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Utopismo Constitucional

28 de fevereiro de 2006

Membro do Conselho Editorial e Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

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1. Conceito

Etimologicamente, utopia deriva de au-topos. Significa “lugar nenhum”, lugar que não existe em parte alguma e, mais estritamente, o tipo de sociedade que não se estabeleceu em nenhum lugar.1

Foi inicialmente título de uma obra célebre, escrita por Thomas More, que descreve a sociedade perfeita e o governo ideal.

Atualmente a palavra serve designar um sonho de perfeição social impossível de se atingir, uma concepção imaginária e irrealizável de organização política, econômica e social.

Embora haja uma grande multiplicidade de abordagens do termo utopia, os autores parecem concordar que sua definição não será encontrada pela Filosofia.

O conceito mais célebre é o de Karl Mannheim, quando diz que “um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”2

Outros procuram na utopia um referencial futuro, realizável, portanto, em certas condições. Neste sentido, a sociedade poderia ser condicionada a trilhar um caminho que levasse à utopia. Na idéia se sente o germe da ideologia: “a vida caminha para a utopia”, está na epígrafe de Nicolau Berdiaef que Aldous Huxley celebrizou no seu Brave New Word (1932).

Esta segunda posição é, entretanto, firmemente refutada por Giovanni Sartori porque, despojando a palavra utopia de sua conotação original de “irrealizável”, ficaria o vocabulário político privado de um termo para indicar o politicamente impossível.

Uma constituição será utópica em qualquer dos dois sentidos: quando se divorcia totalmente da realidade, não tendo condições práticas de reger a vida política, econômica e social da Nação a que se refere, ou quando pretenda projetar uma sociedade de valores ideologizados como objetivos para uma evolução orientada.

Mas, em ambos os casos, utopia é indesejável: no primeiro, porque inócua, e no segundo, porque desumana.

A utopia irrealizável, longe de se apresentar como um ideal, como um princípio a ser perseguido, mesmo sem que seja possível alcançá-lo, é uma fábrica de expectativas e, portanto, de frustrações, desservindo a sociedade. Os valores, sim, podem servir de guia; não as projeções utópicas que sobre eles se construam.

Por outro lado, a utopia, como meta de transformação social, é uma forma de autoritarismo: quem afirma que determinado projeto será bom no futuro, amanhã ou agora, para que seja imposto a gerações, como uma espécie de “programa constitucional”?

Por ambos os motivos, o utópico pode caber na especulação filosófica, na inventiva literária e na imaginação artística, em geral, mas deve ser evitado na ciência, notadamente na Ciência Política e na Ciência do Direito.

 

2. Constituição e Utopismo

Uma Constituição, como de resto todo o ordenado jurídico, mas ela, de maneira especial, deve buscar a conciliação entre “o sistema tendencialmente estático de suas normas originárias” e “a dinâmica das forças sociais”.

Para alcançar esse equilíbrio, duas técnicas têm sido empregadas. Numa primeira, o texto constitucional se restringe ao essencial, aos grandes princípios e à organização superior do Estado, deixando à legislação e à construção jurisprudencial o trabalho de adaptá-lo “à dinâmica das forças sociais”: é a técnica sintética. Noutra, o texto constitucional procura estabelecer um equilíbrio pela imposição de maior número de princípios e de regras à própria evolução das forças sociais; é a técnica analítica.

A Constituição sintética, portanto, não se impõe aos fatos sociais. Há uma adaptação permanente. A analítica, diferentemente, procura condicionar e regrar os fatos sociais. A adaptação deve ser da sociedade ao texto.

A sintética é, por isso, mais duradoura, enquanto que a analítica é mais vulnerável às crises políticas. Escolher entre uma e outra técnica, entretanto, é um problema de doutrina juspolítica.

Há, todavia, um outro tipo de Constituição, rotulado de “dirigente”, que a primeira vista estaria configurado como modalidade analítica. Mas ao refugir da matéria propriamente constitucional e descer às explicações reservadas à legislação ordinária, o que realmente esse modelo pretende é produzir mudanças radicais na sociedade, principalmente nos campos econômico e social, com viés socializante e com força vinculante em relação aos legisladores e governantes futuros.

Um dos inúmeros problemas das Constituições dirigentes é não distinguirem entre “garantias não onerosas” e “garantias onerosas”. “Pode haver ampla generosidade no tocante às primeiras – liberdade de voto, de opinião, de associação e de locomoção, direito à vida e processo judicial. São proteções essencialmente negativas, a saber, são vedadas as leis que restringem o exercício das liberdades humanas. Ao datá-las, ninguém está usando aquilo que John Randolph, estadista americano, descrevia como o mais delicioso dos privilégios, ‘o direito de dispender o dinheiro alheio’. A coisa é diferente quando se trata de ‘garantias onerosas’, como os salários, aposentadorias, educação, saúde e meio ambiente. Essas garantias devem ser objeto de regulação infraconstitucional, por que é necessário medir os custos e especificar quem vai pagar a conta. Os financiadores e os beneficiários podem variar no curso do tempo, e cabe aos partidos políticos, em seus programas, demonstrar à sociedade que a relação custo-benefício é favorável e assim se credenciarem para o exercício do poder. Inseri-las no texto constitucional é torná-lo inexeqüível ou irrelevante”.3

Poder-se-ia argumentar que as garantias onerosas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopista vai muito além do esperado. Por um passe de mágica, pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, decreta que todas as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Mas, afinal, que razões poderiam explicar o utopismo?

Em que pese a dificuldade de se elaborar uma única classificação para os diversos tipos de utopia, a razão básica para justificar esse fenômeno, reside na mentalidade racionalista e visão cultural idealística, da qual as elites, mesmo as mais intelectualizadas, ainda não se desvencilharam.

De fato, “essa tendência de não distinguir bem a ordem do ‘dever-se’ da ‘do ser’, chega até a instituir, no comum, uma inversão ou uma distorção no processo no entendimento do mundo. Evita-se auscultar os fatos, a realidade, seu caráter íntimo, dinâmico ou profundo. Ao invés disso, segue-se muitas vezes a atitude de projetar sobre esta mesma realidade os conceitos a priori, sobre como deveria ser o mundo. Ou melhor, como se desejaria que fosse, partindo de certos esquemas mentais, ou de certos acervos de valores, projetados, assim, sobre um mundo que não se conhece e até que se desdenha de conhecer”.

“Adota-se aqui o vício psicológico central, advertido por Jung, de projetar no ‘não eu’ o nosso próprio ‘eu’. Isto é, de não sentir o mundo ou a vida como são, porém antes como um produto de nossa própria concepção abstrata. Em outras palavras, deixa-se de auscultar a vida como se apresenta e, em lugar disso, se erigem concepções teóricas do mundo. Como este, obviamente, comporta-se de maneira diversa, temos sempre a tendência para ficar perplexos”.4

A utopia resulta, assim, da teimosa postura racionalista que sempre tem insistido em tentar mudar a realidade através da norma; na lição de Sartori, “uma atitude irrealista acompanha o racionalismo”.5

O traço mais distintivo dessa mentalidade é a crença no poder das fórmulas escritas. “Para esses sonhadores, pôr em letra de forma uma idéia é, de si mesmo, realizá-la. Escrever no papel uma Constituição é fazê-la, para logo, cousa viva e atuante: as palavras têm poder mágico de dar realidade e corpo às idéias por ela representadas”.6

Para os que assim pensam, as palavras substituem os fatos, o sonho substitui a realidade. O espírito racional parte da suposição de que é possível condicionar a realidade à norma, enquanto que o espírito empírico (ou realista no caso) quer condicionar a norma à realidade.

Na visão racional, na formulação de soluções normativas para “disciplinar a realidade” passam a proliferar as “normas programáticas”, em oposição àquelas, testadas pela experiência, que são as “normas pragmáticas”.

Essa distinção foi evidenciada por Sartori, no estudo da hipótese da democracia, para estremar o tipo anglo-saxônico da democracia do tipo francês.

A democracia, tal como fruto da evolução inglesa, é um exercício de pragmatismo político, um “produto histórico”, que se institui e se mantém com assento na realidade. A cultura, lato sensu, é a condição dessa democracia.

Por outro lado, a democracia, tal como fruto de revolução francesa, é um exercício de racionalismo político, um produto intelectual, que se institui e se mantém com assento em fórmulas e formas idealizadas. A norma no caso, é a condição dessa democracia.7

Os legisladores de mentalidade utópica, por considerarem a idéia a essência da realidade, subordinam o pensamento e a forma de proceder a um ideal. Por isso, não conseguem se liberar da noção de democracia senão como um ideal abstrato. Confundem fins democráticos com a própria democracia, ou seja, a mitologia da democracia com sua existência real. Exatamente como os perfeccionistas sonhadores gostam: “algo pronto, acabado, imaginário, no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional”.

A democracia, enquanto idéia, não é um fato, mas apenas um conceito. A evidência histórica nos ensina que o verdadeiro modelo de democracia é o possível, aquele usado para uma sociedade real, conflituosa, desigual, constituída de homens imperfeitos e não de deuses. Sua implantação e o seu florescimento, em qualquer das suas adjetivações, não é apenas uma questão de vontade ou determinação pessoal. Em sendo um produto histórico, a democracia só se torna possível na medida em que existam, principalmente, as condições e os pré-requisitos objetivos para o seu bom funcionamento.

 

3. Conclusão

O sonho é um atributo do homem e nada há nele de negativo. Ao contrário, inspira e eleva o seu comportamento. Nesse sentido, a utopia se assimila ao sonho e sua formulação pode ser inspiradora e motivadora.

Há um tipo de utopia, no entanto, que nos transporta e nos lança a um mundo imaginário, totalmente distanciado da realidade, que utilizamos como modelo para transformar a sociedade. Nesse caso, a utopia que não se satisfaz em ser um sonho para ser um pesadelo.

Do fascínio da primeira aproximação, a utopia passa ao tormento da sua realização. No fundo, é o desejo de justiça imanente ao homem que o força a realizar o impossível, até mesmo consciente de que no processo sacrificará outros valores e afinal, para nada lograr, senão piorar, ainda mais, o mundo em que vivemos.

É exatamente essa utopia negativa, que preocupa. “O erro destes espíritos teorizadores, ou antes, a ilusão deles, está na convicção, em que todos eles vivem, de que uma reforma política só é possível por meios políticos. Eles não concebem que haja outros meios capazes de modificar as condições da vida política de uma sociedade, senão a modificação das suas instituições de direito público (…) os idealistas românticos, os racionalistas, os metafísicos desdenham as leis do desenvolvimento social, fazem das sociedades simples matéria plástica que eles presumem facilmente modelável à feição de sua vontade, segundo os módulos engenhados por sua imaginação”.8

Na verdade, as grandes reformas, as reformas profundas, de caráter social, antes que legal, só sobrevêm no exercício de um regime democrático, como produto da vivência constitucional e não apenas da letra constitucional, daí o equívoco dos utópicos.

Não percebem que o problema de qualquer organização política, econômica e social é muito mais complexo do que parece àqueles que pensam em poder resolvê-lo com simples reformas constitucionais. “A norma facilita ou dificulta o progresso, mais não o gera materialmente. A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos” 9. “Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes”.

Pode-se afirmar que “hoje, nenhum constitucionalista, por mais ardente juspositivista que possa ser, afirmaria que uma Constituição por si própria tem condições de conformar a realidade que a ela não se adapte. Uma Constituição, qualquer Constituição, leva a pior: o poder, antes de concentrar-se na lei, está nos fatos sociais; antes de estar no Estado, está na sociedade”10.

Em conclusão, a avaliação crítica de uma Constituição marcada pelo utopismo nos leva, fatalmente a duas conclusões: ao perigo de tornar-se fonte permanente de crises; e ao perigo, ainda maior, de por em risco a estabilidade política e a democracia.

Notas Bibliográficas ______________________

1. Dicionário de Ciências Sociais, Ed. Fundação Getúlio Vargas,Rio de Janeiro, 1986, p. 1284

2. Karl Mannheim, Ideologia e Utopia, Ed. Zahar,São Paulo, 1968, p. 216

3. Roberto Campos,A lanterna na Popa, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1994, p. 1186

4. Pessoa de Moraes, Tradição e Transformação no Brasil, Ed. Civilização Brasileira,Rio de Janeiro, 1973, 2a. edição, p. 287.

5. Giovanni Sartori, Teoria Democrática , Ed. Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1965, p. 61.

6. Oliveira Vianna, O idealismo na Constituição , Ed. Terra do Sol, Rio de Janeiro, 1927, p. 25.

7. Giovanni Sartori, ob.cit., p.61

8. Oliveira Vianna, ob.cit., p.25

9. Helio Jaguaribe, Três Problemas e Seis Cenários, Folha de São Paulo, 21/7/1988, p.A3

10. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Constituição e Revisão, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1991, p. 385