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Epístola ao corintiano

5 de julho de 1999

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Sob o título “Saulo, por que me persegues?” (Opinião, pág. 1-3, 17/6), o nobre deputado Aloysio Nunes Ferreira, refutando críticas minhas ao seu projeto de reforma do Judiciário, arrastou o debate para a estrada de Damasco, colocando-se na condição de perseguido e quase me cegando com suas luzes. Tatearei por aí em busca de um paciente Ananias, com muito cuidado, pois parlamentar contrariado torna-se um perigo. Virou moda ameaçar-nos com reforma casuística da Carta a cada contrariedade. O presidente do Senado brandiu várias ameaças desse tipo contra o STF e seu atual presidente. É verdade que, por falta de luzes próprias, não o fez em Damasco, mas em Lisboa. Se contra a corte constitucional do país os homens lançam esse tipo de intimidação, um pobre debatedor de assuntos jurídicos, como eu, pode ser varrido da face da Terra, mesmo porque a estrada de Damasco não era asfaltada. Mas como o deputado disse ser todo ouvidos e pediu respostas, tentarei no principal, colaborar, apelando para sua condição de advogado (afeito ao contraditório e não ao bate-boca inútil). Por isso, se não concordar com o que sugiro, rogo-lhe, por especial favor, não eliminar das garantias constitucionais a liberdade de pensamento, o direito de resposta e o direito à informação nem mandar fechar a Folha por dar espaço à crítica. Além do mais, o deputado tem espírito público, é amável, educado e, como eu, corintiano. Vale uma epístola, a última: este espaço não deve ser monopolizado por discussões técnicas, uma chatice para os leitores.

A alegação de que as demandas trabalhistas se arrastam durante anos procede. Todos sabem. E é isso, precisamente o que se deseja corrigir não piorar, mandando os processos se arrastarem em outro lugar sem alterar a lei. A idéia de juizados especiais, como está no projeto, é fantasia. Aqui ninguém trabalha de graça. Criar órgão de conciliação sem competência jurisdicional é brincadeira. Nem no sistema alemão, em que se calcou o modelo, isso funciona.

Perguntem aos curdos turcos.

Quanto à argüição de relevância proposta, nada tem a ver com a preconizada por Victor Nunes Leal, meu saudoso amigo, que tratou da matéria quando o Supremo tinha competência para conhecer da legislação federal, o que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça. E a relevância, no projeto, está designada como repercussão geral, coisa para quem toca tambores e tamborins, incompreensíveis em recursos Judiciais.

Não me convence a explicação de que o incidente de ilegalidade e inconstitucionalidade (tirar processos de juízes e tribunais inferiores para decisões da cúpula judiciária, com ida e volta, porte pago?) não é a ditatorial avocatória só porque, além do procurador-geral da República, mais pessoas podem atentar contra a estabilidade dos julgamentos. Que pessoas? Todas as investidas de poder. Povão, nem pensar.

Quando um instituto é ditatorial, é ditatorial. Se mais de uma pessoa pode usá-lo, isso não o faz democrático. Piora a situação tornando-o um corredor polonês: mais gente bate nas vítimas.

Sobre o Conselho Superior de Justiça, o projeto quase acerta. Claro que o país clama por um controle nacional do judiciário. Seria, com relação a juízes federais, comuns, trabalhistas e militares e respectivos tribunais, um controle externo. Mas a composição do órgão, a meu ver, deve ser exclusiva de magistrados: nada de juristas de fora ou outros corpos estranhos ao poder. Os juízes precisam ser julgados, processados e punidos por seus pares, não por seus ímpares. Como o deputado falou em carta aos coríntios, pergunto: Quem concordaria em pôr palmeirenses no conselho consultivo do Corinthians? Ou corintianos no conselho do Palmeiras? Ou vascaínos no do Flamengo?

Nada de demagogias do tipo “representação da sociedade civil”. Esta já está representada nos parlamentos, que fazem as leis (nem sempre a favor delas).

No sistema Institucional brasileiro, a separação e a independência dos poderes são princípios Fundamentais: não devem ser nem arranhados. Quanto ao outro princípio, a harmonia, está provisoriamente suspenso. Um dia voltará, se os orixás consentirem.

Um dos maiores e mais abomináveis defeitos do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade é permitir que uma inconstitucionalidade, aplicada em sentença, transite em julgado.

Contra as pessoas pobres isso sempre ocorre: para os caros recursos judiciais faltam-lhes, em primeiro lugar, recursos financeiros. Juristas e professores de direito dizem que a inconstitucionalidade é o nada absoluto, lei inconstitucional é nula, nasce morta. Bonito blá, blá, blá. Mas como explicar aos brasileiros mais simples, quando sofrem a aplicação de uma lei declarada inconstitucional pelo STF, que a nulidade produzira efeitos jurídicos contra eles; que, se não recorrerem, transitará em julgado o nada absoluto; e que serão executados por força de uma lei que nasceu morta? Como fazer o povo entender que a garantia constitucional da coisa julgada protege o nada? E por um nada desses, ele pode perder tudo!

Com a súmula vinculante, de efeitos subordinativos, em questões de inconstitucionalidade, essa esdrúxula situação pode ser resolvida, mas não na forma de projeto, que submete a magistratura ao engessamento, à obrigatoriedade dos velhos acentos da Casa da Suplicação. Deve a súmula ser irrecorrível quando aplicada. Até aí chegou a Associação dos Magistrados Brasileiros. O efeito vinculante e subordinativo é contra os agentes do governo (ou jurisdicionados rebeldes), preservada, porém, a liberdade doutrinária dos juízes de contrariá-la em casos concretos; mas, nessa hipótese, exige-se decisão fundamentada, e o magistrado fica obrigado a recorrer de ofício (a AMB esqueceu-se disso), sem prejuízo dos recursos voluntários, que a advocacia há de ser preservada. Tais recursos poderão até servir de razões para alterar a súmula conforme a fundamentação.

Na semana passada, em Belo Horizonte, o ministro Carlos Velloso, presidente do STF, e eu, participamos de um debate de quatro horas sobre a reforma. Lá estavam os presidentes de todos os tribunais de Justiça do Brasil. Uma sugestão mereceu a aprovação geral: o Supremo, como órgão de cúpula do Judiciário, deve convocar uma comissão de operadores de Direito, militantes efetivos, e que conheçam a vida diária da Justiça em todos os setores (juízes, promotores, advogados), e deles solicitar estudos que, em trabalho conjunto, materializem sugestões ao Congresso.

Espero que funcione. Por que não ouvir o Judiciário quando se pretende reformá-lo? Que o Congresso tenha a sabedoria e a prudência de aguardar a colaboração. Mas, pelo amor de Deus, se não gostar da idéia não feche a suprema corte nem casse os direitos dos juízes, promotores e advogados que, convocados, se dispuserem a trabalhar nessa magna matéria. Chega de malvadeza!