Edição

Transporte coletivo alternativo, aspectos jurídicos

28 de fevereiro de 2007

Clovis Beznos Professor de Direito Administrativo da PUC-SP

Compartilhe:

O tema proposto objetiva, em primeiro lugar, fazer a distinção entre os termos “transporte” e “tráfego”, uma vez que essa palavras retratam a mesma realidade. De fato, o termo “transporte”, segundo o Dicionário Aurélio, significa o ato ou efeito de transportar, enquanto o termo “tráfego” tem seu significado ligado ao ato de transitar, no caso de veículos, ao fluxo.

Sentido diverso existe, pois, em expor sobre a ausência de tráfego e a ausência de transportes. De fato, quando não existe o tráfego, ou seja, quando o tráfego não é intenso, maior é a comodidade para quem pratica o ato de transitar, parecendo-nos evidente que a ausência de tráfego não é fator conducente à violência.

Coisa diversa se dá com o transporte, pois, enquanto a ausência de tráfego significa conforto, a ausência de transporte certamente se constitui em fator de extremo desconforto. Esse desconforto que advém da falta de oferta de transporte se verifica de diversas maneiras: uma, quando as pessoas não conseguem se locomover, pela ausência de veículo transportador; outra, por exemplo, quando a oferta de transporte é insuficiente para a demanda de passageiros, fazendo com que a ocupação dos veículos transportadores seja maior do que uma situação de normalidade.

Destarte, quando se pensa em pessoas tentado ocupar o mesmo lugar no espaço, na ânsia de se verem transportadas, em situação de extremo desconforto, facilmente se pode até intuir ser essa uma situação passível de gerar violência.

É claro que, nessa primeira análise, não se tem em mira examinar a violência oriunda de acidentes veiculares que podem ocorrer, seja em virtude do transporte, seja em virtude, muitas vezes, da alta velocidade, que se atinge em razão da baixa incidência de tráfego.

De qualquer sorte, como o tema refere além da ausência a palavra ineficiência, cabe afirmar-se, em primeiro lugar, que somente incide a ineficiência quando incide o dever da eficiência. O dever da eficiência é ligado à prestação de alguma atividade.

Ora, como o tráfego não se constitui em uma atividade, ao tratarmos do dever da eficiência, nos lindes colocados, somente podemos nos referir aos transportes, porque esses sim podem se constituir em uma atividade pública ou privada.

A atividade privada de transportes tem sua eficiência imbricada, exclusivamente, com o atendimento das normas de trânsito, o que compreende a habilitação para transportar, a segurança pessoal e de terceiros, os equipamentos obrigatórios, e o respeito aos terceiros, igualmente envolvidos no trânsito.

De outra parte, o transporte coletivo de passageiros tem sua eficiência inserida na qualidade e quantidade, devendo atender à demanda de passageiros. Quando isso não ocorre, está-se diante da ineficiência de transportes coletivos de passageiros, que pode ser, como serviço público, prestado diretamente pelo Poder Público, ou indiretamente, por via de delegação, pelos institutos da concessão ou permissão.

Quando se trata da delegação da execução dos transportes coletivos, evidenciam-se quatro interesses: o interesse público, o interesse dos passageiros, o interesse dos concessionários ou permissionários de serviços públicos e o interesse dos empre-gados utilizados no desenvolvimento dessa atividade.

O interesse público consiste na melhor execução possível dos serviços públicos; o interesse dos passageiros está voltado para uma maior e mais cômoda oferta possível de transportes; o inte-resse dos concessionários e permissionários de serviços públicos é ter uma maior lucratividade, e o interesse dos empregados das transportadoras está na manutenção de seus empregos.

De fato, ao tratar do instituto da concessão de serviços públicos, anota o preclaro professor Celso Antônio Bandeira de Mello, in “Curso de Direito Administrativo”, 12ª edição, Malheiros Editores, 2000, pág. 610: “Para o concessionário, a prestação do serviço é um meio através do qual obtém o fim que almeja: o lucro. Reversamente, para o Estado, o lucro que propicia ao concessionário é meio por cuja via busca sua finalidade, que é a boa prestação do serviço.”

Os usuários de serviços públicos ostentam um direito a sua utilização, do que decorre o direito a sua adequada prestação, como declara a mui ilustre Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, in “Direito Administrativo”, 11ª ed. Atlas, 1999, pág.102: “Pelo princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público, desde que a pessoa satisfaça às condições legais, ela faz jus à prestação do serviço, sem qualquer distinção de caráter pessoal.”

Os empregados das empresas prestadoras de serviços públicos, por seu turno, na manutenção e oferta crescente de emprego, têm o interesse respaldado pelo relevante princípio inserto na Magna Carta (art. 170, VIII) como informador da Ordem Econômica e Financeira, que consiste no dever da “busca do pleno emprego”.

Em matéria do serviço de transporte coletivo de passageiros, como surge o chamado “transporte alternativo” realizado com utilitários – peruas ou “vans”? Surge esse transporte, aparente-mente efetuado por desempregados, em estado de desespero, que, sem alternativa, utilizam seus veículos para sobreviver, transportando passageiros nas horas do rush. Tal atividade é então encarada com simpatia por todos que vislumbram, nesses desempregados, até algo de heróico, no sentido de luta pela sobrevivência. Os passageiros aderem à novidade porque esse tipo de veículo é mais rápido que o ônibus, suas poltronas são estofadas, enquanto as dos ônibus são de material duro.

A aceitação pelos passageiros e a permissividade das autoridades fiscalizadoras determinam o crescimento dessa atividade absolutamente clandestina. Tal situação, em São Paulo, vem de encontro ao desinteresse das empresas transportadoras em lutar pela repressão da atividade, em virtude da chamada “municipalização dos transportes”, efetuada pelo Governo Erundina, que instituiu um sistema pelo qual as empresas transportadoras constituíam-se em meras arrecadadoras do preço dos transportes para a Prefeitura, que as remunerava pelos quilômetros rodados. Assim, o desvio de passageiros refletia nos cofres públicos e não no lucro das empresas transportadoras.

Com a inércia das autoridades, com o interesse de alguns políticos em prestigiar a clandestinidade, ao argumento da defesa de desempregados, a atividade clandestina toma corpo e se alastra por todo o Estado. O crescimento da atividade clandestina de transporte de passageiros por utilitários provoca séria concorrência aos transportes regulares, que passam a sofrer com a diminuição de passageiros, o que começa a provocar uma retração do transporte regular e a conseqüente diminuição da oferta de emprego nesse importante setor de atividade.

Essa situação é refletida pela “Resolução da CUT e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Trans-portes sobre o Transporte Informal e Clandestino”, datada de 23 de março de 1998, em que entidades de classe se opõem aos transportes clandestinos, demonstrando que eles conduzem ao fim da regulamentação dos transportes, gerando caos no setor, com o reflexo evidente na diminuição da oferta de emprego dos trabalhadores do setor.

A Resolução demonstra a situação caótica ocasionada pela informalidade nos transportes na América Latina, noticiando o ocorrido nas Cidades de Santiago, no Chile, Lima, no Peru, e Cidade do México, no México, elencando as conseqüências desse chamado “transporte alternativo” para os trabalhadores, nos seguintes termos: “presença de trabalhadores assalariados sem carteira assinada; desconhecimento da convenção coletiva da categoria; total flexibilização das condições de trabalho (como longas jornadas de trabalho etc.); desrespeito ao caráter de prestação de serviço público (por exemplo, não há compromisso de atender a população fora dos horários de pico não se respeitando as “gratuidades” da terceira idade, deficiência física, estudantes, etc.); esses setores funcionam sem nenhuma garantia para os passageiros contra acidentes; aumento do desemprego urbano no transporte público, pois para cada ônibus substituído cessam 7 empregos diretos, sem contar que, sob a fachada de uma grande parte dos ‘chamados transportes alternativo’, se escondem proprietários de vários veículos, que, sem respeitar as condições legais, exploram um grande contingente de desempregados; utilização e exploração da mão-de-obra infantil, em que crianças menores de 14 anos estão trabalhando como cobradores em locais prejudiciais a sua formação e a seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.”

Assim, aquilo que, no princípio, fora vislumbrado como solução alternativa para desempregados, em verdade se caracteriza como fonte de desemprego, uma vez que, segundo informações que nos foram prestadas por representantes do setor, um veículo auto-ônibus, no serviço regular, é gerador de emprego para pelo menos seis pessoas, considerando-se motoristas, cobradores, fiscalização e pessoal da manutenção. Um utilitário, pelo contrário, abre a possibilidade de emprego sem as garantias devidas a, no máximo, duas pessoas.

De fato, os veículos utilizados não são apropriados ao transporte profissional de passageiros, em caráter de continuidade, porque não ostentam condições de segurança, uma vez que – segundo as normas técnicas da Resolução CONTRAN nº 811, de 08.04.96, que “estabelece os requisitos de segurança para veículos de transporte coletivo de passageiros (ônibus e microônibus) de fabricação nacional e estran-geira.” – esses utilitários não podem ser classificados como veículos de transporte de passageiros.

Com efeito, tais veículos não se amoldam no conceito estabelecido por citada Resolução, na única categoria em que poderiam ser classificados, a de microônibus, uma vez que o parágrafo único de seu artigo 1º, estabelece:  “Para efeito desta Resolução, considera-se como microônibus o veículo de transporte coletivo de passageiros projetado e construído com finalidade exclusiva de transporte de pessoas, com lotação de, no máximo, 20 passageiros e dotados de corredor interno para circulação dos mesmos.”

Esses veículos utilizados pelos “perueiros” não são dotados de corredor interno e não se ajustam às demais normas técnicas de segurança fixadas na Resolução referida, como se pode conferir.

De outra parte, precária também é a situação das vítimas de acidentes de trânsito, que vêm, aliás, ocorrendo com esses veículos de forma constante, uma vez que o “perueiro” não tem patrimônio para honrar a cláusula da incolumidade, que se encontra ínsita ao contrato de transporte.

Vejamos, ainda, e de outra parte, a análise dessa clandesti-nidade sob o prisma jurídico: O serviço de transporte coletivo municipal de passageiros constitui-se, inexoravelmente, na atividade de serviço público, nos expressos termos do artigo 30, inciso V, da Constituição Federal, que – ao atribuir aos Municípios a competência para, entre outros, organizar e prestar esses serviços diretamente ou sob o regime da concessão ou permissão – os classificou como “serviços públicos de caráter essencial”.

Entretanto, esses “perueiros”, sem qualquer delegação efetuada pelo Poder Público – que ex vi do artigo 175, da Constituição Federal, somente poderia ser efetivada pelos institutos da Permissão ou da Concessão precedidos de obrigatória licitação –, realizam serviço público, configurando essa prática, inquestionavelmente, à usurpação de serviço público.

Vejamos: A Constituição Federal, ao tratar da “Ordem Econômica e Financeira”, nitidamente aparta duas atividades, radicalmente diferenciadas, seja quanto ao regime que lhes é atribuído, seja quanto à titularidade das mesmas. Assim é que o parágrafo único do artigo 170 da Carta Magna estabelece textualmente que a atividade econômica é de livre exercício a todos, sem a dependência, salvo nos casos previstos em lei de autorização de órgãos públicos, verbis: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

A Constituição Federal, com efeito, reservou o exercício da atividade econômica aos particulares, e quanto a isso não podem incidir dúvidas, pois o artigo 173, da mesma Carta, estabelece: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”

Entretanto, na mesma medida em que esse tipo de atividade – a atividade econômica – foi reservada aos particulares, por seu turno, o outro tipo de atividade – a atividade dos serviços públicos – foi, inexoravelmente, conforme a Lei Magna, atribuída ao Poder Público, que detém a titularidade da mesma.

De fato, estabelece o artigo 175 da Constituição Federal, verbis: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime da concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Por outro lado, é inquestionável que os serviços públicos têm um evidente significado econômico, tanto mais que a Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, “que dispõe sobre o regime da concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no artigo 175 da Constituição Federal, e dá outras providências”, ao disciplinar a licitação para a outorga da concessão (regra aplicável igualmente à outorga da permissão, por força do artigo 40 da Lei), fixa, em seu artigo 15, inciso II, entre os critérios para o julgamento do certame, verbis: “a maior oferta, nos casos de pagamento ao poder concedente pela outorga da concessão”, evidenciando-se que a delegação de serviços, via de concessão ou permissão, tem um significado econômico, a exclusivo juízo do Poder Público, titular do serviço, que para sua outorga pode fixar como critério de julgamento a maior oferta de pagamento pela delegação dos serviços, via de concessão ou permissão.

Isso significa que, quando alguém passa a executar serviços públicos, sem qualquer outorga, provoca um dano potencial aos cofres públicos, pois tal outorga, como se viu, pode ter significado econômico, a exclusivo juízo de seu titular – o Poder Público, como no comum dos casos tem.

O exercício clandestino dessa função pública – a par de ser atividade causadora de danos ao Erário Público, por ter a delegação em questão um significado econômico, nos termos da própria lei que a disciplina, a par de subtrair dos eventualmente lesionados pela execução dos serviços, a garantia da responsabilidade objetiva, bem como a responsabilidade subsidiária do Estado, uma vez escoadas as forças do concessionário ou permissionário – caracteriza, indubitavelmente, o crime de usurpação de função pública, nos termos do artigo 328, do Código Penal, que prescreve esse delito: “Usurpar o exercício de função pública.”

De fato, não cabe, nos dias que correm, a idéia de que o exercício de função pública se reduza tão somente às atribuições funcionais de agentes públicos, uma vez que, sabidamente, se aninha no conceito de função pública todo o plexo de atividades atribuíveis ao Poder Público, seja quando atua no exercício de seu poder de polícia administrativa, seja quando exerce a atividade primordial da prestação de serviços públicos, que, por disposição constitucional – artigo 175 –, lhe cabe executar ou, por delegação, via de concessão ou permissão, necessariamente precedida de licitação.

Breve incursão à lição do mui ilustre Magalhães Noronha, quanto ao bem jurídico tutelado, pela norma penal em testilha, evidencia, inexoravelmente, que nela se alberga a conduta descrita.  Quanto ao crime de usurpação do exercício de função pública, escreve o autor: “O bem jurídico tutelado é o interesse público relativo ao funcionamento e à atuação da administração pública, sacrificados, evidentemente, pela conduta de quem exerce funções que não são suas. Além da lesão à eficiência da atividade administrativa, é óbvio que se ofende o direito exclusivo do Estado de escolher e nomear seus funcionários ou as pessoas que, em seu nome e interesse, agem para consecução de suas finalidades. O fato de ser danoso à dinâmica da administração provoca-lhe indisfarçável descredito.” (in “Direito Penal”, 3ª edição Saraiva, 1968, 4º Vol., pág. 357).

Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua obra “Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta”, edição Revista dos Tribunais, 1990, ao classificar os agentes públicos, elenca, entre suas espécies, aquela que denomina de “particulares em atuação colaboradora com o Poder Público”.

Ao discorrer sobre essa espécie, anota esse insigne mestre à página 10 da obra referida: “Além das categorias mencionadas (agentes políticos e servidores públicos) deve-se cogitar ainda uma terceira classe de pessoas que prestam serviços ao Poder Público. São os particulares que cumprem uma função pública, por requisição do Estado (como os convocados para prestar serviço militar, os jurados, os membros de mesa receptora ou apuradora de votos em época eleitoral etc.) sem caráter profissional; sponte propria, assumem a gestão da coisa pública em momentos de emergência (gestores de negócios); com a concordância do Poder Público, sem relação de dependência, desempenham, por conta própria, embora em nome do Estado, uma função pública. É o caso dos contratados através de locação civil de serviços ou delegados de função, ofício ou serviço público (tabeliães e titulares de serventias públicas não oficializadas, bem como diretores de faculdade, concessionários e permissionários de serviço ou obra pública e outras pessoas que praticam certos atos dotados de força jurídica oficial.”

Nesse diapasão, averba o sempre lembrado Hely Lopes Meirelles, in “Direito Administrativo Brasileiro”, 18ª edição (póstuma), Malheiros Editores, 1993: “Agentes delegados: são particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público, e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. Nessa categoria, encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos. Esses agentes, quando atuam no exercício da delegação ou a pretexto de exercê-la e lesam direitos alheios, devem responder civil e criminalmente sob as mesmas normas da Administração Pública de que são delegados, ou seja, com responsabilidade objetiva pelo dano (CF, art.37, § 6º), e por crime funcional, se for o caso (CP, art. 327), pois não é justo e jurídico que só a transferência da execução de uma obra e de um serviço originariamente público descaracterize sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente. Por essa mesma razão, a lei de mandado de segurança considera “autoridade”, para fins de impetração, “as pessoas naturais ou jurídicas com funções delegadas do Poder Público, somente no que entende com essas funções” (Lei 1.53351, art. 1º, § 1º).

Finalmente, a violência que se vê dos noticiários da imprensa decorre do fato de o Município de São Paulo ter adotado as medidas devidas, em defesa de algo de que é titular, e que lhe estava sendo usurpado – os serviços públicos de transporte coletivo de passageiros.

É mais que evidente que essa atividade clandestina é usurpadora de algo que pertence a todos. Por ser res publica, merece ser coibida, não se intimidando as autoridades com os atos de vandalismo e selvageria, consistentes em atentados à propriedade pública e privada, com destruição de ônibus e veículos de fiscalização.

É evidente que tolerar atos como esses, e retrair-se a autori-dade pública em face dos mesmos, significaria a falência do próprio Estado, com o estabelecimento do caos e da desordem.