A Defensoria Pública enquanto agente eliminador de barreiras para a plena inclusão social de pessoas autistas

7 de abril de 2022

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Dois de abril é o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo. A data tem por objetivo difundir informações sobre o autismo, assim como reduzir o preconceito em torno do tema.

As pessoas autistas são consideradas pessoas com deficiência nos termos do art. 1º, parágrafo 2 da Lei nº 12.764/2012. Por consequência, os seus direitos são garantidos pela Lei que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/2012), pela Lei Brasileira de Inclusão ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 /2015) e pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (incorporada pelo Brasil com status constitucional), dentre outras legislações.

Para que haja a eliminação do preconceito, é primordial que se invista na superação das barreiras que impedem a plena inclusão social desse grupo de pessoas.

Para a melhor compreensão do fenômeno da superação das barreiras, é necessário adentrar ao conceito de modelo social de deficiência – adotado na atualidade tanto em âmbito interno, quanto internacional.

O modelo social de deficiência surge enquanto superação do modelo médico reabilitador e possui dois pressupostos principais. O primeiro deles é de que as causas que originam a deficiência não são religiosas e nem científicas, mas preponderantemente sociais. Ou seja, a raiz do problema não está nas limitações individuais do ser humano, mas nas limitações da própria sociedade, que não consegue prestar serviços apropriados e garantir que as necessidades das pessoas com deficiência sejam levadas em consideração dentro da organização social. 

O segundo pressuposto refere-se à importância da pessoa com deficiência para a comunidade em que ela está inserida. Partindo-se do raciocínio de que toda a vida humana é igualmente digna, entende-se que as pessoas com deficiência têm muito a contribuir para a sociedade, ou que, pelo menos, a contribuição será a mesma que o restante das pessoas sem deficiência. Considerando que as causas que originam a deficiência são sociais, então as soluções não devem ser direcionadas individualmente à pessoa afetada, mas sim à sociedade. Desta feita, o modelo social defende a reabilitação ou normalização de uma sociedade – e não de pessoas com deficiência – que precisa ser pensada e projetada para atender as necessidades de todos.

Desta forma, a deficiência passa a ser vista como a resultante da interação entre as características individuais do sujeito mais as barreiras existentes na sociedade em que ele está inserido e que atrapalham ou impedem o gozo de seus direitos e deveres de forma plena. As pessoas autistas possuem impedimentos que, em conjunto com as barreiras sociais existentes, podem obstruir a sua participação em igualdade de condições com as demais. Os impedimentos das pessoas com transtorno do aspecto autista possuem dois critérios diagnósticos: (I) déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos; (II) padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades. Acrescenta-se, ainda, que cerca de 50% das pessoas autistas apresentam deficiência intelectual associada.

Sendo assim, não são as pessoas autistas que precisam se normalizar, mas sim a sociedade que precisa atuar na eliminação de barreiras de forma a possibilitar a inclusão social das mesmas. E é nesse sentido que entra o trabalho da Defensoria Pública enquanto Instituição de promoção dos direitos humanos e da defesa de grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Analisando o art. 4º, inciso XI da Lei Complementar nº 80/1994 – que menciona expressamente a atuação da Defensoria Pública em favor das pessoas com deficiência (grupo no qual os autistas estão incluídos) – é possível concluir que a Instituição funciona como instrumento de superação da violência, da intolerância, da discriminação, da exclusão social e da incapacidade geral de aceitar o diferente, o que justifica a sua atuação em favor da efetividade dos direitos fundamentais de pessoas autistas, tais como o direito à educação, o direito à saúde, o direito ao trabalho, a emissão de documentos, a mobilidade urbana, o lazer, dentre outros.

Importante ressaltar, ainda, que a atividade da Defensoria Pública não se limita à atuação subjetiva de direitos individuais de pessoas autistas economicamente necessitadas, uma vez que, na atualidade, a Instituição passa a ser uma grande agência nacional de promoção da cidadania e dos direitos humanos, com atribuições que visam à proteção concomitante de pessoas carentes e não carentes financeiramente. Ademais, os grupos sociais vulneráveis são compostos por indivíduos que possuem um histórico de violência e exclusão e, portanto, merecem uma proteção jurídica especial a cargo do Estado e da sociedade, independentemente da configuração da carência econômica. É certo que, em algumas hipóteses, a carência econômica estará acompanhada de outras causas de vulnerabilidade, tornando ainda maior a responsabilidade da Defensoria Pública no sentido de atender e tutelar os direitos de tais pessoas.

Dentro de tal contexto, passa-se a explanar algumas atuações exitosas de Defensorias Públicas na superação das barreiras de forma a possibilitar a efetivação dos direitos das pessoas autistas.

Recentemente – em março do corrente ano – a Defensoria Pública de São Paulo obteve duas decisões judiciais garantidoras dos direitos à educação e à saúde de meninos autistas no interior do estado. Em uma das demandas, a Defensoria solicitou a disponibilização de professor auxiliar para um estudante do ensino fundamental, para que as atividades pedagógicas propostas em sala pudessem ser adaptadas de forma que a criança executasse as tarefas escolares de modo satisfatório e dentro das suas possibilidades. Na outra, pediu o tratamento multidisciplinar específico, adequado e individualizado para que a criança com autismo pudesse ter a sua saúde restabelecida e, por consequência, ter condições de realizar o acompanhamento escolar e exercício dos demais direitos fundamentais. O direito à educação está intimamente ligado ao direito à saúde, pois, para que o aluno autista consiga absorver o conteúdo pedagógico de forma adequada, é preciso que a sua saúde esteja recebendo a atenção e o tratamento adequados.

A Defensoria Pública de Rondônia, por sua vez, já atuou no sentido de garantir o acesso ao tratamento de saúde de crianças autistas que necessitam do princípio ativo do canabidiol para o tratamento de crises de epilepsia, o que se deu por meio da importação do medicamento dos Estados Unidos, uma vez que o uso da substância é proibido pelo Direito brasileiro. Nesse sentido, a Instituição atuou objetivando o uso medicinal da substância para a efetivação do direito à saúde de pacientes autistas.

A Defensoria Pública do Espírito Santo também já obteve êxito em conseguir tratamento médico para uma criança de cinco anos com autismo severo, que precisava iniciar com urgência a terapia de intervenção comportamental Análise Aplicada do Comportamento (ABA, na sigla em inglês) com o objetivo de estimular o seu regular desenvolvimento. O plano de saúde negou a prestação de serviço. A Defensoria Pública identificou a abusividade e ilegalidade na conduta do plano de saúde diante da urgência do caso, obtendo sucesso com o ingresso da demanda judicial.

Em sentido semelhante, a Defensoria Pública do Rio Grande do Norte conseguiu reverter uma decisão em segundo grau e garantiu um tratamento terapêutico para uma criança com espectro do autismo, determinando que o município fornecesse o tratamento através do método ABA. Na decisão inicial, a Justiça havia determinado que o ente público fornecesse ao paciente acompanhamento com psiquiatra infantil ou neurologista infantil, psicólogo, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo, sem, contudo, observar a metodologia ABA. No recurso, no entanto, a Defensoria Pública defendeu que a Análise Aplicada do Comportamento, com seus subtipos, é método reconhecido e referenciado pelo próprio Ministério da Saúde em cartilha intitulada “Linha de cuidado para a atenção infantil às pessoas com transtorno do espectro autista e suas famílias no SUS”, bem como na Portaria nº 324/2016.

Integrando a listagem das atuações de sucesso, a Defensoria Pública da Bahia desenvolveu um estágio especial em parceria com o Projeto Fantástico Mundo Autista para proporcionar aos jovens autistas a oportunidade de qualificação profissional nas unidades da Instituição, possibilitando, assim, a inclusão no mercado de trabalho. Tal prática obteve o segundo lugar dentre as práticas exitosas premiadas pelo XIV Congresso Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, assim como foi finalista do Prêmio Innovare 2019.

Após a atuação da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, um homem autista de baixa renda financeira conseguiu isenção das taxas cobradas pelo embarque do seu cão de assistência emocional, possibilitando, assim, o seu direito à mobilidade urbana. O caso foi equiparado a situação das pessoas com deficiência visual, cuja presença do cão guia ajuda a desempenhar funções consideradas desafiadoras, assim como interagir com terceiros em ambientes públicos.

Os casos narrados acima são alguns dos exemplos de atuação da Defensoria Pública em prol da eliminação de barreiras de forma a permitir a plena inclusão social das pessoas autistas. Inúmeras outras atuações vêm ocorrendo na prática diária de defensores e defensoras públicas de todo o Brasil, na luta incansável por uma sociedade diversa que reconheça a diferença dos grupos e permita que todos participem ativamente dos diversos espaços, seja escolar, no mercado de trabalho, de lazer, no acesso à saúde, dentre outros.

Notas________________________________

1 Vide reportagem sobre o caso em: SP: Defensoria Pública obtém duas decisões que garantem direito à educação e à saúde a meninos com autismo – ANADEP – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos

2 Vide reportagem sobre o caso em: RO: Defensoria age para que crianças autistas recebam tratamento com Canabidiol – ANADEP – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos

3 Vide reportagem sobre o caso em: ES: Defensoria Pública garante tratamento para criança com autismo severo – ANADEP – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos.

4 Vide reportagem sobre o caso em: Município é obrigado a custear tratamento para criança com espectro do autismo | Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (rn.def.br)

5 Vide reportagem sobre o caso em: Estágio Especial é renovado por mais dois anos para promover a inclusão de jovens autistas em parceria da Defensoria e do Projeto FAMA (ba.def.br)

6 Vide reportagem sobre o caso em: Após ação da DPE/RS, autista consegue isenção de taxas cobradas para levar cão de assistência em avião – Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul