O desafio da concretização da Emenda Constitucional 80/2014 e o princípio da fraternidade

2 de junho de 2019

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Em 4 de junho de 2014, após aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) na Câmara dos Deputados (nº 247/2013) e no Senado Federal (nº 04/2014), conhecida como “PEC Defensoria Para Todos”, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 80/2014. A Emenda trouxe relevantes alterações ao texto constitucional, precisamente no que tange à instituição consagrada no atual Estado de Democrático de Direito, e fixou prazo de oito anos para o Brasil contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais. Contudo, desde então o avanço em sua concretização não se mostra condizente com as necessidades dos brasileiros, nem sinaliza que teremos o seu efetivo cumprimento até 2022.

Para entendermos a importância da EC 80/2014, devemos entender o pacto que a sociedade brasileira fez na Constituição da República de 1988. O preâmbulo da Carta Magna já preconiza esse novo acordo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Nesse sentido, o constitucionalismo moderno pátrio ultrapassa o liberalismo (constitucionalismo liberal/ dimensão política) e a social democracia (constitucionalismo social/ dimensão social), enveredando pelo chamado constitucionalismo fraternal (ou altruístico). Resgata-se, pois, o Direito Natural, com raiz no humanismo cristão, segundo Nalini, e como “virtude da cidadania, que supera as fronteiras da pátria ou da nação (cidadania interna), em uma perspectiva universal da pessoa humana (cidadania global)”, segundo o Professor Carlos Augusto Alcântara Machado.

Aqui, importante destacar que o Ministro Carlos Ayres Britto pondera que o constitucionalismo fraternal é sua terceira e última fase. É o constitucionalismo do futuro. Depois de assumir feição liberal ou libertária, passando à função social ou igualitária, agora chega à terceira fase, a fraternidade, para ombrear todas as pessoas em termos de respeito, referência e consideração. Confira-se:

“(…) Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chegando nos dias presentes à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto,  da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do desenvolvimento, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, da democracia e até de certos aspectos de urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer uma comunhão de vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não tem como escapar da mesma sorte ou destino histórico.”

Ressalte-se que uma sociedade fraterna não se limita a ações distributivas (plano econômico). Trata-se de sociedade sem preconceitos e pluralista, que busca a integração comunitária verdadeira, tendo o ser humano como ator principal. Assim, precisamos de um Sistema de Justiça eficiente e célere, que acompanhe as transformações sociais e, ao mesmo tempo, garanta os direitos humanos fundamentais, propiciando sempre a abertura para uma sociedade fraterna.

Efetivamente, a Carta Política de 1988 consagrou a fraternidade como categoria jurídica. Logo, cabe aos operadores do Direito e aos construtores de políticas públicas lhe dar aplicabilidade e eficácia, tornando-a força viva e não objeto de decoração ou de mera promessa. Sob esse enfoque, inúmeros são os exemplos do constitucionalismo fraternal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Para que ocorra essa mudança de paradigma, importante lembrar as palavras de Chiara Lubich, doutrinadora da Igreja Cristã e fundadora do Movimento dos Focolares:

“Os obstáculos para a harmonia da convivência humana não são apenas de ordem jurídica, ou seja, devido à falta de leis que regulem esse convívio; dependem de atitudes mais profundas, morais, espirituais, do valor que damos à pessoa humana, de como consideramos o outro”.

Portanto, o horizonte da fraternidade é o que mais se ajusta com a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais. A certeza de que o titular desses direitos é qualquer pessoa, só por ser pessoa, deve sempre influenciar a interpretação das normas e a ação dos atores do Direito e do Sistema de Justiça. Logo, ainda que as normas jurídicas não possam impor a fraternidade, pode a atuação dos operadores do Direito testemunhá-la.

Embora se perceba o avanço do constitucionalismo moderno rumo à efetivação do princípio da fraternidade, Antonio Baggio assevera sobre a existência de uma crise existencial do Estado, o que significa o desaparecimento de sujeitos políticos e civis capazes de assumir as responsabilidades da democracia e das suas instituições, sendo que esta ausência é verificável nos planos procedimental e substancial. Ainda segundo o professor italiano, essa crise manifesta-se como rejeição dos valores da política atual, inatingibilidade dos fundamentos morais necessários ao próprio Estado e da insignificância de valores, com a perda de importância da ética pública.

Dessa forma, sem a perspectiva do princípio da fraternidade e o reconhecimento dessa crise pela qual passa a sociedade brasileira, além da legitimação da importância da Defensoria Pública na pacificação social e como instrumento indispensável ao avanço que se inicia, a concretização da EC/80 não acontecerá no prazo estipulado, infelizmente.