Judiciário, tecnologia e prerrogativas da advocacia

5 de outubro de 2021

Presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB

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O Século XXI prenuncia profundas transformações na sociedade. Carros autônomos, drones de passageiros, inteligência artificial, revolução biológica e tantas outras inovações. É a era dos chips e das máquinas inteligentes. Toda essa tecnologia não foi capaz de impedir a peste. O século em curso está indelevelmente marcado pela covid-19, que parou o mundo. Diferente do que dizia o poeta, dele não descemos, ficamos clausurados em nossas casas, enfrentamos a doença, lutamos pela vida.

A Justiça naturalmente fechou e, forçadamente, se reinventou no teletrabalho. Os prédios físicos, os fóruns e os tribunais foram substituídos por Zoom, Meet, Teams, etc. O atendimento aos essenciais à Justiça, como é a advocacia por força do art. 133 da Constituição Federal, começou pelo telefone, e-mail e aportou no balcão e gabinete virtual. As sessões de julgamento dos tribunais e as audiências assumiram-se nas videoconferências. Pelos celulares e computadores assistimos a julgamentos, realizamos sustentações orais, atuamos em audiências, partes e testemunhas prestam depoimentos às autoridades judiciárias. E todas essas alterações, transitórias e precárias, já se anunciam como o “novo normal”.

Essas novidades colocam a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em uma encruzilhada, marcam o início de um novo fluxo, o fim de um território existencial. E daí, toda essa tecnologia é boa ou ruim? O que deve ou não permanecer após a pandemia? O que deve ser aprimorado? Quais caminhos seguir? 

Em 2015, quando da publicação do novo Código de Processo Civil (CPC), vimos contemplado o direito do advogado realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real ao julgamento. Tratou o legislador de acolher um antigo pleito da advocacia de democratização de acesso aos tribunais, sobretudo daquela que defende os menos favorecidos economicamente. À mingua de recursos financeiros, muitos sequer se aproximavam dos tribunais, não exerciam a ampla defesa como assegurado pela Constituição. Ao permitir a sustentação oral à distância, por videoconferência e em tempo real ao julgamento, o novo CPC conferiu acesso aos tribunais a todos que anseiam por justiça. Essa ferramenta, que só foi implementada cinco anos após a publicação da nova legislação processual civil e por força da pandemia, deve permanecer com a retomada da normalidade.

Na esteira das transformações pandêmicas, o Supremo Tribunal Federal (STF) modificou o seu regimento para ampliar o plenário virtual, abarcando nele o julgamento de ações e recursos cuja legislação admite as sustentações orais. No plenário virtual do STF as sustentações orais devem ser gravadas e previamente enviadas, em formato preestabelecido pela Corte, até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.

O modelo de sustentação oral gravada foi matéria debatida no X Encontro Nacional de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, realizado em Recife, nos dias 16 a 18 de setembro de 2021, cuja conclusão foi no sentido de que a imposição de sustentação oral gravada fere o disposto no § 4º, do art. 937, do CPC. A sustentação oral, presencial ou por vídeo, é realizada sempre em tempo real ao julgamento. Portanto, sempre que o advogado assim requerer, o processo deve ser deslocado do plenário virtual para o presencial ou telepresencial. E, para ressaltar esse direito, afastando dúvidas, encaminhamos ao pleno do Conselho Federal da OAB uma proposta de inclusão de um quinto parágrafo no art. 937 do CPC, com o seguinte teor normativo: “Incluídos no plenário virtual o julgamento dos recursos e ações originárias previstos neste artigo, sempre que a parte requerer a sustentação oral em tempo real ao julgamento, o processo será remetido para a sessão presencial ou telepresencial.”

O balcão e o gabinete virtual são boas ferramentas, incrementam e aperfeiçoam a prestação do serviço judiciário. Todavia, em muitas unidades judiciais, tais ferramentas não foram implementadas ou não estão funcionando adequadamente. Sobre o gabinete virtual, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve dedicar especial atenção para que juízes, desembargadores e ministros atendam a advocacia tal como no modelo presencial. Os despachos com magistrados nos prédios físicos (fóruns e tribunais) são realizados sem prévio agendamento e assim deve acontecer nos gabinetes virtuais, por força do art. 7º da Lei nº 8.906/1994.

A Internet expôs o Poder Judiciário pátrio ao mundo. Pelas redes sociais, assistimos e gravamos audiências, sessões de julgamento, atendimentos dos serventuários e magistrados. Infelizmente, as câmeras registram algumas cenas indesejáveis, ofensivas à cidadania, à advocacia e às suas prerrogativas. A multiplicação digital das imagens de ofensa à ampla defesa, ao contraditório e às prerrogativas da advocacia desmoraliza o Poder Judiciário e merece especial atenção de suas corregedorias. As provas dos vícios e dos erros avolumam- se, comportamento inapropriado de juiz em praças litorâneas, conversas pré-processuais e pré-julgamentos explícitos, desrespeito ao direito de defesa do cidadão, descaso com os pares da magistratura, juiz mandado advogado ao inferno – são exemplos gravados, que podem ser acessados facilmente nos sítios de buscas eletrônicas.

Colhemos no citado X Encontro Nacional de Prerrogativas uma recomendação à OAB de abertura imediata e de ofício de representações nos órgãos competentes, quando os áudios e vídeos contiverem ofensas inequívocas à ampla defesa, ao contraditório e às prerrogativas da advocacia. Já vai tarde o tempo de se compreender que é da competência da advocacia pedir em nome de seus constituídos. O advogado é aquele que fala em nome de alguém, que é chamado para estar junto, para socorrer o cidadão perante a Justiça. É direito da advocacia usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas (art. 7º, X, da Lei nº 8.906/1994). Ao juiz compete decidir fundamentadamente os pedidos da advocacia. Como disse a Ministra Carmem Lúcia: o tempo do “cala a boca já morreu”. 

O teletrabalho da magistratura não pode resultar em fechamento de varas e de comarcas. Em um País com déficit de Justiça, fechar os fóruns significa desamparar o cidadão. O amplo acesso à Justiça e o direito ao juiz natural ditam magistrados nos fóruns, próximos dos cidadãos. No plano sociológico, a virtualização dos processos tende a formar um juiz asséptico às causas e necessidades do povo; é um importante e real problema que desafia todos os operadores do Direito na atualidade.

O CNJ aprovou um código processual de audiências telepresenciais, extrapassando suas competências constitucionais. É o Congresso Nacional que legisla sobre matéria processual, aqui incluído o formato das audiências. Juristas já escreveram sobre os problemas jurídicos das audiências telepresenciais, como o fez Eduardo Sanz, em série de artigos publicados na revista eletrônica ConJur. Destaque-se que a legislação processual brasileira é tímida em relação à virtualização das audiências e não contempla a prática de atos telepresenciais de forma ampla como vem ocorrendo.

Defender a aprovação pelo Congresso de leis processuais que regrem os atos e as audiências telepresenciais é essencial para proteções e garantias à higidez e integridade dos depoimentos, para a urgência da edificação de um novo conjunto normativo de prevenção e combate às fraudes processuais virtuais.

Louváveis o trabalho e as inovações do Poder Judiciário, que no curso da pandemia manteve ativa a prestação jurisdicional. Muitas das novidades tecnológicas são avanços prementes, mas comportam ajustes. As sustentações orais gravadas são escolhas das partes e advogados; quando formulado pelo advogado o pedido de sustentação oral em tempo real os julgamentos devem ser realizados em sessões presenciais ou telepresenciais.

O balcão e o gabinete virtual configuram importantes avanços e devem ser implementados em todas as unidades da Justiça brasileira, e a advocacia deve neles ser atendida sem prévio agendamento (art. 7º, VI e VIII da Lei nº 8.906/1994). Flagrantes ofensas à ampla defesa, ao contraditório e às prerrogativas da advocacia registradas em vídeos de audiências ou sessões de julgamento devem ser encaminhadas às corregedorias de ofício pela OAB.

O teletrabalho no pós-pandemia deve ser exceção, varas e comarcas não poderão fechar. As audiências virtuais devem ganhar um regramento legal específico, editado pelo Congresso Nacional, assegurando- se a integridade e higidez dos depoimentos, além de prevenir e combater as fraudes processuais. 

As crises são oportunidades de crescimento. Os caminhos certos nesse tempo de mudança são aqueles em que a tecnologia experimentada pelo Judiciário não reduza os direitos e garantias fundamentais do cidadão e as prerrogativas da advocacia. Na justiça física ou na justiça virtual as prerrogativas da advocacia são as mesmas e não comportam modulações.