Juízes e advogados

11 de setembro de 2012

Compartilhe:

As boas relações entre juízes e advogados são como uma viga mestra do Poder Judiciário, conforme a preciosa e sempre atual lição de Calamandrei de que as atividades de ambos são como vasos comunicantes, não se podendo elevar ou baixar o nível de uma sem idêntico desdobramento sobre a outra.

No Brasil dos tempos modernos, o Judiciário acumulou, quase que por gravidade, a função de poder moderador. Não é, pois, por acaso que sempre que anomalias políticas acontecem, ou se prenunciam , surgem tentativas de limitar, monitorar, ou de alguma forma influenciar a atuação do Judiciário. É fato histórico que nas horas difíceis em que o Judiciário teve seus predicamentos ameaçados, advogados e magistrados deram-se os braços. O maior exemplo de quanto, historicamente, essa atuação conjunta foi exitosa é o retorno à democracia plena, quando menos no campo formal, consubstanciada na Constituição de 1988, que muito se deve ao papel exercido por advogados e juízes, irmanados na luta pela restauração das garantias e franquias democráticas no País.

Seria tapar o sol com a peneira não reconhecer que, nos dias de hoje, essas relações estão um tanto esgarçadas. A crise no ensino do Direito, consequência da anárquica massificação das últimas décadas, a ampla mobilidade social por que estamos passando e inúmeros outros fatores estão no vértice do problema, e não serão resolvidos a curto prazo. Mesmo porque há fatores políticos e de ordem pública que estão fora do alcance de magistrados e advogados. Mas algo deve ser feito, e a responsabilidade de fazê-lo recai sobre os ombros dos profissionais mais experimentados de ambos os setores.

Como ponto de partida, algumas premissas devem ser enfatizadas: i – magistrados e advogados devem se respeitar mutuamente; ii – magistrados e advogados devem reconhecer que não existirá Poder Judiciário socialmente eficaz sem a comunhão de esforços de ambos; iii – magistrados e advogados devem ter um indelével comprometimento com o aprimoramento da Justiça; iv – magistrados e advogados exercem funções essencialmente diferentes, mas absolutamente complementares, e cada qual tem que saber conviver com essa diferença que, na verdade, representa uma frutuosa dialética quando alicerçada pelo reconhecimento das próprias e recíprocas limitações.

Por óbvio, em cada segmento existem bons e maus profissionais. Os maus não servem de paradigma e devem ser levados a mudar de conduta ou, se necessário, ser afastados de suas atividades, sempre por seus pares, sob pena de contaminar suas respectivas atividades. Os bons profissionais do Direito, face ao compromisso que juraram ao escolher suas profissões, dele não podem se afastar. E, mais, em nome de seu juramento devem laborar para que as premissas sejam permanentemente fortalecidas.

Comecemos, então, fazendo nossa autocrítica: magis­trados e advogados não podem aceitar e, muito menos compactuar, com o irregular, o extravagante e o excessivo. Ao proteger, ou mesmo ignorar, quem assim procede, estará praticando um inaceitável corporativismo. Na verdade, levando a efeito verdadeira autofagia. Não há que se ter receio, pois, de se insurgir contra os maus profissionais, pois essa é uma atitude de legítima defesa de nossas instituições e de suas mais assentadas raízes democráticas e republicanas. É nosso dever fazê-lo, pois desde os tempos bíblicos a maçã podre pode contaminar as boas. E o contrário, até por razões químicas, nunca acontece.

Continuemos, pelo respeito de uns pelos outros e pelo reconhecimento das diferenças. O juiz ao exercitar sua vocação faz uma escolha pelo servir ao seu semelhante. Em contrapartida, deve receber a remuneração justa, compatível com a função que exerce na sociedade como um profissional de enorme responsabilidade jurídica e social, e, como tal, ter para si e sua família o conforto merecido, descabendo a argumentação demagógica frequentemente utilizada de compará-lo com iniciantes ou jejunos em direito, face à sua notória capacitação testada em árduos concursos públicos. Muito menos, com profissionais ou servidores públicos de outras áreas, que não tenham idêntica responsabilidade constitucional e legal, ou, ainda, isentos do ônus da dedicação exclusiva. A única exceção permitida ao magistrado é o magistério superior que, em geral, remunera com acintosa parcimônia e por não ser de interesse imediato da magistratura, mas sim uma forma de suprir notória carência de quadros na atividade docente, ainda mais em um país de dimensões continentais como o nosso. Enfim, a remuneração deve propiciar ao magistrado uma vida segura e estável que lhe permita total independência no exercício de seu mister.

Já o advogado, como profissional liberal autônomo, ou mesmo como empregado, exerce uma atividade de risco. O compromisso com a ética e os bons princípios deverá estar sempre presente como primado inafastável para juízes e advogados. Exercendo atividade de risco, ao advogado, embora tal se constitua exceção à regra geral, é possível atingir patamares remuneratórios mais elevados do que aqueles dos juízes. No entanto, na maioria das vezes, o advogado passa por dificuldades imensas, tanto financeiras quanto para o bom exercício da profissão. Nem magistrados, nem advogados podem ignorar essas peculiaridades e comparar situações que não são comparáveis. Alguns magistrados, por vezes, se sensibilizam negativamente quando advogados recebem remunerações substanciais, em especial as verbas sucumbenciais, mas deixam de levar em consideração que a parte oponente, apesar de todo engenho e arte que empreendeu, recebeu quase nada ou, muitas vezes, literalmente nada. E mais, a verba remuneratória diz respeito a muitos anos de trabalho intenso e, como usual, é dividida entre os vários profissionais que atuaram na questão. Esta é a álea inerente à advocacia que não está presente no exercício da magistratura.

O respeito de parte a parte é a chave mestra.  Da parte do advogado, saber que sua questão, por mais importante que lhe pareça, não é a única sob responsabilidade do magistrado. Saber que a urgência de seu cliente, por si só, não tem o condão de alterar as prioridades gerais. Saber que o magistrado precisa bem entender suas postulações, que, para tal, devem ser claras, diretas e objetivas. Saber que, ao fim e ao cabo, o que lhe compete é demonstrar qual é o melhor direito aplicável aos fatos em discussão e que o magistrado exercerá seu livre convencimento sobre o que lhe foi apresentado. Não gostou do entendimento do juiz? Interponha o recurso cabível, e exponha, de novo, sua argumentação. O duplo grau de jurisdição, insculpido na Constituição Federal, é um dos pilares da democracia.

Da parte do magistrado, aplicar a si todas as regras que deseja sejam obedecidas pelos advogados, tais como ser pontual, estar disponível no seu local de trabalho, assumir o comando da execução dos procedimentos atribuídos àqueles que com ele trabalham, seja na sua assessoria, nas secretarias, ou nos cartórios. Nunca perder a noção de que os advogados representam clientes, partes que veem a Justiça exclusivamente pelo ângulo do que acontece naquele seu processo específico. E, principalmente, não ter receio de receber e ouvir as ponderações dos advogados. Ouvir os advogados oponentes, juntos ou separadamente, muito ao invés de lhes dificultar o trabalho, vai ajudá-lo a melhor entender a questão. Um antigo magistrado conhecido e respeitado, além de seu sólido conhecimento jurídico e humanístico, pela lhaneza uniforme de trato a colegas, advogados, membros do Ministério Público e, principalmente, serventuários diz que de tanto receber advogados, face a face, aprendera que lhe era possível melhor avaliar quem estava representando o bom direito. Reconhece, enfim, que o contato pessoal muito o ajudou em sua carreira.

Não podem ser esquecidos, nessa ressonância quase magnética das paixões forenses, o Ministério Público (advogado da sociedade no painel de 1988), a Defensoria Pública (advogada dos que, em grande contingente humano, se apresentam como hipossuficientes econômicos), as Procuradorias dos diversos entes públicos (vale dizer, os advogados da União, dos Estados e dos Municípios) e os serventuários judiciais (que têm sobre seus ombros a tarefa de carregar a pedra de Sísifo colina acima, sempre em número diminuto para o geométrico crescimento da demanda judicial), cada qual com seu papel inconfundível nesse panorama da cena judiciária.

Enfim, sem nenhum desdouro aos demais perso­nagens do mundo jurídico, e numa linguagem quase crua, o futuro da Justiça no nosso país depende, em dimensão substancial, do comportamento e do exemplo de magistrados e advogados. Somos parceiros numa empreitada que as circunstâncias dos dias atuais nos apresentaram: o Poder Judiciário é o portão de entrada para o país mais justo, seguro e forte que desejamos para nossos filhos e netos. E o encargo está em nossas mãos, juízes e advogados, protagonistas na luta para a efetividade dos direitos fundamentais e das garantias outorgadas pela Carta da República. Em suma, justiça e democracia são irmãs gêmeas, e, como na velha parábola, juízes e advogados não estão apenas colocando tijolo sobre tijolo. Estão, juntos, construindo uma catedral.

Notas______________________

1 Comissão Mista de Comunicação Institucional do TJERJ