Um certo jeito de sorrir que tínhamos

13 de julho de 2011

Augusto Nunes Jornalista

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(Artigo originalmente publicado na edição 93, 04/2008)
 
Room number 1968”, avisa-me a jovem na recepção do hotel em Nova York, enquanto estende a chave do quarto que me coubera. Nineteen sixty eight. Pela naturalidade da voz, ela decerto não sabe que, depois daquele 1968, esses quatro algarismos deixaram de ser um número. São um ano, serão para sempre um ano. E que não terminou: brutalmente amputado na noite de 13 de dezembro, nunca mais acabaria. Continua na memória coletiva, continua nos seus fantasmas.
 
Eles sempre me visitaram com frequência. Pelo que acabo de ouvir na recepção do hotel nesta tarde de abril de 2007, devo desconfiar de que agora deram de acompanhar-me nas viagens, até para fora do Brasil, e já se reservam o direito de escolher o apartamento em que ficaremos todos. Se a intimidade aumentou, as lembranças vão ficando mais desbotadas. No começo, chamava-os pelo nome ou pelo apelido. Hoje, não são muitos os que identifico imediatamente, sem hesitações, no meio dessa multidão de faces à espera de restaurações que lhes devolvam o desenho original e inconfundível.
 
Já não consigo pinçar nos desvãos da memória nomes outrora familiares, nem recompor com nitidez os contornos de rostos que vi tão de perto, muito menos adivinhar como estariam neste abril de 2007, 39 anos depois de tudo. E, no entanto, são fantasmas indemissíveis, o que talvez seja a forma por eles encontrada para adiar a consumação da morte precoce. A primavera nova-iorquina que ilumina o quarto do hotel não consegue dissipar sombras tão antigas.
 
Abril talvez seja mesmo o mais cruel dos meses. Abril de 1968 foi o prenúncio de que aquele outono seria longo e terrível – e, no entanto, nós o saudamos como se anunciasse a sagração da primavera. Nunca fomos tão felizes. E nunca seríamos tão escandalosamente felizes quanto em 26 de junho, quando a Passeata dos 100 Mil fez com que todos os sonhos parecessem ao alcance da mão.
 
Não pressentimos a gestação da ditadura sem camuflagens. Não pressentimos o horror a caminho, resumido em duas letras e um número: AI-5. Não foram muitos os que sobreviveram sem traumas invencíveis, ou feridas sem chances de cauterização, à colisão brutal entre a Era de Aquário e os Anos de Chumbo.
 
A morte, a loucura, a desesperança e o cinismo foram os cavaleiros do nosso Apocalipse, e à sua passagem alucinada e alucinante sucumbiram milhares de moços cujos rostos estão eternizados – com a espécie de olhar que só pode ser desenhado por passageiros da esperança – na foto incomparável do grande Evandro Teixeira. De qualquer forma, houve sobreviventes.
 
Da vez primeira em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha, dizem os versos de Mario Quintana. A fisionomia dos que completaram a travessia do pesadelo confirma que entre um vinco e uma ruga se deu o assassinato de um jeito de sorrir que tínhamos. Mas muitos de nós resistimos ao cerco das carrancas e não nos tornamos prisioneiros do ressentimento. Apesar de tudo, apesar de tantos, apesar de Thánatos, sabemos sorrir. Mas de um outro jeito.
 
Os sobreviventes assimilaram dramaticamente lições e truques essenciais. Aprenderam, por exemplo, que embora seja a vida absurdamente curta, e deva, portanto, ser fruída a cada minuto, a cada segundo, dura o suficiente para que mesmo um jovem possa conhecer a subida ao céu e, em seguida, a passagem pelo inferno. Aprenderam a conviver com a morte como rotina e a tentar suavizar com eufemismos a tragédia incomparável (“Sabe quem dançou?”, era a pergunta que, naqueles tempos sombrios, preparava o interlocutor para o iminente uppercut na alma. Dizer que alguém dançara parecia menos penoso que simplesmente informar que mais um desaparecera. Ou fora preso. Ou morrera.).
 
Quase 40 anos depois daquele outono, a primavera americana bruscamente me conduz (e aos meus fantasmas) de volta a 1968, pelas mãos de uma recepcionista de hotel que não conhece o brasileiro cinquentão a quem entrega a chave do quarto, nem o país de onde vem o homem que reage com mal-disfarçada perplexidade a uma informação banal. Ela deve ter a idade que eu tinha quando tudo começou. E sorri com aquele jeito de sorrir que tínhamos.
 
Crônica incluída no livro “68: Destinos, A Passeata dos 100 Mil”, do fotógrafo Evandro Teixeira – Publicada no Jornal do Brasil de 26/03/08.

 
Augusto Nunes
Jornalista