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Um velho arretado

5 de julho de 2004

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É inevitável, sendo político e sempre em campo oposto, não escrever sobre Leonel Brizola, que tinha na alma a herança dos caudilhos irredentos do Rio Grande do Sul, como Bento Gonçalves, Davi Canabarro e tantos mais, indormidos, de lança em punho, prontos para a peleja e a degola. Foi um pelejador.

Conheci-o em 1959. Hélio Polito, um jornalista pioneiro nos debates televisivos, levou-me a Porto Alegre para participar do programa “Encontro Marcado”. Jovem deputado da UDN -partido adversário de Brizola-, ali estive e o conheci. Era um jovem governador, oito anos mais velho do que eu, e tinha o jeito daqueles que ainda estão preparando as armas. Conceito de dinâmico e dono de um futuro político nacional.

Durante este quase meio século, não me lembro de nenhum político que não tenha sido alvo de sua crítica, que não poupava amigos e adversários, alternados no tempo, de Jango, seu cunhado e aliado, até Lula, seu aliado e companheiro de chapa. Presenciei sua pregação para fechar o Congresso, resolver as reformas de base “na lei ou na marra” e sua campanha da Legalidade.

Com o tempo, consolidou a imagem de um velho lutador, que não escolhe a causa e o lado quando se põe na raia. Desapareceram o preconceito e o medo das suas bravuras para ser visto com a marca do combatente em que se esquecem os erros e os excessos, para a qual existem tolerância e admiração. Diziam os latinos: “De mortius nil nisi bonum” -dos mortos só falar bem.

Conheci, também, o outro Brizola: não o guerreiro, mas a personalidade moldada nas raízes rurais, da simplicidade de sua infância -e o ouvi falar com imenso carinho sobre a figura de sua mãe, vestida pobremente, na faina do curral, responsável pelo sustento dos filhos. Guardava o sinal da revolta por seu pai assassinado. Era polido e educado. Mostrava um certo ressentimento com o destino que extrapolava para as pessoas. Não parecia aquele homem possuído de ira incontornável quando contava parábolas gaúchas e usava o vocabulário característico dos pagos, com as lendas do quero-quero e as querências das estâncias.

Certa vez, deu-me um conselho, quando, presidente, eu visitava o Rio, em tempos de grande dificuldade: “Não deixe sair os tratores do galpão para trabalhar a terra quando chove muito. Não rendem nada e ficam atolados”. Outra vez: “As boiadas no Rio Grande têm de caminhar devagar, lentas, constantes e sem cães. Eles, às vezes, brincam no calcanhar de um boi e perde-se tudo na fúria do estouro”. Desse tempo vem o “costeando o alambrado”. Eu tinha de decifrar de quem e a quem ele falava.
Flávio Tavares conta, nas memórias do exílio, que estava em Montevidéu com Brizola, Neiva Moreira e outros. Era uma tarde de nostalgia, sonhos de levantes e de derrubada dos militares no Brasil. Neiva Moreira arranca do bolso uma lista dos que deveriam ser fuzilados com a vitória (eu deveria constar dessa relação). Começa a leitura. Vem o nome de Mem de Sá, gaúcho, ministro da Justiça. Brizola interrompe: “Esse não. Conheço-o. É um homem que não merece. Será uma injustiça”. Neiva protesta: “A lista tem de ser de todos”. A discussão varou a noite. Não se chegou a uma conclusão. Escapamos todos, graças ao Brizola.

Conseguiu um milagre. Passou a vida construindo inimigos e guerreando. Morreu cercado da homenagem de todos, na unanimidade de que marcara o seu tempo pela coerência de divergir. Como se diz no Nordeste: “Um velho arretado”.