Edição 270
Vedação à fixação equitativa de honorários sucumbenciais em causas de elevado valor
15 de fevereiro de 2023
Dentre as várias polêmicas surgidas acerca das novidades previstas no Código de Processo Civil (CPC) de 2015, seguramente ainda ocupa um lugar de destaque a questão da possibilidade ou não de fixação equitativa de honorários sucumbenciais em causas de valor muito elevado, em patamares inferiores aos percentuais mínimos previstos nos parágrafos 2o e 3o
do art. 85.
A polêmica decorre de uma pontual, mas relevante alteração promovida no CPC/2015 em relação ao diploma que o antecedeu.
Os parágrafos 3o e 4o do art. 20 do CPC/1973 estabeleciam regras distintas para fixação da verba honorária sucumbencial, baseando-se num único critério: em havendo condenação para pagamento de quantia certa em dinheiro, os honorários seriam “fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre o valor da condenação”; em todos os numerosos casos em que não há condenação – sentença terminativa, de improcedência, de procedência de pedido de caráter declaratório ou constitutivo, na sentença que impõe obrigação de fazer, não-fazer e dar coisa diversa de dinheiro, e nas execuções embargadas ou não – o parágrafo 4o do art. 20 do CPC autorizava o juiz a fixar verba honorária sem ter em conta os parâmetros objetivos indicados pelo parágrafo 3o, por “apreciação equitativa”. O mesmo critério se aplicava a sentenças condenatórias pecuniárias “de pequeno valor” ou contra a Fazenda Pública.
Esse panorama foi profundamente alterado pelo CPC/2015, cujo art. 85, parágrafo 2o, determina expressamente que os honorários sejam fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, pouco importando o conteúdo da sentença (de mérito ou não, condenatório ou não). Os percentuais observáveis nas causas envolvendo a Fazenda Pública são menores (art. 85, §3o), mas mesmo nessa sede se afastou a apreciação equitativa que ficou, portanto, restrita às causas “em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo” (art. 85, §8o).
É inegável os parágrafos 2o e 3o do art. 85 não diferenciam a aplicação dos critérios percentuais objetivos lá previstos em relação a causas de valor moderado ou elevado. Já o parágrafo 8o do mesmo dispositivo apenas permite a fixação equitativa em causas de valor “inestimável ou irrisório”. Não há, por fim, outros parágrafos do mesmo artigo ou outros dispositivos do Código ou de fora dele que fazem qualquer alusão à fixação equitativa em causas de valor expressivo (a par da dificuldade decorrente da vagueza que conota essa expressão).
Curioso notar que nos mais de 40 anos de vigência do CPC/1973 não se constatou nos tribunais discussão acerca da possibilidade do juiz reduzir o valor da condenação em honorários sucumbenciais abaixo de 10% quando a verba se revelasse muito elevada. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) apenas se dispunha a rever honorários fixados equitativamente de forma exorbitante (abstendo-se de aplicar o famigerado verbete no 7 de sua súmula, que veda “reexame fático-probatório” em sede de recurso especial).
Ainda assim, desde que entrou em vigor o CPC/2015, muitos tribunais passaram a fixar honorários sucumbenciais em patamares inferiores aos percentuais mínimos previstos nos parágrafos 2o e 3o do art. 85 em causas consideradas de valor muito elevado.
O tema chegou ao STJ e foi afetado para julgamento em regime de recursos especiais repetitivos (Tema no 1076). Em março de 2022, concluiu-se o julgamento, por placar apertado de sete votos a seis, no qual prevaleceu o voto do Relator, Ministro Og Fernandes, afastando-se a fixação equitativa para causas de valor elevado.
Esse precedente qualificado, embora tenha sido fruto de amplo debate (o que incluiu a intervenção de diversos amici curiae) está sob intenso ataque.
Primeiro, porque em novembro de 2022, a Presidência do STJ admitiu recurso extraordinário contra o acórdão, a despeito da matéria ser objeto exclusivamente de regramento em legislação infraconstitucional, não se vislumbrando nem sequer alguma violação reflexa a norma constitucional.
Segundo, porque ministros têm se manifestado publicamente pela necessidade de revisão do Tema no 1076, apesar de não ter havido nenhuma alteração do cenário legislativo, político, econômico, social ou político que justifique a superação de precedente tão recente, à luz do dever imposto aos tribunais pelo art. 926 de “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Terceiro, porque conforme noticiado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, alguns tribunais têm inobservado a tese firmada pelo STJ, valendo-se de fundamentos sem amparo legal como, por exemplo, o de que o precedente não seria obrigatório por ter sido fruto de um quórum apertado ou pelo fato do acórdão proferido ter sido desafiado por recurso extraordinário.
Apesar do texto legal ser claro a respeito da matéria, apesar de o STJ tê-lo interpretado de forma correta e apesar de não haver razões para que um precedente tão recente seja revisto, é perfeitamente compreensível o profundo incômodo causado com esse aspecto do atual regime das verbas sucumbenciais.
Se por um lado o custo elevado das verbas sucumbenciais pode servir de importante desestímulo à litigiosidade irresponsável, e se o critério de fixação equitativa como regra trazia insegurança e abusos, por outro parece ter o legislador errado na dose desse remédio, ao determinar que, em regra, os honorários sucumbenciais devem ser de 10% a 20% do montante da condenação. A essa verba podem se somar os honorários sucumbenciais recursais, até o limite de 20% (art. 85, §11) e honorários em cumprimento de sentença de 10% (artigos 520 e 523), de modo que se pode chegar ao total de 30% computadas as fases de conhecimento, recursal e executiva. Trata-se de montante expressivo, que onera de forma substancial os custos do litígio (ao ponto de ser possível considerar que em muitos casos litigar perante a Justiça estatal será mais custoso do que levar o conflito a solução arbitral, usualmente reputada mais onerosa).
Esse quadro se agrava ainda mais se tomarmos em conta os riscos que o nosso cabedal legislativo acerca dos honorários sucumbenciais traz no tocante a conflito de interesses entre advogado e cliente (quanto à celebração de acordos e à decisão do réu em impugnar o valor da causa para majorá-lo, por exemplo) e da protelação dos processos cujo mérito já foi decidido pelo Poder Judiciário, mas que se prolonga em razão de discussões que se resumem à verba sucumbencial.
Em sistemas jurídicos com os quais o ordenamento brasileiro compartilha raízes comuns não há regra similar. Os honorários sucumbenciais são devidos ao litigante vencedor, para que este se veja reembolsado dos gastos em que incorreu para contratar advogado para patrocinar a causa. Ou seja: o advogado é remunerado, em princípio, por seu cliente o qual pode, em caso de êxito no processo, obter junto ao seu adversário o correspondente ressarcimento. O valor dos honorários, por sua vez, guarda proporcionalidade com o trabalho desenvolvido pelo advogado, que não necessariamente encontra correspondência exata com o valor em disputa. Causas de valor elevado podem se revelar, na prática, simples e céleres, ao passo que processos de valor módico podem abrigar discussões de alta indagação e grande complexidade.
Contudo, todos os problemas aqui noticiados – muitos deles merecedores de uma análise multidisciplinar, usando ferramentas como as do law and economics – teriam de ser equacionados em sede legislativa. Texto legal claro e eloquente há e, bom ou ruim, justificável ou não, só poderia deixar de ser observado se violador da Constituição Federal, do que não se cogita.
Mesmo que a questão seja analisada de iure condendo, representaria manifesto retrocesso expandir novamente a fixação de forma equitativa, sendo muito mais adequado reduzir o percentual mínimo de 10%, com um escalonamento, como foi feito para a Fazenda Pública (art. 85, §3o).