Uso Antidemocrático do Judiciário e o Terceiro Pacto Republicano

31 de julho de 2011

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A democracia se apóia sobre um pilar inafastável: todos se comprometem a respeitar as leis em vigor no país. Isso parece simples e óbvio, mas não é o que vem acontecendo no Brasil. A consequência direta desse desrespeito à distribuição dos poderes é uma busca descomunal da população pelo Judiciário.

Só para se ter uma idéia do que se está falando, basta buscar dados oficiais colhidos pelo CNJ e que assustam a qualquer leitor não acostumado ao dia a dia do Judiciário. Pelos cálculos do Conselho, entre os anos de 2002 e 2007 o Supremo Tribunal Federal teve uma média de 11.000 processos/ano por Ministro.

Lógico que desse volume assustador, somente uma ínfima parcela encerra discussão de cunho constitucional e que seja inédita naquela Corte.

O imenso volume diz respeito a processos que jamais deveriam chegar à Corte Constitucional ou, ainda, de recursos que repetem, sem cerimônia, teses já afirmadas pelo colegiado.

Pensariam os mais desavisados que esses processos chegam ao Supremo Tribunal Federal somente por conta do interesse de grandes grupos privados. Ledo engano. O contingente sufocante tem em um dos lados o poder público. Diretamente, ou por suas autarquias e por suas empresas públicas e de economia mista.

Saindo do âmbito da Suprema Corte, chegamos ao Superior Tribunal de Justiça, sem, contudo, haver mudança de grande porte. Por exemplo: no ano de 2006, cada Ministro recebeu cerca de 9.000 processos.

Mais uma vez a pergunta que não quer calar. Qual percentual, desse magnífico acervo, tratava de temas ainda não apreciados pela Corte? Ou mesmo, quais os que mereciam ser por ela examinados? Muito poucos.

Indo para as Justiças estaduais o quadro se agrava na proporção de litígios por habitante. Números do CNJ mostram que em São Paulo no ano de 2009 foram recebidos mais de 4.000.000 de processos, para uma população aproximada de 40.000.000 de habitantes, o que significa que um em cada dez paulistas procuram o judiciário a cada ano, ou seja, em 10 anos, estatisticamente, todos os moradores do Estado de São Paulo terão recorrido à justiça comum.

No Estado do Rio de janeiro a situação não é diferente. Alguns Juizados Especiais Cíveis têm distribuição anual superior a 12 mil processos.

Com uma demanda dessa proporção, ou melhor, desproporção, não há número de juízes capazes de dar conta do julgamento, fazendo com que reste anualmente um saldo importante para o que chamamos de estoque.

Aí reside uma das grandes causas da chamada morosidade da justiça.

Para combater esse mal, que reconhecemos ser perverso com a população, que necessita dos serviços judiciais prestados de forma célere e eficiente, vários remédios vêm sendo aplicados.

Num primeiro impulso, instalam-se varas, juizados, postos de atendimento. Para isso, criam-se cargos de juiz, serventuários dos mais variados níveis, e constroem-se instalações, que por sua vez, geram custos e serviços de manutenção, muitas vezes sem o necessário estudo da demanda a ser atendida.

Num momento posterior, verificada a persistência dos efeitos, aplica-se a modernidade, introduzindo a informática, que também demanda investimentos e treinamento de pessoas.

Percebendo a melhora do atendimento, a população começa a acreditar na eficiência da justiça, fazendo com que a demanda volte a crescer e anule todos os benefícios temporariamente alcançados.

Nesse passo começa outra abordagem que tem sido particularmente cruel com juízes e serventuários.

Trata-se da exigência do atendimento da demanda a qualquer custo, não importando as conseqüências. Se entrarem 500 processos numa determinada vara, os serventuários e juízes têm que dar um jeito de julgar o mesmo número de casos, se forem mil, idem. Essa prática vem causando muitas baixas nos quadros, por enfermidades decorrentes do estresse a que são submetidos.

Sem contar as ordens do CNJ para o cumprimento de metas que não levam em conta as dificuldades heterogêneas das mais diversas unidades do país.

Mas a tendência é responsabilizar o judiciário e seus componentes, sem, contudo, fazer-se uma análise mais cuidadosa de tema tão importante.

Apenas para ilustrar o que se fala, vejamos o que aconteceu com os Juizados de Violência da Mulher no Estado do Rio de Janeiro: desde sua criação em 2007, já recebeu mais de 111.000 processos, acarretando um aumento de distribuição de mais de 300% em cada unidade.

Hoje, mesmo com um esforço excepcional do Tribunal de Justiça, juízes e serventuários, essas hipóteses, para as quais não se pode imaginar outra solução que não a intervenção judicial, pelos bens jurídicos em jogo, já acumulamos quase 70.000 processos, que se somarão a uma distribuição crescente, formando um quadro de absoluto caos e ineficiência do serviço.

Outra vertente que procura solucionar os sintomas vem com a formulação de legislações que visem a acelerar o processo judicial. Muitos avanços vêm sendo alcançados nessa área, sem, contudo, acabar com o problema, pois a cada melhoria do judiciário corresponde um avanço de uma demanda reprimida dos que ainda não confiavam na justiça.

As mini-reformas do Código de Processo Civil, sobretudo no campo do cumprimento dos julgados, idem com relação às modificações do Código de Processo Penal, ajudam, é verdade, como instrumentos eficazes para uma melhor condução do processo pelo juiz, mas não temos nenhuma indicação de que sejam capazes de facilitar o enfrentamento da crise gerada pela excessiva demanda.

Mesmo as novas formulações constantes dos elogiáveis projetos de codificação processual cível e criminal, em exame no Congresso Nacional, nos animam a enxergar uma luz no fim do túnel.

Ficaremos sempre no tratamento, como já se afirmou, dos sintomas, não resolvendo a causa.

Exemplos dessa experiência as diversas tentativas dos Tribunais superiores em barrar a chegada de recursos, seja pela antiga argüição de relevância, hoje repercussão geral, seja pelos restritos impedimentos processuais para o exame do cabimento dos apelos, sem que isso tenha dado verdadeira solução ao problema, de fazer chegar àquelas Cortes, somente os processos que tenha interesse para toda a nação.

Outro campo em desenvolvimento é a busca, via judiciário, das técnicas de mediação e conciliação.

Festejando as diversas iniciativas e práticas adotadas por diversos tribunais, que no seu objetivo vêm demonstrando certa eficiência, assim com os chamado mutirões de conciliação, penso que mais uma vez não se aborda o problema e sim, mais uma vez, busca-se uma solução que permita terminar o processo antes que o juiz tenha que atuar, diminuindo, dessa forma, o gargalo que se forma em seu gabinete.

Nesse ponto esbarramos na resistência comprovada das grandes corporações em buscar uma solução amigável e na vedação do acordo imposta ao ente público, restando muito pouco campo para uma colheita fértil.

Ou seja, estamos longe de abordar o problema da superlitigiosidade da população brasileira, que é por definição e atuação nas mais diversas áreas, de índole calma e conciliadora.

O que levaria a busca desenfreada pelo judiciário? Seriam tão somente os avanços sociais da Constituição de 1988?

Não há dúvidas de que a volta ao regime democrático, somado aos avanços legislativos trazidos coma Carta de 88, principalmente no que respeita à defesa dos direitos e garantias individuais criou uma nova idéia de cidadania.

Houve um incremento pela busca da afirmação dos direitos sociais a partir de uma interpretação mais moderna do texto constitucional, capitaneada pelo Professor Luis Roberto Barroso, no sentido de atribuir eficácia aos princípios insculpidos na Constituição.

Verifica-se, sem dúvida, uma releitura de todo o sistema infraconstitucional, revendo-se os conceitos até então com uma visão estritamente privatista do direito civil, para instituir-se interpretação com um importante viés social.

Porém, esse fenômeno ocorreu logo após a entrada em vigor da constituição e não pode, solitariamente, ser responsabilizado pela grande procura do judiciário depois de mais de 22 anos.

Outros fatores entraram em ação para que, mesmo após a consolidação da nova interpretação legal, pela reiterada jurisprudência que se formou, se mantivesse uma demanda acima dos níveis razoáveis.

A melhora da educação do povo e seu melhor poder aquisitivo, também são muito citados como causas desse incremento da demanda. Mas nesse ponto nenhuma comprovação há, sobretudo pela dúvida na qualidade e extensão dessas conquistas, bem como verificar-se uma atuação cada vez maior das defensorias públicas, agora instaladas em âmbito nacional.

A adoção de instrumentos de facilitação de acesso também nos parece um fator a mais, mas não decisivo, até por decorrência de determinação constitucional.

É verdade que muitos tribunais vêm adotando práticas que efetivamente facilitam ao povo o acesso à justiça: postos de atendimento, unidade volantes, justiça itinerante, a própria informatização, a possibilidade de se demandar sem advogado nos juizados, etc.

Porém, a procura não decorre do conforto ou facilidade. Ninguém vem ao judiciário por que gosta ou acha legal propor uma ação contra outrem. Isso é conseqüência de uma quebra em massa do princípio de que ninguém deve, injustamente, causar dano ao próximo, nem desrespeitar aquilo que foi contratado ou previsto na lei.

Muito se fala nas indústrias de indenizações, mas se esquecem das fábricas de danos, que antes ferem o direito do outro e abrem possibilidades de recurso ao judiciário.

E aí estamos chegando ao ponto central que gostaria de tratar nesse artigo, muito menos jurídico, mas com pretensões de incentivar reflexões sobre esse tema de urgente importância.

Urgente pelo inegável engarrafamento de processos em todos os níveis da justiça, que acarreta a morosidade, mal que tira, em certos casos, qualquer efetividade da própria decisão.

Importante em decorrência da diminuição da qualidade das decisões a partir da pressão por uma produção em massa, onde nem sempre é possível ao magistrado dedicar-se de forma suficiente ao exame de certas questões para não morrer sufocado nas pilhas de processos repetitivos.

Importante também, e é necessário que se tenha coragem de dizer, para evitar que determinados processos sejam examinados por assessores, fato relatado com frequência por advogados militantes, e que tira a atuação do magistrado que é investido de poderes para dizer o direito no caso concreto.

Então, diante de um quadro de tantos problemas e quase nenhuma solução eficaz, qual o interesse de se escrever um texto pessimista e derrotista?

Para dividir com os leitores algumas reflexões que possam ajudar na busca de novos e verdadeiros caminhos que ajudem a sociedade brasileira a encontrar um equilíbrio de convivência e, por consequência de litigiosidade compatível com suas tradições.

Quando se afirma que ao juiz brasileiro não se pode atribuir a morosidade da justiça se faz com base em informações mundialmente divulgadas.

Segundo dados do Banco Mundial, o juiz brasileiro tem uma média de solução de processos na faixa de 1.400 ao ano. É uma das mais altas do mundo. Basta comparar com países como França, Itália, Inglaterra e Alemanha, onde o número de processos varia de 477 a 891 por ano.

Entretanto, esse número fica pequeno se passarmos ao exame dos processos relacionados ao direito do consumidor e à relação entre cidadão e Estado. Por outro lado, o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal reconhece ser o governo, nos seus níveis federal, estadual e municipal, o maior cliente do Judiciário.

Em relação aos Juizados, as grandes corporações, algumas com domínio de capital estrangeiro, estão entre as mais processadas. Elas insistem em negar respeito às leis do Brasil, que na área de proteção ao consumidor está em estágio de avanço reconhecido em todo o mundo. Entre as 30 empresas mais acionadas no Estado do Rio de Janeiro estão as de telefonia, energia elétrica, bancos, cartões de crédito, empresas de transporte – incluída a aviação – e planos de saúde. Todas explorando ramos de atividade cujo controle governamental deveria ser eficiente, seja pelas agências reguladoras, que nada regulam – com honrosas exceções – seja por órgãos como o Banco Central.

Quem resolve o problema dos juros e correção monetária devidos aos poupadores em decorrência de planos econômicos? É o judiciário.

O que acontece depois do julgamento de milhares de ações reconhecendo o direito dos consumidores, inclusive pelos tribunais superiores? Nada! Os bancos continuam se recusando a reconhecer o crédito e fazem de tudo para que os processos percorram todas as instâncias do judiciário.

E os medicamentos? Quem resolve quais os medicamentos devem ser oferecidos aos cidadãos? Novamente é o judiciário. O estado é incapaz de definir uma política clara de saúde, fazendo com que o doente tenha que vir ao judiciário para obrigar o governo a cumprir a Constituição! E olha que as receitas são dadas por médicos do próprio serviço público.

Para definir quais tratamentos estão ou não cobertos, ou qual reajuste fere ou não a lei, novamente os consumidores têm de recorrer ao judiciário, já que a atuação da agência reguladora é insuficiente.

Os juros dos cartões de crédito, evidentemente extorsivos, também merecem regulação pelo judiciário, mesmo o Banco Central definindo que essas instituições integram o sistema financeiro nacional, nada faz para resolver o problema.

As empresas de telefonia todos os dias rasgam as normas do Código de Defesa do Consumidor sem que a agência reguladora tome efetivas providências que estanquem os abusos. Mais uma vez o judiciário é chamado a intervir, mesmo sendo fatos repetitivos e com jurisprudência pacificada.

O mesmo se pode dizer das concessionárias de água e energia elétrica. Parece que os consumidores são inimigos que devem ser combatidos a qualquer custo e até o fim.

Só no ano de 2010 foram distribuídas 520.000 ações envolvendo direito de consumo para os juizados especiais do Estado do Rio de Janeiro.

Essa quebra do princípio basilar da democracia, de cumprimento dos comandos legais, leva a um congestionamento do Poder Judiciário que impede o atendimento pronto às demandas não provocadas. Sim, porque as demandas provocadas dizem respeito àqueles processos decorrentes de questões repetitivas, com amplo julgamento em todas as instâncias, em um claro desrespeito aos poderes da República.

Recentemente, a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) determinou a reinstalação de Juizados Especiais em aeroportos para atender os reiterados desmandos das companhias aéreas. Nada mais equivocado e confortável para essas empresas, que desprezam a democracia em nome de seus interesses comerciais e financeiros. Pois, no caso dos atrasos de vôos, que já viraram rotina em nossos aeroportos, o problema pulará do balcão da companhia para o do Judiciário. E aí, como atender ao mesmo tempo 800 ou 1.000 pessoas em caso de atraso de cinco aeronaves, por exemplo? Qual a solução real a ser dada? Pode o juiz colocar um avião na pista para levar os passageiros a seu local de destino?

E o que fez A ANAC, como agência reguladora? No mesmo instante fechou seus postos de atendimento com a alegação de que não havia suficiente procura.

Enfim, a sociedade precisa que a República e a democracia sejam respeitadas pelo governo e que este faça com que as grandes corporações, inclusive as de capital transnacional, obedeçam às leis.

Mas a apreensão é grande, sobretudo, se levarmos em conta que o poder público, mesmo após a condenação em última instância, impinge à população um vergonhoso calote com o não pagamento dos precatórios. Mesmo aqueles decorrentes de créditos alimentares. Tem gente passando fome por descaso absurdo do governo!

Mais preocupante ainda é o reverso da medalha desta imensa apatia do executivo.

Com relação às polícias, seja por falta de meios, pessoal, ou ainda de treinamento, a verdade é que os inquéritos são péssimamente instruídos, acarretando um número reduzidíssimo de denúncias, muitas delas que na verdade nem deviam se transformar em processos criminais.

Isso acarreta a adoção pelo judiciário de medidas que parecem contraditórias com o alto grau de violência que assola nossas cidades. Como a demanda nos juízos criminais é muito menor que aquela referida acima, os Tribunais estão transformando a competência de varas criminais em cíveis, numa lamentável demonstração dos efeitos negativos de toda essa situação.

Não se concebe, por certo, que este alto grau de litigiosidade, a que me referi anteriormente, e que tem contaminado a sociedade brasileira nos últimos tempos, alargando, cada vez mais, o volume de demandas e processos que são despejados, diariamente, no Poder Judiciário, causando a demora em sua solução, advenha justo de ações empreendidas por nossos órgãos estatais ou mesmo por conta de sua omissão, fruto de uma visão distorcida e equivocada de suas reais responsabilidades.

O Brasil, hoje, possui uma Lei Fundamental, após a vigência da chamada “Constituição Cidadã”, que muito mais do que um simples estatuto organizatório ou mero instrumento de definição de competências e fixação de limites para a ação política de seus governantes, constitui um verdadeiro conjunto de normas e princípios ordenadores e conformadores da vida social, cuidando das mais variadas matérias, ligadas às mais diversas áreas de interesse da sociedade, contribuindo para o que se convencionou chamar de judicialização da política e das relações sociais. O político e o social acabam por tornarem-se jurídico.

Esse novo perfil constitucional deu ao Poder Judiciário uma função relevantíssima no seio da sociedade organizada, cabendo-lhe agir, não só como fiel da conformação da ordem jurídica com as normas e regras constitucionais, mas também, como garantidor das liberdades individuais e dos direitos fundamentais dos cidadãos, além de se tornar o grande mediador de todos os conflitos sociais, devendo exercer, com eficiência, o seu papel de pacificador, o que constitui, contudo, diante da realidade vigente, um imenso ônus, difícil de ser cumprido adequadamente.

Note-se que quando falha o poder político – o que infelizmente tem sido uma constante –, ou quando a própria sociedade organizada não consegue, lamentavelmente, regular por meios próprios, os conflitos interpessoais e mesmo aqueles transindividuais, que se sucedem diuturnamente, é o Poder Judiciário que é chamado, imediatamente, a intervir.

Este é um panorama, de certo modo, desolador, não sendo nada inspirador vivermos em uma sociedade que há de ser permanentemente tutelada em todas as suas relações pelo Poder Judiciário, colocando sobre os ombros dos juízes a solução de todos os problemas, por mais rotineiros que sejam, como se estivéssemos em meio a um bando de tolos e idiotas, incapazes de compor consensualmente e extrajudicialmente seus interesses contrariados, ou impor, por meio das organizações e entidades que criam, com tal finalidade, que as regras de comportamento estabelecidas por sistemas normativos e regulatórios, construídos supostamente pelo consenso geral, sejam observadas e cumpridas.

Daí o fenômeno crescente da judicialização da saúde, da educação, da proteção dos menores e idosos, das relações familiares, dos conflitos de vizinhança, das relações de consumo, das relações obrigacionais, das relações de trabalho, da proteção ao patrimônio público e ao meio ambiente, do contencioso administrativo, do próprio processo político e do processo eleitoral, etc.

Na verdade os controles governamentais e sociais não mais funcionam adequadamente, assoberbando o Poder Judiciário.

Esta verdadeira mudança de paradigma, onde o Poder Judiciário passa a atuar, por meio de um ativismo judicial até então desconhecido, no exercício mesmo de uma atividade política, de assistência social, e até legislativa, estranha às suas funções primitivas, segundo alguns, criando, através de sua atividade hermenêutica, normas de caráter geral e vinculante, a pretexto de aplicar normas e princípios da constituição, dá-se, a toda evidência, em razão de certo desleixo, por parte dos demais poderes, quanto ao exercício de suas funções institucionais.

Não é concebível, por exemplo, que os preceitos constitucionais de eficácia contida, dependentes de leis que os regulamentem, não sejam efetivamente regulamentados por longo período, notadamente quando tratam de direitos individuais, coletivos e sociais.

De igual modo, não se compreende que o Poder Executivo deixe de cumprir as leis, formal e materialmente constitucionais, alegando simplesmente a inconveniência ou inoportunidade de determinado comando legal.

Inaceitável que o Poder Executivo edite medidas provisórias, ou encaminhe ao Legislativo projetos de leis manifestamente inconstitucionais, sendo impositivo que suas procuradorias e assessorias atuem, eficientemente, nessa área, manifestando-se juridicamente e não politicamente, atuando, de igual forma, na apreciação da sanção das leis de iniciativa de terceiros.

Impõe-se, também, que os integrantes do Poder Executivo, em todos os níveis, pratiquem os atos que lhes cabem realizar com inteira conformação com as normas e princípios constitucionais, respeitando os direitos individuais dos cidadãos, inclusive, em matéria tributária e administrativa.

Não podem os administradores públicos agir contrariamente à ordem jurídica, sem que a Administração Pública exerça, eficientemente, o controle de seus atos, evitando o ajuizamento de ações populares ou civis públicas, objetivando corrigir os eventuais desvios e danos que se produzam contra o erário e o patrimônio público. Note-se que o controle feito pelo Poder Judiciário dos atos administrativos, modernamente, não se limita apenas à legalidade do mesmo, mas avança na apreciação de sua moralidade, impessoalidade e eficiência.

É inadmissível que a Administração Pública atue em desconformidade com o que já decidido uniformemente pelos Tribunais Superiores, especialmente depois de editadas súmulas da jurisprudência predominante da Corte, interpondo recursos contra decisões proferidas de acordo com esse entendimento, com o único intuito de procrastinar o cumprimento do julgado.

Não se pode aceitar que o Poder Público admita que as Agências Reguladoras, instituídas para a fiscalização e controle das concessionárias e delegatárias de serviço público, especialmente daqueles essenciais, não exerçam suas atividades a contento, permitindo que o consumidor seja lesado ou que o serviço deixe de ser prestado com a qualidade e segurança que dele se exige.

É indispensável que os órgãos públicos que prestam serviços à população e que as empresas públicas e de economia mista, que fazem o mesmo, sejam dotadas de órgãos de mediação e conciliação, buscando solucionar, internamente, os conflitos que surjam entre estes e os usuários dos serviços, mas sempre levando em conta a jurisprudência dominante dos tribunais já consolidada, cabendo ao poder ofertante ou concedente o controle e a fiscalização da atuação desses grupos, avaliando sua produtividade sob o enfoque da qualidade e eficiência da própria prestação dos serviços.

De outra banda, é também inaceitável que o Poder Legislativo proponha ou aprove leis frontalmente contrárias à Constituição Federal, que desafiarão, por evidente, a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, por parte dos legitimados constitucionalmente, no exercício do controle em concreto, por parte do Supremo Tribunal Federal, ou dos Tribunais Estaduais, nos casos de sua competência, ou o questionamento da validade e eficácia da respectiva lei, por meio do controle difuso, exercido por qualquer magistrado, obrigando o Poder Judiciário a exercer o controle judicial do exercício da atividade política dos legisladores.

Ora, as Casas legislativas possuem em sua estrutura Comissões de Constituição e Justiça, cuja função precípua é a de avaliar a constitucionalidade dos projetos de lei que são submetidos à sua apreciação, além de poderem se valer da opinião de suas procuradorias e assessorias especializadas, o que evitaria a aprovação, sanção ou promulgação desses diplomas viciados.

Penso, assim, que se os Poderes Executivo e Legislativo cumprissem com sua responsabilidade de atuar sempre em conformidade com as normas e princípios constantes da Constituição, assumindo um compromisso de fazer valer nos atos que realizam os preceitos da Carta Republicana, conforme a interpretação que lhe tiver sido dada pelas Cortes Superiores, impondo a seus agentes que deixem de descumprir tais regras e procedimentos, e conformem os seus atos às mesmas, sujeitando-se aos comandos respectivos, sem tergiversar e sem desconsiderá-las, além de compelir seus agentes, delegatários e concessionários a respeitar as regras legais e principiológicas, que regulam a prestação dos serviços respectivos e que impõem o respeito às normas gerais de comportamento, especialmente aquela que determina que ninguém pode causar dano a outrem, haveria uma redução considerável da demanda judicial, permitindo aos Juízes que cuidassem, seletivamente, das questões dependentes realmente do pronunciamento jurisdicional.

Assim, creio ser oportuno, aproveitar-se o Terceiro Pacto Republicano, para que todos os três Poderes assumam a obrigação de fazer cumprir, sem subterfúgios, as normas e princípios constitucionais, exigindo de seus agentes e servidores que se comportem de conformidade com estas regras, além de desenvolverem ações que permitam difundir na sociedade esses valores, para que nossos cidadãos, hoje tão conscientes de seus direitos e deveres, voltem a ter a capacidade de solucionarem os seus problemas e conflitos, de forma amplamente satisfatória, independentemente da tutela do Poder Judiciário, reservando a este ultimo a decisão das questões de maior complexidade, considerando, inclusive, o fenômeno que hoje já se revela de as grandes decisões políticas estão se deslocando do âmbito do Legislativo e do Executivo para o do Poder Judiciário.

Só assim, com a retomada do comando da lei e da ordem o Judiciário poderá exercer, dentro de limites razoáveis, o seu papel no Estado de direito, atendendo os litígios naturais em uma sociedade na qual todos cumprem o pacto principal da democracia.