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Universalidade dos Direitos Humanos – Indivisibilidade e pluralidade articulada

5 de janeiro de 2001

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A afirmação clara da universalidade dos direitos que esta contida no parágrafo 5 da Declaração de Viena e um dos pilares da nova arquitetura do sistema internacional de proteção dos direitos humanos1. Ela remete à unidade de pensamento que caracterizou a adoção da Declaração Universal, mas que não havia perdurado quando dos trabalhos que conduziram a adução dos dois Pactos Internacionais, por um lado, dos direitos econômicos, sociais e culturais e, por outro lado, dos direitos civis e políticos. Enquanto a Declaração Universal levou dezoito meses para ser redigida, os Pactos levaram 18 anos para serem elaborados. Sua preparação foi, na realidade, mais difícil, pois essa consistia em tomar os artigos da Declaração e a definir para os Estados obrigações jurídicas prevendo medidas efetivas de aplicação. Mas esses Pactos eles mesmos não tinham nenhuma utilidade enquanto não fossem ratificados pelos Estados.

Vale a pena lembrar que levando em conta as duas categorias de direitos e o fato de que cada uma delas seja ardentemente defendida por um dos dois blocos da guerra fria (os direitos individuais pelos ocidentais, os coletivos pelos soviéticos), o problema que se colocava nesse período de exacerbação da guerra fria, era o de saber se haveria um só pacto geral dos direitos humanos ou vários pactos particulares. A solução proposta por René Cassin foi a “pluralidade articulada” seriam elaborados dois pactos, cada um relativo a um dos dois conjuntos de direitos, solução que preservava a idéia da unidade ao mesmo tempo que permitia a pluralidade.

Aproveito aqui para lembrar que foi justamente com base nesse principio de “pluralidade articulada”, que presidiu a redação dos dois Pactos Internacionais, que o Programa Nacional de Direitos Humanos do Brasil foi elaborado, na sua formulação inicial. No seu processo de implantação, tomou-se mais abrangente aos direitos civis, aqueles que ferem mais diretamente a integridade física e a cidadania. Mesmo assim, essa prioridade dada ao conteúdo de um dos Pactos não impediu o Programa Nacional de contemplar um largo elenco de medidas que tem conseqüências decisivas para a promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, como por exemplo, a implementação de convenções internacionais dos direitos das crianças, das mulheres e dos trabalhadores.

Numa sociedade ainda injusta como e a do Brasil, com graves desigualdades de renda e acesso aos recursos sociais e culturais, promover os direitos humanos exige equacionar os problemas que muitos chamam de violência estrutural – como o desemprego, fome, dificuldades de acesso a terra, a saúde, a educação, ao lazer – através de políticas governamentais. Mas, para que a população possa assumir que os direitos humanos são direitos de todos, e as organizações da sociedade civil – cito aqui apenas um dos mais importantes parceiros nacionais, como as entidades do Movimento Nacional de Direitos Humanos – possam lutar por esses direitos e organizar-se para lutar em parceria com o governo e o Estado, e fundamental que seus direitos civis sejam plenamente garantidos.

Os pactos serviram para transformar em engajamentos jurídicos c1aros a proclamação feita pelos Estados de princípios de direitos reconhecidos como o “ideal comum”. Entretanto, entre a abertura dos Pactos e a assinatura e a ratificação foi mais lenta do que se esperava – por exemplo, os Estados Unidos, o Brasil e a China somente ratificaram o Pacto Internacional de direitos Humanos na presente década, mais de um quarto de século depois. A Declaração de Viena de certa forma ultrapassa a decisão contingente – para vencer um impasse aparentemente irremediável – dos direitos humanos terem sido traduzidos em dois pactos diferentes, reafirmando com enorme clareza os princípios da indivisibilidade.

A universalidade dos direitos humanos, agora retomada, implica que a comunidade internacional se engaja de forma clara e vigorosa pela adoção, sem equívoco, do conjunto de instrumentos internacionais relativos aos “direitos humanos. Decorre do documento de Viena que os Estados devem esforçar-se por aderir, se ainda não fizeram, ao conjunto dos tratados evitando tanto quanta possível a expressão de reservas ao texto. É preciso evitar os perigos que implicam tais reservas ou declarações dos Estados para a unidade e a universalidade dos direitos humanos. Depois da Declaração e do programa de Ação de Viena não se pode acusar de etnocêntricos os direitos proclamados em 1948, nem recorrer ao relativismo cultural como justificativa para não respeitá-los. Como o parágrafo 1 da Declaração de Viena afirma que “A natureza universal desses direitos e liberdades não admite duvidas” o Maximo que se permite são diferenças nas formas de aplicação.

Apesar dessa flexibilização cultural permitida pela Declaração de Viena, se assim pudermos expressar-nos, os padrões internacionais dos direitos humanos continuam a ser fundados sobre o princípio da universalidade, sob a premissa fundamental de que todos eles aplicam-se a todas as nações sem exceção. Apesar disso, mesmo depois de 1993, alguns governos continuam a invocar razões particulares para violar direitos humanos: para silenciar um critico incômodo ou dar mais poderes as forças armadas. Exceções ao princípio da universalidade continuaram a ameaçar o sistema inteiro dos direitos humanos. Como mostra Human Rights Watch, no seu relatório anual de 1998, a universalidade dos direitos humanos esteve sob ataque intenso durante o ano passado. Muitos governos que procuraram justificar sua conduta autoritária acharam mais conveniente contestar a universalidade.

Em    contraste    com    essa contestação da universalidade, através da afirmação de concepções regionais de direitos humanos, por inesperadas vias os direitos econômicos e sociais ganham uma universalidade incontestada. A globalização aparece hoje como uma característica incontestável da vida econômica e social contemporânea. Não há dúvida de que a sociedade civil esta também tornando-se crescentemente globalizada. As organizações sociais, os movimentos sociais e a vida política e social também estão se tornando cada vez mais globalizados. Os líderes indígenas freqüentemente encontram-se como faz pouco mais de um mês no grupo de trabalho sobre populações autóctones da ONU, onde se reuniram 400 lideranças do mundo todo. As mulheres formam redes internacionais para a defesa de seus direitos. As entidades de meio ambiente hoje já lutam pelos problemas que afetam a “ecologia planetária”.

Ao lado desses avanços positivos, estamos assistindo também a uma “globalização da pobreza”, provocada pelas extraordinárias modificações nos mercados e fluxos financeiros, gerando desemprego e inesperadas instabilidades que a globalização dos mercados por si mesma não pode resolver. E esse contexto que cria as condições para uma “globalização dos direitos”. E justamente essa natureza contraditória que abre a possibilidade para que os direitos sociais, econômicos e culturais passem a ser considerados como direitos intrínsecos em todas as partes do mundo. De certa forma eles passarão a constituir um conjunto de direitos fundamentais que irão determinar os limites da globalização, dar emergindo a necessidade de proteção contra suas violações.

Estranhas e inesperadas vias percorreram a construção da universalidade. Mas, temos certeza que iremos transpor o fim desse século com os direitos humanos reconhecidos como universais, convivendo com formas de aplicação que se enriquecem na diversidade cultural da humanidade. Depois de cinqüenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não podemos afirmar que as graves violações de direitos humanos foram varridas da face da terra. Mas podemos constatar que, cada vez mais, estão assegurados aos homens e mulheres da terra os instrumentos para lutar contra o arbítrio e a exclusão social, fazer valer os direitos humanos como direitos de todos, e ‘que devem ser acatados em toda parte. Porque como todos nos sabemos, a luta pelos direitos humanos e como a viagem política para Plutarco: não ha nunca· um ponto final.

Box

1 – Todos os direitos humanos são universais. indivisíveis, independentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas e dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais.