Vasto mundo, mais vasto é meu coração: as muitas faces da Justiça

29 de novembro de 2024

Alexandre Chini Juiz de Direito do TJRJ / Advogado Professor de Direito Processual Civil

Marcelo Moraes Caetano Professor da UERJ e do IBMR-Laureate International Universities

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O título deste artigo remete a um dos grandes epígonos da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade e seu Poema de sete faces, todas a espreitar, silentes e canônicas, um mundo desconcertante e até crudelíssimo a quem só se contenta  com o maniqueísmo rés de duas únicas faces.

Como estudiosos da linguagem jurídica, da linguística forense, da epistemologia do direito, da argumentação e da retórica (CHINI; CAETANO, 2024), constatamos que a observação acurada da história das línguas é uma nau segura em que nos fiamos e confiamos. As línguas mudam porque o mundo muda. Saussure dizia que o rio de uma língua caminha para a transformação inexorável. E completava: “Se isso acontece de modo lento ou em velocidade de torrente, pouco importa”.

Num mundo tão vasto, de tradições e contradições, para se alcançar a justiça, parece-nos que é preciso ativar o coração, o qual, como sabemos, tem razões que a própria razão desconhece. 

Um epistemólogo moderno, Thomas Kuhn, ficou famoso ao reeditar o conceito de quebra de paradigmas nas ciências. E, naturalmente, nas sociedades. Esse conceito kuhniano implica que fatores condicionantes – como, por exemplo, a tomada de consciência de situações de opressão – começam a agir sobre as sociedades até que, passados por fases de avaliação social, chegam à implementação; depois da qual os paradigmas se quebram de uma vez por todas, como lembra Kuhn; e o vidro não voltará nunca mais a ser areia. 

Essa ideia na verdade remonta à dialética instaurada por dois pensadores que viveram antes de Sócrates: Parmênides (para quem a essência está na permanência) e Heráclito (para quem a essência está na transitoriedade). As Naturwissenschaften e as Kulturwissenschaften, como traçadas em fronteiras por Pitágoras e posteriormente por Humboldt, se retroalimentam em comunhão. 

Vere Gordon Childe, no epigramático período entreguerras (1926), explicou que três conjuntos de revoluções desenharam a civilização moderna: a revolução neolítica ou agrária (quando quase todos os povos deixaram de ser nômades e passaram a ser sedentários, há cerca de 12 mil anos), a revolução urbana (consequência natural e paulatina da primeira revolução) e as revoluções industriais (ocorridas em Londres em pelo menos quatro grandes ondas, desde o século XVIII). Aristóteles cunhou seu conceito de cultura, avant la lettre, num postulado que bem poderia assimilar Childe: trata-se do conjunto de éticas, estéticas, valores, ideias, cognições, comportamentos e complexos atitudinais exercidos em coletividade, e aceitos por ela. Terry Eagleton, muito mais recentemente que o Estagirita, restringiu-se a repetir as palavras do fundador do Liceu. 

No direito, digamos que de modo paralelo a isso, houve uma espécie de primeira grande era, o jusnaturalismo, em que a natureza e suas regras deveriam ditar o senso de justiça. A demolição dessa forma estrita de ver as sociedades se deu quando se percebeu que esse poderia ser um pensamento selvagem, em que somente os mais fortes teriam condição de devorar os mais fracos. Sucedeu-a o chamado juspositivismo, a prevalência da letra escrita, que encontrou em Kelsen seu mais fervoroso defensor. A ruína desse modo estrito de ver as coisas ocorreu, como bem lembrou o Ministro Luís Roberto Barroso em recente palestra que proferiu na Academia Brasileira de Letras, quando a humanidade se deu conta de que todas as linhas presentes no nazismo e suas barbáries estavam inscritas em leis, as infames Leis de Nuremberg, que suscitaram julgamento homônimo. 

Em reflexão sobre a palavra falada e a palavra escrita deduzimos que o ser humano, do ponto de vista meramente temporal, falou antes de escrever. Há quem mapeie o homo sapiens com centenas de milhares de anos de existência, ao passo que a escrita só apareceu entre nós, até onde sabemos, há parcimoniosos cinco ou seis mil anos. No entanto, a perspicaz e conhecida provocação de Derrida, ao deslocar a escrita para “antes” da fala, confrontando diretamente o próprio Platão pela via de seu Fedro, permite-nos outra reflexão que diz respeito à questão de que, sem a escrita, nossa civilização e mesmo nossa cultura, nos sentidos contemporâneos, não subsistiriam. 

Benedict Anderson, em seu Comunidades imaginadas (livro indispensável para introdução às interseccionalidades que os eruditos contemporâneos devem conhecer) esclarece: “como Seton-Watson mostra de maneira muito interessante, o século XIX, na Europa e na periferia mais próxima, foi a idade de ouro dos lexicógrafos, gramáticos, filólogos e literatos do vernáculo. Então podemos ilustrar essa revolução lexicográfica como se fosse o trovejar crescente num arsenal que começa a explodir, conforme cada pequena explosão se propaga, e detona outras, até que o clarão final transforma a noite em dia” (ANDERSON, 2013, p. 112-113). Com isso, queremos enfatizar a importância e mesmo a primazia da palavra oral e da palavra escrita em nosso cerne social, já que os instrumentos linguísticos descritos por Anderson, nas palavras de Bilac, possuem o condão de guardar o “ouro nativo” de um idioma.

Outro pensador, preludiando séculos antes o pensamento de Anderson, ensina que o naufrágio pode dar a ilusão de se ter chegado a algum porto – este pensador é do dramaturgo Sófocles, em sua obra sintética Antígona. Muitas pseudoconclusões são, na verdade, naufrágios. Não existe qualquer tipo de atalho quando a proposta é o pensamento. Açodar-se, no pensamento, leva ao abismo. Precipitar-se leva ao precipício – não à toa são vocábulos cognatos em nossa língua portuguesa. Os deuses são inclementes fiadores do tempo, da paciência, da disciplina, da acuidade, parafraseando o Hesíodo do mundano Trabalhos e dias, não da sempiterna Teogonia.

O século XIX, como atiladamente observado por Anderson, é a esquina do mundo. Alguns séculos depois do Romantismo, Merleau-Ponty falará, próximo aos nossos dias, do alvorecer de grande “irracionalismo” no pensamento ético-estético do ocidente, exatamente nesse século XIX, querendo dizer, com isso, que nomes como Nietzsche, Schopenhauer, Freud, Marx, e até Foucault, atreveram-se a retirar do ser humano suas arcangélicas asas da razão pura e do juízo puro kantianos, quase onipresentes na tradição humanista até então. Esses pensadores arremessaram o ser humano, e sua dignidade vertiginosa, nos vales das sombras e das contradições de um mundo guiado pela “representação”, pela “vontade”, pelo “desejo”, pelo “inconsciente”, pela “tragédia”, pela “luta de classes”, pela “microfísica do poder”. Pelo “reino das sombras”, como diria Lefebvre sobre esses autores; sombras presentes no mesmo poema de Drummond que nos serve de guia a este ensaio; sombras, enfim, inevitavelmente projetadas toda vez que a luz se ergue; e diretamente proporcionais à estatura dessa própria luz, como Jung preconizaria ao investigar o(s) inconsciente(s) descrito(s) por seu mestre, Freud.

Pensar e refletir trazem como recompensa o Logos, Veritas, a verdade, não um véu soturno de verossimilhanças criadas como deformações, segundo Platão descreveu em sua Caverna. 

O Logos é a meta – prefigurou-nos Platão. 

Devemos ser aguçados e observar Platão de modo epilinguístico, ao percebermos que, embora seguisse as ideias de Sócrates sobre a primazia e onipotência da palavra falada (Sócrates não admitia que nenhum aluno seu anotasse o que ele dizia), foi por desobedecer seu mestre Sócrates e escrever suas ideias que essas puderam, de fato, perenizar-se sob sua pena. 

Isso, no entanto, não diminui nem contradiz o valor do autor de Apologia de Sócrates, Protágoras, Górgias, Crátilo, República, Parmênides, Timeu. Devemos relembrar, portanto, que, para Platão, o Logos e sua quintessência pousavam irredutivelmente no plano das ideias. Querer deslocá-lo desse patamar magnânimo representaria uma heresia contra o que, sob a perspectiva platônica, o Logos representava: a pureza, o absoluto, o imaculado, o bem, o belo, o sagrado, o justo. 

É interessante observar que São Jerônimo (para os filólogos romanistas, uma das mais importantes fontes do latim vulgar), em sua tradução latina da Bíblia, a Vulgata, traduziu Logos ora como Verbis (que por sua vez foi traduzido para os vernáculos como palavra, verbo ou ação, como no versículo “no princípio era o verbo”, de São João), ora como Verdade, ora até mesmo como Deus (como no mesmo versículo joanino, quando se traduz “e o verbo era Deus”). Se remontarmos ao pensamento ático-jônico, ao grego koiné e à visão de Sócrates e Platão, poderemos considerar que de fato essa polissemia era plausível para o conceito de Logos, além de outros sentidos igualmente válidos. A polissemia e a pluralidade semântica, e não a literalidade, perfaziam o cerne do pensamento do idioma que exprimia os conceitos na Grécia em sua antiguidade clássica. 

Já para Aristóteles, a arte e a palavra escrita, inclusive uma lei escrita, foram alçadas como expressões também passíveis de falar pelo Logos (Aristóteles salvou o direito e a filologia), sendo guindadas ao estatuto de uma espécie de lógica própria, imanente, ao contrário de Platão, seu mestre e preceptor por décadas. A arte, a partir daí, de fato passou a ser encarada como linguagem própria, que podia exprimir os conceitos mais sublimes, assim como a palavra escrita. Aristóteles tampouco via mal, problema ou sequer degeneração na simulação das ideias (observe-se que simulacro era, para Platão, um ponto de degeneração máxima do Logos), característica que o Estagirita considerava central para as artes, o que ele presentificou, em sua Arte poética, em seu conceito de mimese.

Desse modo, Aristóteles trouxe para nós a possibilidade de fruirmos o bem, o justo e o belo, e até mesmo o puro e o sagrado (presentes no plano das ideias), de modo não mais abstrato, mas, sim, concreto. Rafael de Sanzio imortalizou essa dupla de abstração-concretude, respectivamente em Platão e Aristóteles, no centro de seu quadro Escola de Atenas, que repousa no Vaticano, em que Platão aponta o dedo indicador sobranceiro para cima (as ideias abstratas), ao passo que, ombreado a ele, Aristóteles aponta a mão aberta espalmada para o meio (as coisas e suas representações artísticas ou escritas). 

Essa oposição conceitual não se perdeu jamais das filigranas do pensamento ocidental. Como quer que seja, ainda que refutada por Sócrates e mais ainda por Platão, a arte sempre foi compreendida como linguagem, e a palavra escrita permite que a interpretação e a exegese – presentes tanto num conto de Chaucer quanto num artigo de nossa constituição – caminhem unidas.

O senso de justiça guia parte substantiva da humanidade. Felizmente. O belo e o justo preditos (e benditos) no coração mais vasto que o mundo vasto de Drummond. Não se trata de otimismo, pois reconhecemos que o otimismo sói ser tolo, como nos mostrou Voltaire com seu cândido professor Pangloss. E também Machado de Assis, com seu pueril professor Rubião, praticamente um petiz em pele de vetusto, para quem, diante de incontornável superlotação da humanidade, a solução, seguindo o patético humanitismo de seu preceptor Quincas Borba, seria exterminar metade dessa humanidade, a tribo “perdedora”, para que a tribo “vencedora”, enfim, pudesse brandir altaneira seus troféus, seus galardões e suas batatas. 

Essa “solução” para o mundo, chamada de “solução final” – a erradicação dos mais fracos, dos “perdedores” –, era a base do pensamento do seguidor e cocriador das já mencionadas Leis de Nuremberg. Não deu certo. Nunca dará certo. Não deu certo na literatura de Voltaire, não deu certo na literatura de Machado, não deu certo no delírio vertiginoso de um juspositivismo estreito, literal e letal. Porque nada disso corresponde a uma “solução”: tudo são meros naufrágios onde se tem a ilusão da chegada. 

Para um mundo vasto, parece só haver uma saída: um coração ainda mais vasto, como dizia o poeta. Um coração humano que perpasse o tempo, as culturas, as diferenças, as incertezas e as mudanças. Um coração que busque na justiça, em sua imensa pluralidade, todas as faces humanas, em suas permanências (como pensaria Parmênides) e em suas transitoriedades (como apontaria Heráclito).

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