Edição 135
Gabriel do Alemão
30 de novembro de 2011
Andréa Pachá Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
– Doutora, tem um menino ai no balcão dizendo que se a juíza não resolver o problema dele hoje, vai virar traficante no Morro do Alemão.
Mas logo no morro do Alemão?! Era uma segunda-feira. Dia seguinte da ocupação pela Unidade da Polícia Pacificadora da favela mais violenta do Rio. Os jornais comemoravam o dia D como se a cidade tivesse amanhecido em paz, sem armas, sem tráfico, sem corrupção. Como, se, de uma madrugada para a outra, todos tivessem saído às ruas pra comer biscoito Globo, aplaudir o sol se pondo na praia de Ipanema de mãos dadas com o Cristo Redentor e cantar “Cidade Maravilhosa”.
Logo no dia que o Rio amanhecia Zona Sul, aquele menino ameaçava virar bandido?!
Foi uma semana atípica. Carros incendiados, sensação de pânico, falta de lucidez, o coro do mata e esfola ganhando corpo. Não fosse uma nota solitária do psicanalista Luiz Py no Facebook e uma lúcida entrevista do Luis Eduardo Soares pra salvar a semana, confesso que demoraria alguns meses pra recuperar a fé na humanidade. É impressionante como o medo compromete a racionalidade.
A tarde era longa. Doze audiências, tempo cronometrado, filho esperando carona no fim da tarde e o moleque insistente atormentava o Cartório e só ia embora depois de falar com o juiz.
Achei graça na abordagem do guri e mandei entrar.
O projeto de traficante era franzino, brilhava de tão negra a pele. Os dentes brancos e o sorriso aberto contrastavam com as ameaças anunciadas.
– Então é você que tá pensando em mudar pro Alemão?
– É isso não, moça.
Visivelmente constrangido pela perversa arquitetura da sala de audiências, prosseguiu:
– Eu tô tentando acertar uma parada já tem um ano e essa demora tá me dando revolta. Não tenho tempo pra ficar voltando aqui toda hora não. Eu trabalho todo dia.
– Então não quero te atrapalhar. Diz pra mim que parada é essa e o que é que eu posso fazer?
– Olha moça, a senhora não pode fazer nada não. Tem que ser um juiz.
– Vamos começar de novo. Muito prazer, eu sou a juíza.
O olhar do menino denunciava sua incredulidade. Mesmo naquela situação, ele tinha clareza do que era um magistrado e seguramente a sua imagem era muito diferente do que ele encontrou ali.
Precisei de algum esforço para representar a autoridade idealizada e continuei:
– Qual é o problema que você tá tentando resolver?
– Ontem, fui buscar uma cesta básica na Secretaria e quanto eu tava voltando, uns PM me pararam e acharam que eu tava roubando a cesta. Mostrei minha carteira de trabalho e só tem meu nome. Tô tentando há mais de ano resolver o resto e todo dia me mandam voltar depois. Agora inventaram que eu tenho que fazer um exame pra provar quando eu nasci.
Mandei buscar o processo. Gabriel era um de seis irmãos, abandonado pela mãe e sem qualquer documentação. Três anos antes, uma equipe do Serviço Social encontrou o grupo de crianças e levou para um abrigo. Na época, imediatamente se determinou o registro de todos, apenas com o nome. Alguns voltaram para casa de familiares, outros alcançaram a maioridade, perderam o fraterno contato e nunca mais souberam da mãe ou descobriram quem era o pai.
Por mais paradoxal que seja, pode-se dizer que Gabriel teve alguma sorte. Conseguiu emprego, tirou sua carteira de trabalho, tinha uma casa pra morar e dinheiro pro aluguel.
Há quase dois anos corria atrás do déficit de cidadania e envolto na burocracia excessiva e nas estantes de processos que se avolumam na medida em que se ampliam as diferenças sociais, o seu caso foi tratado com um dentre tantos.
Tentou-se em vão a localização da suposta mãe, dos irmãos, de testemunhas. Ofícios, citações por edital, etc. Na falta de qualquer comprovação quanto à sua idade, aguardava-se um exame médico que indicasse o ano de seu nascimento.
Nada mais inoportuno do que um processo para traduzir a eloqüência do olhar de Gabriel. Nada mais perverso do que o absurdo de submeter um ser humano a exigências obtusas. A rede legal de proteção é pra ser usada a favor do cidadão e não se pode transformar em suspeito um menino que jamais protagonizou sua vida e nem possui instrumentos mínimos de inserção social.
Gabriel afirmava no seu pedido inicial que era filho de Maria da Silva, não sabia quem era seu pai e nasceu em Petrópolis no dia 20 de dezembro de 1991.
A excessiva cautela para a comprovação desses dados remontava as lições ainda da Faculdade : Cuidado para não registrar um óbito inexistente e livrar alguém de uma condenação! Cuidado para não alterar a idade na certidão e eximir um maior da responsabilidade! Cuidado com fraudes no sistema previdenciário! Cuidado! Cuidado!
Tantos cuidados e nenhum cuidado para atender com presteza quem mais precisa da justiça.Tanta cautela e nenhuma preocupação em acreditar no que afirma um ser humano, sem presumir sua má fé ou sem transformar em investigado quem existe sem um papel que o transforme em cidadão.
Ouvidas essas observações e olhando no olho de Gabriel, a promotora desistiu das provas solicitadas.
– Então, Gabriel, você é filho da Dona Maria e nasceu em Petrópolis, no dia 20 de dezembro de 1991?
– Posso pedir uma coisa, doutora?
– Pois não.
– Dá pra eu nascer dia 1? É que dia 20 fica muito perto do Natal e todo mundo esquece do meu aniversário.
Quase vinte anos sem registro, dois anos num emaranhado burocrático pra provar que existe, a vergonha de ser confundido com um ladrão de cesta básica, a iminência de virar traficante no morro do Alemão, dezenove dias de antecipação de um nascimento?
– Claro que dá. Determino a retificação no assento de nascimento de Gabriel para que ali passe a constar o nascimento de Gabriel da Silva, filho de Maria da Silva, nascido em Petrópolis no dia 1 de dezembro de 1991.
– Não tem recurso, Gabriel. Leva de uma vez o mandado.
Só com o papel na mão Gabriel finalmente acreditou que eu era juíza.