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Um breve resumo sobre os novos danos na responsabilidade civil

8 de novembro de 2019

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O vocábulo responsabilidade em sentido amplo pode ser entendido como a situação de quem violou uma norma, que pode ser uma norma moral ou jurídica, decorrendo desta ação ou omissão, o dever de reparar o dano causado a outrem.  Em sentido estrito a responsabilidade civil é uma forma de obrigação ressarcitória visando recompor a harmonia quebrada pela violação de uma norma jurídica originária. 

Por conseguinte, a responsabilidade civil tem sua natureza jurídica definida por Sérgio Cavalieri Filho como “um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.”  Logo, podemos conceituar a responsabilidade civil como uma obrigação sucessiva imposta a uma pessoa a ressarcir danos causados a outrem, seja por fato próprio, de terceiros, e coisas que dela dependam.

Nas comunidades primitivas não havia responsabilidade jurídica patrimonial, portanto a responsabilidade recaia sobre o corpo do agente, visando desde as penas deambulatórias até a morte, além da pena de escravidão.  Assim, a evolução da responsabilidade passou da vingança privada para a vedação da autotutela pelo Estado, passando para responsabilidade patrimonial.

A reparação dos danos deve ocorrer de forma integral (art.944 do Código Civil, e art.6°, VI da Lei n° 8.078/90) e ser calculada de acordo com a extensão do dano, para recompor o equilíbrio quebrado com a prática do ilícito, colocando-se a vítima no status quo ante a lesão.  Portanto, o valor da indenização deve abranger todos os danos suportados pela vítima.

A evolução jurídica do conceito de dano moral negativo para um conceito positivo de dano moral foi resultado dos estudos da doutrina e jurisprudência denominada de Direito Civil Constitucional, movimento influenciado pelos estudos da doutrina italiana, consequência de uma releitura do Código Civil e das normas jurídicas em geral, à luz dos princípios constitucionais da solidariedade social, da isonomia substancial e da dignidade da pessoa humana.

Nesse cenário a doutrina e jurisprudência passaram a compreender o dano moral como aquele decorrente da violação dos direitos da personalidade, admitindo-se, portanto, o dano moral sem a ocorrência de dor ou sofrimento causado ao lesado.

Como visto os pressupostos da responsabilidade civil sofreram intensas modificações decorrentes das inúmeras evoluções sociais ocorridas nas últimas décadas, sendo reformulados, mitigados vários requisitos da responsabilidade civil e surgem novos conceitos de danos extrapatrimoniais.

Dentre esses novos danos surge o dano biológico desenvolvido pela jurisprudência italiana na década de setenta, que evoluiu na década de noventa de outra espécie de dano extrapatrimonial denominado de dano existencial. 

Isso se deu porque a reparação dos danos na Itália tinha como fundamento legal o art.2043 do Código Civil italiano (danos patrimoniais), e o art.2059 do Código Civil italiano (danos não patrimoniais).  O art.2059 do Código Civil italiano de 1942 adotou um regime de tipicidade para o rol dos danos extrapatrimoniais, isto limitava e dificultava a apuração da responsabilidade civil por danos decorrentes de ato ilícito civil, em razão da dificuldade de se atribuir a reparação por danos morais aos agentes que não cometeram ilícitos penais (artigo 185 do Código Penal italiano), ou seja, a reparação dos danos não patrimoniais era possível apenas nos casos previstos na lei como ilícitos penais. 

Dentro desse contexto, na década de setenta, visando corrigir essa falha do sistema jurídico italiano, por iniciativa de dois magistrados genoveses (Monetti e Pellegrino), o dano biológico é reconhecido pela primeira vez com a sentença do Tribunal de Génova, de 25 de maio de 1974, totalmente desvinculado da patrimonialidade. Os magistrados fizeram uma inovadora construção jurídica, utilizando a cláusula geral do artigo 2043 do Código Civil italiano (regra base da responsabilidade civil delitual), associada até então ao ressarcimento de danos patrimoniais, que prevê como única condição de ressarcibilidade a “injustiça”, para concluir o que nessa norma se prevê é que todos os danos injustos são ressarcíveis, sejam eles de carácter patrimonial ou não patrimonial.  Para tanto era necessário que se encontrasse uma norma no ordenamento jurídico que protegesse o direito à saúde, a lesão dessa norma teria sempre a característica indispensável à ressarcibilidade prevista na cláusula geral do artigo 2043, isto é, a “injustiça” do dano.

Em decorrência dessa evolução doutrinária e jurisprudencial, que ocorreu também no Brasil, foi possível reconhecer a existência de dano moral por parte da pessoa jurídica, quando atingida em sua honra objetiva, e de novos danos extrapatrimoniais como o dano biológico, o dano existencial, o dano pela perda de uma chance, dano pelo desvio produtivo do consumidor, o dano social ou difuso e o dano moral coletivo. 

Vejamos as definições desses novos danos.

O dano biológico ou à saúde decorre da violação ao direito fundamental à saúde (art.32 da Constituição italiana).  Foi uma criação doutrinária e jurisprudencial da década de setenta tão importante que acabou sendo positivada pelo legislador italiano com a elaboração do Código de Seguros Privados de 2005.

O dano existencial é o prejuízo que o ato ilícito causa sobre atividades não patrimoniais do indivíduo, alterando seus hábitos de vida e sua maneira de viver socialmente.  Ele atinge o projeto de vida, portanto há uma certa similaridade com o teoria da perda de uma chance no aspecto da lesão atingir uma expectativa que o lesado tinha acerca do futuro.  No entanto, se diferencia da perda de uma chance por não atingir uma oportunidade real e séria, mas apenas um projeto futuro da vítima, que não exige o mesmo grau de probabilidade da perda de uma chance.

A perda de um chance seria a perda de uma oportunidade real e séria. No direito italiano a teoria da perda de uma chance é aplicada quando a probabilidade de obtenção da vantagem esperada for superior a 50% (cinquenta por cento).  No Brasil, para a configuração da perda de uma chance a jurisprudência entende necessária a análise do caso concreto.

Segundo Antonio Junqueira de Azevedo o dano social ou difuso é uma nova modalidade de dano na responsabilidade civil, distinta do dano patrimonial e extrapatrimonial.  Para ele os danos sociais podem ser definidos como lesões causadas à sociedade, no seu nível de qualidade de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral, notadamente em relação à segurança, e diminuição na qualidade de vida.

A título de exemplo de aplicação dos danos sociais pela jurisprudência temos o julgado da fraude em sistema de loteria, chamado de “Caso Totobola”.  O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao analisar o Recurso Cível n° 71001281054, DJ 18/07/2007, determinou, de ofício, indenização a título de dano social para o Fundo de Proteção aos Consumidores.

Entendo que uma das maiores inovações decorrentes da evolução da responsabilidade civil é a figura do dano social ou difuso, cujo objeto é a restauração do nível social de tranquilidade diminuída pelo ato ilícito, bem como o entendimento de que o valor da condenação pelo dano social não deve ser destinado à vítima, e sim para um fundo criado especificamente para tal finalidade, ou direcionado a uma instituição filantrópica, como prevê o art.883 do Código Civil para os valores objeto de pagamento indevido.

Alguns julgados em casos de ações individuais decorrentes de lesões reiteradas tem considerado que o valor da indenização deve levar em consideração a função social da responsabilidade civil, qual seja: desestimular e educar o ofensor.  Desta forma, seria legitima a fixação da indenização em um valor suplementar pelo Juiz.

O dano pelo desvio produtivo do consumidor é uma teoria criada pelo advogado Marcos Dessaune, que identifica o dano decorrente do desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados pela má prestação de serviços privados.  No meu entender a teoria também deve ser aplicada aos serviços públicos.

O dano moral coletivo é o resultado de uma lesão à esfera extrapatrimonial de determinada comunidade, ou seja, tem como causa uma conduta violadora de valores éticos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva. (REsp 1473846/SP, Rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe 24.2.2017).

Desta forma, os pressupostos da responsabilidade civil sofreram intensas e necessárias modificações decorrentes das inúmeras evoluções sociais ocorridas nas últimas décadas, sendo mitigados vários de seus elementos e elaborados novos conceitos de danos extrapatrimoniais para garantia de uma justa reparação integral dos danos.

Bibliografia__________________________________

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DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de janeiro: Forense, 2011.

GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo.  Novo Código Civil.  2 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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SCHREIBER, Anderson. Novas Tendências da Responsabilidade Civil Brasileira. Disponível em : http://www.andersonschreiber.com.br/downloads/novas_tendencias_da_responsabilidade_civil_brasileira.pdf. >. Acesso em: 30 de out. de 2017.

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.

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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

 

NOTAS____________________________________

1 CAVALIEI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2003 Op. cit., p.26.

2 “a regra geral da convivência humana, à qual o direito deve proteção, é aquela em que a indenização pela reparação deve ser a mais completa possível, a fazer justiça no caso concreto. Somente nos casos ressalvados ou autorizados por lei se mostra admissível a limitação da responsabilidade” (STJ, 4ªT, REsp 83717- MG, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira). Grifei.

3 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

4 art. 2.043 (“Art. 2.043. Risarcimento per fatto illecito. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno”) e o art. 2.059 (“Art. 2.059. Danni non patrimoniali. Il danno non patrimoniale deve essere risarcito solo nei casi determinati dalla legge” (Cod. Proc. Civ. 89; Cod. Pen. 185, 598).  Tradução livre: “art.243.Compensação por irregularidades. Qualquer fato malicioso ou negligente, que cause danos injustos a outros, obriga a pessoa que cometeu o ato a compensar o dano “) e o art. 2.059 (“Art. 2.059. Danos não-pecuniários. Os danos não pecuniários devem ser compensados apenas nos casos determinados por lei.).”

5 Tribunal de Génova, 25/5/1974, in Giurisprudenza Italiana, 1975, I, 2, p. 54.

6 Conforme Antonio Junqueira de Azevedo o dano social não pode ser individualizado, posto que afeta a um grupo social determinado (pessoas residentes em um estado, município, bairro; pessoas que integram uma categoria profissional; pessoas que fazem parte de uma associação; pessoas portadoras de síndromes; consumidores) ou mesmo a um grupo social indeterminado. Pode também o dano social ser relativo a toda população do país, a exemplo do que acontece quando há queimadas na floresta amazônica, cujos efeitos nefastos podem sem experimentados pela população brasileira de um modo geral. Da mesma forma, a falta de investimentos adequados em infraestrutura afeta a qualidade de vida da sociedade como um todo, dando origem aos famosos apagões, ao racionamento de água. Igualmente acontece em decorrência do péssimo estado da malha rodoviária do país, problema que acaba por encarecer o preço do frete e, consequentemente, do produto final para o consumidor. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Op. cit., p. 380.

7 “A ideia, nesse sentido, é perfeita, se os prejuízos atingiram toda a coletividade, em um sentido difuso, os valores devem também ser revertidos para os prejudicados, mesmo que de forma indireta.” TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 477.

8 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017.