crime e, portanto, incorreria no mesmo delito pelo qual seu cliente estava sendo acusado, ou em receptação. Houve até mesmo quem pedisse, nos próprios autos da ação penal, que o réu indicasse o valor dos honorários pagos para sua defesa na causa.

Não poderia haver maior despropósito!

Ora, desde que receba seus honorários formal e regularmente, sem qualquer ato de ocultação ou dissimulação destes, o advogado não pode ser responsabilizado criminalmente pelo delito de lavagem de dinheiro de seu cliente. Tampouco pode-se impedir que o réu escolha livremente seu defensor, cuja relação deve ser de confiança.

Adotar entendimento diverso, em verdade, impossibilitaria que o acusado frequentasse um restaurante, fizesse exercícios em uma academia, fosse assistido por seu médico ou dentista, fizesse compras em um supermercado. Todos seriam receptadores em potencial, o que configuraria um desmesurado absurdo.

Não se pode admitir, sob qualquer fundamento, que o advogado que defende um criminoso seja a ele equiparado. O advogado não defende o crime, mas o criminoso.

Mas não é de pessimismo que se forja a Advocacia. Se soubemos reagir quando nada mais nos parecia favorável, é possível reagir em tempos democráticos, reforçando lemas tão fortemente defendidos pelo Estatuto da Advocacia.

Somos indispensáveis à Administração da Justiça!

Esse é nosso hino, nosso mandamento maior, que precisa ser respeitado e reconhecido como verdadeiro alicerce de uma Justiça livre e democrática.

Quando a Justiça, os juízes ou os órgãos do Poder Judiciário impõem limitações ao advogado estão impondo limitações ao próprio funcionamento da Justiça e ao Estado de Direito Democrático.

Ao ser apresentado, o Projeto de Lei no 7.508/2014 recebeu o apoio da unanimidade dos membros do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) que, em sessão plenária, aprovou o parecer do advogado Renato de Moraes, membro efetivo do IAB, assim sintetizado:

Projeto de Lei Federal. Acréscimo de dispositivo ao Código Penal. Violação de prerrogativas do Advogado. Tipificação de crime (Artigo 350-A) com a seguinte redação: “Violar ato, manifestação, direito ou prerrogativa do Advogado, nos termos da lei e no exercício de sua função, impedindo ou prejudicando seu exercício profissional. Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. §1o. A pena é aumentada de um terço, se do fato resulta prejuízo ao seu constituinte. §2o. Somente se procede mediante representação” Art. 133 da Constituição Federal. Lei no 8.906/1994. Pertinência e urgência. Acolhimento.

As prerrogativas profissionais são as garantias de que o advogado poderá cumprir seu múnus público, o que, indiretamente, se constitui também em garantia ao cliente de que terá preservados seus interesses jurídicos.

Oxalá recebamos essa proteção penal, ainda que simbolicamente, já que a reprimenda não resultará na prisão do infrator. Mas a sua existência, o simples enunciado na lei penal, consolida a proteção da cidadania e é pedagógico para os que não gostam dos advogados.

Integro uma geração de advogados que conheceu o que há de mais sombrio, repressivo e ditatorial em termos de Ordem Jurídica.

Mas aprendi que advogar é resistir; e não permitir que esses tempos recentes que se foram voltem a nos ameaçar como tem acontecido assustadoramente!

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Agradeço a pesquisa realizada por minha Colega de Escritório, Advogada Maíra Fernandes.