Tortura não tem anistia

30 de novembro de 2009

Paulo Abrão Pires Junior Presidente da Comissão de Anistia

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A aplicação da Lei da Anistia, de 1979, é um exemplo privilegiado das tensões recorrentes entre o Direito e a política. É fato que, no âmbito da criação das normas,
as relações entre o Direito e a política são insuprimíveis, e isso leva a alguns conceberem a lei como um acordo político de perdão tanto aos perseguidos quanto aos perseguidores.
Essa equivalência dos atos de resistência com os atos de repressão dos torturadores não deve prosperar. Ela não sobrevive a constatações fáticas: em 1979, o Congresso rejeitou a anistia “ampla, geral e irrestrita”; a lei não refere aos crimes dos torturadores, os quais o Estado negava existirem; não se encontra um único perseguido que tenha sido interlocutor do suposto “acordo”; e o Congresso que aprovou o projeto do governo era controlado, inclusive com a presença de “senadores biônicos”, caracterizando-se a existência de uma “autoanistia”.
O Direito tem refutado o esquecimento para os crimes de tortura, pois: tortura não constitui crime político; a teoria e a dogmática jurídicas da conectividade dos delitos também não concedem espaço para anistiar tais crimes; aspectos políticos que não estejam explícitos na lei são irrelevantes na aplicação do Direito sob a ótica do princípio da independência do juiz; a melhor tradição ética desde Nuremberg recusa a prescritibilidade e a anistia a crimes contra a Humanidade; a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos — à qual soberanamente aderimos e onde hoje o Brasil é réu — não admite “autoanistia”.
Permitir que possíveis acordos políticos afastem a Justiça valoriza a impunidade e sinaliza que em novos rompantes autoritários bastar-se-ia, ao final, realizar “acordo político” ou “autoanistia”. A conclusão é a de que não se pode admitir a lei de 1979 como um pacto ou acordo, e, mesmo se fosse este o caso, o acordo político não teria validade jurídica.
Não se trata de revisar a Lei da Anistia, mas, sim, interpretá-la adequadamente. Não se trata de revanchismo, pois não se deseja torturar os torturadores, mas sim processá-los e julgá-los segundo o devido processo legal e o direito ao contraditório. Rompida a ditadura, cabe às instituições do estado de direito estabelecer as bases para a não repetição: implementar uma Justiça de transição com memória, verdade e justiça.
Agora, a OAB acionou o STF a decidir se a tortura está abrigada na lei de 1979. A política reencontra-se com o Direito. O STF é o mais político de todos os tribunais, pois interpreta a Constituição — a síntese jurídica dos compromissos éticos e políticos da sociedade. O conteúdo político da decisão sobre a ação é inafastável, porém, a decisão precisa se pautar pelos valores postos em nossa ordem jurídica democrática.
Sinalizaremos a não repetição e consolidaremos a democracia e seus valores? Terá o Direito um papel civilizatório capaz de promover o que há de melhor na política: as garantias para as liberdades públicas presentes e futuras, contra todas as formas de autoritarismos, de esquerda ou de direita?
Publicado no jornal “O Globo” do dia 24/09/09.