Vida longa à República

23 de agosto de 2013

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CasalEmbora integremos uma República instituída em 1889, regimes políticos que ao longo do tempo a compuseram a enxovalharam de tal modo que a sua plenitude só se garantiu, verdadeiramente, com as Constituições de 1946 e a atual, de 1988. E a República é importante e fundamental, porque, nela, a coisa pública, no seu sentido mais amplo, deve ser respeitada, preservada e protegida, o que usualmente se faz dividindo a gestão estatal em funções primordiais, que se interpenetram e se submetem a controles, o que, em Direito Constitucional, se convencionou chamar de sistemas de freios e contrapesos.

No nosso modelo de Estado, que repete tantos outros consolidados no mundo democrático, idealizado por Montesquieu em 1748, temos essas funções exercidas pelos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, de modo que, para uma convivência pacífica e organizada da sociedade, a subordinação legal dos cidadãos, de forma geral e impessoal, limita-se, como regra, ao que advém do trabalho do Poder Legislativo e da interpretação das leis pelo Poder Judiciário, notadamente quando são manejados mecanismos constitucionais que, excepcionalmente, admi­tem que determinadas decisões produzam efeito assemelhado ao das leis em sentido estrito, como ocorre, por exemplo, com as ações de controle de constitucionalidade e inconstitucionalidade. É certo que há hipóteses, também excepcionais, nas quais a Constituição republicana defere a outros entes públicos a edição de atos com efeitos gerais e abstratos, exemplificando-se com as Medidas Provisórias, mas, insista-se, essas hipóteses são realmente excepcionais, daí porque não serão aqui levadas em conta.

Com essas considerações iniciais, merece algum comentário a recente Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, na qual o referido órgão veda às autoridades competentes, e aqui só se pode ler os magistrados e delegatários de serviços extrajudiciais, a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, matéria que não está legislada nem pacificada pelos tribunais. Destaque-se que nos considerandos do referido ato há menção à ADPF 132/RJ, na qual o Supremo Tribunal Federal, enfrentando tão somente o conteúdo do artigo 1.723 do Código Civil, decidiu, com efeito vinculante, afastar qualquer interpretação discriminatória da união estável entre parceiros do mesmo sexo, removendo o obstáculo da literalidade da norma legal para permitir a constituição familiar homoafetiva, não tratando de qualquer outra forma de família que não a decorrente da união estável e não reconhecendo o casamento homoa­fetivo de forma automática. Há, ainda, na Resolução do CNJ, menção ao recurso especial 1.183378/RS, no qual o Superior Tribunal de Justiça entendeu pelo afastamento do óbice relativo à diversidade de sexos para determinar o prosseguimento do processo de habilitação de casamento.

Todavia, o recurso especial produz efeito apenas entre as partes que participaram da ação judicial, não podendo sequer ser utilizado para legitimar ato dotado de generalidade e abstração. A resolução do CNJ, portanto, disse mais do que o decidido pelo STF, sendo conveniente apontar que a união estável se caracteriza, em regra, como uma relação informal, surgida de situação de fato, independente do elemento volitivo para sua caracterização, enquanto o casamento é negócio jurídico solene, dependente de inequívoca manifestação ou declaração da vontade para a celebração, embora tenham, ambos, o fim de formação de família. O STF tratou apenas de uma das controvérsias que o tema encerra, de modo que o ato do CNJ está, em verdade, criando norma de efeito abstrato e geral, o que não se inclui entre as suas funções, segundo se lê do artigo 103-B da Constituição Federal.

Não se discute aqui o mérito do ato, até porque, posso adiantar, sou inteiramente favorável ao conteúdo material do que ali se defende. A questão está na inobservância de princípios tão caros à República, como o da separação dos poderes, protegido pelo artigo 60 da Carta Política, que lhe dá status de cláusula pétrea. Não se discute, também, a importância do papel desempenhado pelo CNJ: todavia, a sua natureza de órgão administrativo é inegável e já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3.367/DF. Assim, a competência advinda de sua natureza precípua não o legitima a assumir o papel de legislador, regulamentando a orientação de cartórios em matéria que, por lei, se sujeita a processo de dúvida a ser solucionado pelos magistrados, nem pode dar interpretação conforme a Constituição, por ser atribuição do Supremo Tribunal Federal. O poder regulamentar do CNJ, por conseguinte, restringe-se a interpretar as leis em sentido formal com o objetivo de aplicação administrativa, nunca intervindo na atividade legislativa ou jurisdicional.

Sobre o tema principal aqui tratado, andou bem a Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao editar o Provimento CGJ 25/2013 estabelecendo que se trata de matéria jurisdicional a apreciação de eventual impedimento legal para casamento homoafetivo, não podendo ato normativo interno do Tribunal sobrepor-se ao entendimento do juízo competente. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, como dispõe o parágrafo único do artigo 1o da Constituição, e o seu exercício se dá por meio da divisão tripartite acima mencionada, na qual as atividades legislativas são exercidas primordialmente pelos parlamentares e as jurisdicionais pelos juízes.

O tema de fundo está realmente a merecer um tratamento legislativo, e o Congresso já o vem discutindo por um longo tempo, mas a obediência republicana recomenda que aguardemos esse debate, que está se dando no foro próprio, ou, se a espera se alongar por muito tempo, que busquemos os mecanismos judiciais possíveis, assegurando assim a segurança jurídica, fundamental para a consolidação do Estado Democrático de Direito.