Notas sobre a reforma tributária e a saúde suplementar

18 de junho de 2021

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Um dos grandes desafios humanos é entender os movimentos cíclicos inerentes à vida. Aliás, a própria vida, em essência, é um ciclo que culmina na morte física, de modo que a concepção é a de que tudo se inicia, passa por etapas, até que encontre um momento em que tudo cessa, encerra.

Tal reflexão é naturalmente vívida quando pensamos em reforma tributária, cuja necessidade, em menor ou maior grau, vem sendo demandada há décadas. A discussão do tema foi objeto de diversos projetos legislativos, que sempre levaram ao mesmo desfecho: insucesso. Como se o ciclo da reforma tributária no Brasil fosse o inverso do ciclo da vida. Como se a reforma tributária fosse, sempre, natimorta.

As idiossincrasias do Brasil bem explicam esse estado de coisas. A começar pela constante tensão político-financeira entre os entes, de modo que uma das principais patologias é, sem dúvidas, a crise no federalismo fiscal, realidade extremamente agravada pelo deslocamento das contribuições sociais para o protagonismo arrecadatório, em plena violação ao sistema pensado pelo legislador originário no qual os impostos teriam destaque natural, até pela – em tese – justa distribuição de arrecadação entre os entes.

Por outro lado, também de origem financeira, outra patologia tida como necessária, mas cruel para a paz social em âmbito federativo, é a vinculação do orçamento, vinculação essa que acaba por tornar impostos – cuja essência é de desvinculação plena – para espécie tributária quase que integralmente vinculada. Enquanto isso, receitas essencialmente vinculadas, como a das contribuições, acabam por se desvincular via ferramental pouco republicano, porém necessário, tais como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e o próprio contingenciamento orçamentário, mesmo que, quase sempre, acabem – em mais um ciclo nocivo – desaguando na Previdência.

Logo, quando falamos em reforma tributária, necessariamente temos que falar em reforma orçamentária (financeira).

E há mais.

Como recentemente indicamos em breve artigo, há em curso, concomitantemente, propostas de reforma tributária em âmbito interno e em âmbito internacional, esta especialmente necessária pelo desenvolvimento aceleradíssimo da economia digital, como se infere das propostas apresentadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Ocorre que as propostas atualmente em curso no Congresso Nacional ignoram solenemente o debate internacional, trazendo o risco imediato de, caso aprovada uma reforma tributária – cenário que se agrava a depender de sua amplitude – esta já nasça incompatível com os pilares internacionais que estão sendo delineados. E não estamos aqui a defender uma reforma que se baseie em meras ideias em debate no exterior, mas a reforma que contemple uma economia globalizada e que, há muito, relegou ao passado o controle alfandegário-fronteiriço como mecanismo de controle econômico-fiscal. Em matéria de saúde, a telemedicina é a prova viva disso.

Feitas essas considerações preliminares, adentremos, objetivamente, nas propostas hoje em debate e no seu reflexo ao sistema de saúde suplementar. Estamos a nos referir às Propostas de Emenda Constitucional (PECs) nº 45 e nº 110, bem como ao Projeto de Lei nº 3.887/2020. Tais projetos acabaram sendo tratados de forma unificada por Comissão Mista formada especificamente para a reforma tributária. E a conclusão, apresentada recentemente, na forma de substitutivo, indicou a unificação de diversos tributos hoje existentes, tais como o PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, sob a nova roupagem do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Na apresentação do texto original de cada uma das propostas, ficou claro que o setor de serviços sofreria gravíssima majoração da carga tributária, conforme demonstrado por estudos, tais como o realizado pelo SindHosp e pela Consultoria LCA, a pedido da Confederação Nacional de Saúde, que indicaram aumento em torno de 7% para os usuários de planos de saúde, proporcional ao aumento da carga tributária do setor de serviços.

Visando corrigir tal temor, o substitutivo publicado destacou a possibilidade de estipular exceções à alíquota padrão, com a previsão de rol de operações que poderiam ser objeto de desonerações, incluindo-se, dentre eles, ¨a cadeia produtiva de saúde¨. Tal previsão foi a defendida por representantes do setor em audiência pública realizada em 2 de setembro de 2020, ocasião em que fora demonstrado que o aumento na carga tributária, caso adotada alíquota única, seria de 171% na alíquota efetiva aplicada ao setor.

Nesse sentido, bem destacou o próprio relatório da Comissão Mista quando citou relatório da OCDE sobre desonerações aplicáveis à maioria dos países componentes do bloco, bem como da necessidade – de modo a restringir a atuação do legislador infraconstitucional para dispor sobre os setores que podem ser objeto de tal regime especial – de constar exatamente quais os que seriam contemplados. Vejamos:

“Internacionalmente, destacamos a inexistência de sistema que tribute de forma absolutamente idêntica todas as operações de consumo. Em relatório da OCDE há inclusive menção às ‘common exemptions’, referindo-se a isenções geralmente aplicáveis à maioria dos países pertencentes ao grupo, que dizem respeito a: serviços postais, serviços de saúde, trabalho voluntário, educação, atividades não comerciais em organizações sem fins lucrativos, serviços relacionados ao esporte, serviços culturais (exceto transmissoras de rádio e televisão), seguros e resseguros, locação de bens imóveis, serviços financeiros, apostas e loterias, terrenos e edifícios, e determinados eventos de arrecadação de fundos.

Naturalmente que, instituindo nosso imposto sobre valor agregado décadas após o deles, é esperado que não cometamos os mesmos erros. É absoluto consenso que a instituição de exceção à regra geral de tributação tende a se perpetuar diante da mobilização de grupos interessados na frustração de sua revogação.

Dessa forma, estamos comprometidos a retirar a liberalidade do legislador infraconstitucional em determinar quais setores econômicos serão destinatários de tratamentos diferenciados, bem como flexibilizar a padronização trazida pelo IBS tão somente aos casos em que entendamos estritamente necessários.” (grifo nosso)

E, mais adiante no relatório, ainda emendou: Em segundo lugar, tendo em vista que a Constituição Federal elevou a saúde a direito fundamental de todos e dever primordial do Estado, temos por importante incluir os serviços de saúde nas exceções ao regramento ordinário do imposto.

Parece-nos ter andado bem a Comissão Mista no sentido de salvaguardar a cadeia de saúde das regras gerais aplicáveis aos demais setores, tendo em vista não só a necessidade de sua preservação em virtude da essencialidade constitucional, mas também para assegurar a proteção dos consumidores de serviços de saúde de impactos que acabariam por levá-los ao já combalido sistema público de saúde.

No entanto, um alerta precisa ser feito: ainda que salutar, a previsão de exceção é insuficiente. Fundamental será que os entes federativos, quando da fixação das alíquotas incidentes, mais do que contarem com a possibilidade, a tornem efetivas, de sorte a materializar carga tributária compatível com a atualmente suportada, garantindo que a reforma não se torne uma tentativa – a se somar a tantas outras – de mero aumento de carga tributária, ao invés de ser um mecanismo de modernização do sistema, melhora do ambiente de negócios e concretização da justiça tributária.

Mas, como o ciclo da reforma tributária brasileira é ao avesso, a Comissão Mista, ao apagar das luzes dos seus trabalhos, foi extinta pelo presidente da Câmara dos Deputados, de modo que o relatório final, no momento que ganhou vida, já a perdeu. Teremos, então, novos capítulos dessa história sem fim. Ou melhor, que se inicia sempre pelo fim.

Notas________________________

1 No Portal Jota: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abdf/economia-digital-reforma-tributaria-otimo-se-tornou-inimigo-do-bom-09112020

2https://www.oecd.org/tax/beps/tax-challenges-arising-from-digitalisation-report-on-pillar-two-blueprint-abb4c3d1-en.htm

3https://fehoesp360.org.br/gerenciador/upl/editorHTML/uploadDireto/apresentacao-re-editorHTML-00000006-30092020172821.pdf

4http://cnsaude.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Position-CNSaude-Reforma-Tributária-PL-2020-08-05_compressed.pdf

5https://www.oecd-ilibrary.org/taxation/consumption-tax-trends-2020_152def2d-en