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Viva o dezoito de setembro

5 de novembro de 2003

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Discurso de posse no Instituto dos Advogados Brasileiros

O Instituto dos Advogados Brasileiros – uma das mais gloriosas e veneráveis instituições brasileiras – admite-me em seus quadros. Eu, que estabeleci como proposta de vida o exercício da advocacia, retorno aos domínios dessa que – no dizer de Voltaire – é a mais linda das profissões. Sinto-me como um filho amoroso, cujos pais retribuem com mimos e carinhos a dedicação recebida. De fato, minha dedicação à advocacia foi constante, desde quando, ainda cursando a Faculdade Nacional de Direito, recebi a credencial de solicitador acadêmico. Orientado pela sabedoria do imenso advogado saudoso amigo, Senador João Villasboas e conduzido pelo brilho do jovem causídico Celso Fernandes de Barros, iniciei-me nas lutas forenses. Somente parei, quando a Ordem dos Advogados do Brasil reservou-me o mais alto galardão que se pode outorgar a um advogado brasileiro: a investidura como Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Nesses trinta anos de militância, atuei por duas décadas, no Conselho da OAB. Foram anos difíceis, imensamente ricos em experiência. Membro da Comissão de Defesa e Assistência, defendi advogados, vítimas da repressão. Tempo de ameaças, decepções, mas, sobretudo, de alegrias. Na Comissão de Seleção e Prerrogativas orientei colegas iniciantes, nos rudes caminhos do exercício profissional. A OAB ensinou-me a superar o medo. Considero-me, pois, um rebento da advocacia. A ela, devo tudo. Há doze anos funcionando na magistratura, não perdi o encanto, nem o vigor que caracteriza o advogado. Morro de saudades. Sou filho da OAB e, portanto, neto do IAB. Agora, os advogados inserem-me em sua mais nobre entidade: Instituto dos Advogados Brasileiros. Volto à casa avoenga. O retorno – para minha felicidade – acontece nesta cidade do Rio de Janeiro, a quem tanto devo.

De fato, o Rio de Janeiro outorgou-me o diploma de bacharel em direito e me ensinou a advogar. Aqui cheguei, como imigrante adolescente. Daqui saí, como cidadão, útil e pronto para o combate da cidadania. O Rio transformou-me em advogado –cidadão por excelência. O Rio de Janeiro deu-me família complementar: Yvette, companheira de quarenta anos e uma centena de irmãos, adquiridos na convivência da Faculdade Nacional de Direito. Agora, incorpora-me ao glorioso Instituto dos Advogados Brasileiros – a matriz da cidadania. Resta-me bater no peito e reconhecer, humildemente: NON SUM DIGNUM! Para aumentar a felicidade, minha volta acontece no dia 18 de setembro. Data em que deveríamos comemorar o qüinquagésimo sétimo aniversário da Constituição democrática de 1946. Há cinqüenta e sete anos, o Brasil recebia sua primeira carta política, efetivamente democrática. Aquela que nos possibilitou viver o mais longo Estado de Direito da história. Emblematicamente, o dezoito de setembro iniciou um ciclo de felicidade. Foram dezoito anos de progresso, alegria e auto-estima.

A Constituição de 1946, foi certamente, a mais democrática de nossas Cartas Políticas. Paradoxalmente, foi a mais forte de todas. Conta-se que o Marechal Eurico Gaspar Dutra, – primeiro Presidente de República a Governar sob seu pálio – perguntava constantemente a seus assessores: “O Livrinho permite?” O livrinho a que se referia, carinhosamente, nosso Marechal-Presidente era a Constituição Federal. Naquele tempo, ou “o livrinho” permitia, ou não se fazia. Que diferença! Hoje, temos Uma Constituição enorme, detalhista, mas extremamente débil. Se alguma idéia contraria preceito constitucional, já não mais se cancela o projeto. Simplesmente, reforma-se a Constituição Federal. Nem mesmo as chamadas cláusulas pétreas escapam.

Em relação a tais cláusulas, um parlamentar integrante de um desses rolos compressores que se formam em torno de nossos presidentes da República, observou, com inegável cinismo: “para cláusula pétrea, temos emenda britadeira”. A falta de respeito para com o que deveria ser a Carta Magna, tornou necessária uma nova classificação: Em rigor, nossa atual Constituição não é rígida, nem flexível: é gelatinosa. Sua estrutura amolda-se ao gosto de quem detém o Poder, na ocasião.

Instalaram-se, entre nós, dois vícios fundamentais, a que os jornalistas Alberto Dines e Luís Nassif denominaram “legismania” e “reformite”. A legismania revela-se na compulsão de legislar sobre qualquer fenômeno da vida quotidiana. Criamos leis, sem pensar, nem avaliar conseqüências; e o fazemos com leviana rapidez. A imprudência da legismania dá ensejo a outro vício, a “reformite”, vale dizer ao “empenho irresponsável para anular a lei, decreto ou artigo constitucional, horas depois de ter sido aprovado”. A fúria reformista ataca a Constituição à razão de duas emendas por ano: em quinze anos de vigência, já são trinta as emendas. Parece que ressuscitou entre nós, a máxima formulada por Assis Chateaubriand, nos tempos da Ditadura Vargas: “Se a lei é contra mim, vamos mudar a lei.”

O Código Civil – o grande monumento que honrava nossa cultura jurídica foi ab-rogado, por uma razão singela: fora criado em 1916. Para nosso gosto, estava velho. Quanta inveja me deu, ao ouvir do Presidente da Corte de Cassação francesa, a informação de que seu país preparava as comemorações pelos duzentos anos do Código Napoleão. As duas manias atacam, como doença crônica, o Código de Processo Civil, que se vai transformando em intragável sopa de letras. O último projeto, acrescentará ao Art. 487 uma seqüência de letras. Teremos o Art. 487a; 487b. O acréscimo de letras irá até o fonema Q. Examinar nosso já complicado CPC será tarefa diabólica. Algo tão difícil quanto fazer declaração para o Imposto de Renda. Em pouco tempo, haverá profissionais e programas de computador especializados em interpretar o Código formal. Agora, os dois vícios conjugam-se, para reformar o Poder Judiciário. Tal empreendimento desenvolve-se com a tradicional imprudência. Agora, a moda é o controle externo e a investidura a termo. Propósito, nosso Presidente da República teria dito: “Não é possível que um sujeito se abolete em um tribunal e lá permaneça pelo resto da vida.”

Meus confrades do IAB: Há Três órgãos incompatíveis com patrulhamentos externos: a OAB, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário. Corte-se a autonomia de qualquer dessas entidades e, em pouco tempo, o Estado de Direito se transformará em dolorosa farsa. O regime militar de 1964. Desenvolveu experiência discreta, de controlar externamente o Judiciário. A experiência não deixou saudades, mas cicratizes: ninguém esquece a cassação dos Ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. A Ordem dos Advogados do Brasil vive sob ameaça semelhante. Não fosse a corajosa convicção democrática do Ministro Luiz Rafael Mayer, a Congregação do Advogados estaria sob inspeção permanente do Tribunal de Contas da União. É preciso que fiquemos atentos.

Lutamos muito tempo, para afastar a Ditadura. Não nos podemos dar ao luxo de recairmos. Vamos cultuar o espírito que gerou a saudosa Constituição Federal, hoje aniversariante. Ele nos ensina que as leis são criadas para permanecer e que o jogo legismania x reformite acabará, fatalmente, com uma derrota: a da cidadania.
Confio nos homens que integram esta casa. Eles não deixarão que sucumbamos no caos que nos é preparado. Viva o Dezoito de setembro! Viva o IAB!