Direito digital e relações na Internet

7 de abril de 2022

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A tecnologia sempre foi um conjunto de técnicas sui generis, suscitando nas pessoas ora fascínio, ora receio e mesmo pânico. A intervenção da tecnologia na vida humana tem crescido exponencialmente, em especial ao longo dos últimos dez anos e, na mesma toada, surgem a necessidade e o anseio de se regulamentarem as relações entre as pessoas e a Internet. É nesse contexto que nasce o Direito digital.

Vale lembrar que há pouco mais de 20 anos temeu-se o chamado “Bug do Milênio”, pois, na virada de 1999 para 2000, os computadores da época talvez não entendessem a mudança de data e causassem uma pane geral em sistemas e serviços. Isso porque a 99 se seguiria 00, que as máquinas poderiam entender como 1900 ou como 19100, e não como 2000, o que acabou não acontecendo. Isso não impediu que se espalhasse o pânico e fossem gastos cerca de US$ 300 bilhões em todo o mundo em medidas preventivas.

Confirma-se a tradicional máxima de que o Direito deve acompanhar as mudanças sociais. Nesses termos, à medida que os avanços tecnológicos modificam as relações jurídicas, nada mais natural que a criação de regras de comportamento e relacionamento, seja para a Internet ou para a tecnologia como um todo, com o intuito de manter a ordem e fomentar o progresso da sociedade.

Portanto, o Direito digital surge como um novo ramo cujo objetivo é normatizar e regulamentar o uso dos ambientes digitais, além de proteger as informações contidas nesses espaços e em aparelhos eletrônicos.

Ocorre que, apesar da necessidade de se estabelecerem parâmetros para esses ambientes digitais – também chamados ecossistemas, termo mais comum entre os que lidam no ramo – o fato é que a complexidade da matéria e suas interconexões com os mais variados âmbitos da sociedade impõem cautela acima da média, porquanto seja imprevisível o impacto de leis inadequadas.

No intuito de facilitar a compreensão com elementos fáticos, cumpre esclarecer que a regulamentação da Internet foi discutida calorosamente durante a tramitação do Marco Civil da Internet, tendo sido decisivas para sua aprovação e a agilidade na definição dos pontos polêmicos as denúncias do jornalista estadunidense Glenn Greenwald sobre a espionagem da National Security Agency (NSA) contra a Petrobras.

Portanto, há outros casos importantes cuja eventual regulamentação requer cuidado redobrado: a inteligência artificial, a Internet das coisas (IoT), a nanotecnologia, o blockchain – um sistema ponto a ponto distribuído para gerenciamento de posses, constituído de computadores individuais que mantêm sua própria versão de um livro-razão imutável, no qual se armazena o histórico completo dos dados de transação – a realidade virtual e a aumentada e a computação quântica, entre outras.

Daí que um dos pontos a destacar seja a chamada neutralidade tecnológica, ou seja, o não privilégio de determinada técnica em detrimento de outra. Isso deve ser levado em conta na elaboração de novas leis relativas à tecnologia, sendo fundamental o debate com especialistas, pois as leis neutras são longevas, não carecendo de alterações sempre que surjam inovações. Tal é o norte da segurança jurídica e da estabilidade do próprio objeto que se pretende normatizar.

Vale mencionar algumas importantes leis sancionadas ao longo dos últimos 20 anos: Medida Provisória nº 2.200-2/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, criando a possibilidade de as assinaturas deixarem de ser feitas exclusivamente em suporte físico, surgindo a assinatura eletrônica; Lei nº 14.063/2020, que atualiza as disposições sobre as assinaturas eletrônicas criando níveis de confiança e adotando a nomenclatura consagrada em outros países; Lei nº 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, o chamado Marco Civil da Internet; Lei nº 13.709/2018, com redação dada pela Lei nº 13.853/2019, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD); e Lei nº 14.129/2021, que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos do governo digital (Gov.br), entre outras leis, medidas provisórias e provimentos.

Não se pode esquecer a Lei Complementar nº 182, de 1 de junho de 2021, que institui o marco legal de startups e empreendedorismos inovadores, definindo e disciplinando o sandbox regulatório. Trata-se de um ambiente separado e monitorado para testar novas aplicações tecnológicas e verificar se é o caso de utilizá-las comercialmente.

Além disso, mencione-se a discussão sobre a proteção de dados pessoais, cuja importância justificou a aprovação da Emenda Constitucional nº 115 em 2022, que garante a proteção de dados pessoais, inclusive os veiculados em meios digitais, alçando tal garantia à condição de direito fundamental. É de fato uma conquista histórica, pois integra os direitos fundamentais dos cidadãos, assim como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à propriedade e à inviolabilidade da intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

Assim, como mencionado alhures, a atuação de nossos congressistas deve-se ser particularmente cuidadosa na formulação e aprovação de temas relativos à tecnologia. Exemplos práticos disso são a Medida Provisória nº 1.085/2021 (dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – SERP, de que trata o art. 37 da Lei nº 11.977/2009, e faz a necessária correção de rota relativamente às assinaturas eletrônicas) e a Medida Provisória nº 1.104, de 15 de março de 2022 (altera a Lei nº 8.929/1994, que institui a Cédula de Produto Rural, e a Lei nº 13.986/2020, para dispor sobre o Fundo Garantidor Solidário, também readequando o tema das assinaturas eletrônicas).

Por outro lado, cabe uma crítica construtiva: temas como a assinatura eletrônica – e tantos outros de alta complexidade – não devem ser tratados com medidas provisórias (art. 62, caput da Constituição Federal), além de outros motivos, porque, dada sua breve tramitação, alija-se do debate legislativo a sociedade civil e, sobretudo, se menoscaba a oitiva de especialistas.

Diante destes apontamentos, resta indispensável, por exemplo, alertar para que a discussão acerca da inteligência artificial mantenha sua tramitação apenas como projeto de lei, a fim de viabilizá-la efetivamente e prestigiar o trabalho que têm desenvolvido os juristas designados pela presidência do Senado para tratar do tema, na medida em que tramitam na referida casa legislativa os Projetos de Lei nº 5.051/2019, nº 21/2020 e nº 872/2021, que visam estabelecer diretrizes e disciplinar o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no País.

Por fim, há que prestar atenção à questão central do Direito digital, qual seja, a tênue linha divisória entre a necessidade de regulamentar e disciplinar a tecnologia em geral e o excesso de amarras, que poderia impedir a criatividade e a inovação, bem como o estabelecimento de dispositivos que possam, ainda que por vias transversas, comprometer a dinâmica proposta por aquela funcionalidade ou criação. O envolvimento ativo da sociedade é absolutamente necessário.

Notas_______________________________

1 CORDEIRO, C. O que foi o Bug do Milênio? Super Interessante. São Paulo, 4/6/2018. Disponível em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-bug-do-milenio/>. Acesso em: 16/3/2022.

2 DRESCHER, Daniel. “Blockchain básico: uma introdução não técnica em 25 passos”. Trad. Lúcia A. Kinoshita. São Paulo: Novatec, 2018.

3 Art. 2º Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se:
[…]
II – ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.