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O futuro da Previdência diante das reformas

5 de abril de 2021

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Há um princípio da ordem econômica que compromete a Constituição Federal. Trata-se de compromisso entre a comunidade e o Estado, cujo teor é o seguinte: cumpre reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Hoje, ao dirigirmos nosso olhar para a Previdência Social brasileira, surgiria de pronto a seguinte pergunta: esse sistema de previdência inaugurado pela Lei Eloy Chaves, de 1923, reduz as desigualdades sociais ou as mantêm?

Para discutirmos futuras reformas da Previdência, é de se dar cabal resposta a esse questionamento essencial.

Veja-se o que ocorre com o auxílio emergencial lançado diante da eclosão da pandemia. Essa prestação assistencial promoveu, provisoriamente, inclusão social da ordem de 65 milhões de pessoas.

É de se indagar a respeito do natural desdobramento de tal medida, representado pelo cadastramento dessas pessoas no Cadastro de Assistência Social, para ensejar o planejamento dos futuros programas e das ações para redução das desigualdades.

Respeitado o valor, em si mesmo considerado, do que foi vertido em favor dos desamparados, cumpre concretizar consistente política de inclusão social. Eis o que exigem as diretrizes da redução das desigualdades sociais e da universalidade da cobertura e do atendimento, princípio fundamental da seguridade social.

O que as reformas intentaram fazer e não conseguiram? Reduzir as assimetrias entre os vários regimes de Previdência, objetivo essencialmente equitativo. Sem redução das assimetrias entre regimes tão díspares será impossível a meta constitucional da redução das desigualdades sociais.

Atualmente, o regime geral – responsável pela proteção social da maior parte da população – concede um benefício médio, apurado mensalmente, da ordem de R$ 1.500,00. Essa quantia é o montante das aposentadorias, pensões e auxílios que milhões de pessoas percebem. Logo, aqueles que são desiguais assim permanecem.

Eis a grave questão a ser enfrentada daqui por diante quando se cogitar de futuras reformas. Porque aquelas que já foram concretizadas até agora não reduziram as desigualdades, ao contrário, aprofundaram ainda mais o abismo entre os que se situam no ápice da escala de proteção social e a imensa maioria que percebe aquele valor modesto.

É da maior relevância o tema do financia­mento do sistema, no seu todo considerado.

Essa vertente da apreciação do problema tem como diretriz básica o comando estampado no art. 195, § 5º da Constituição Federal, que diz: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. É a regra da contrapartida. Portanto, para que se cogite de futuras reformas a primeira providência consiste em apurar quanto entra (fontes de custeio) e quanto sai (benefícios e serviços). Daí será possível verificar, exemplificativamente, quanto seria necessário adentrar a mais a fim de que o auxílio emergencial, episódico, se transformasse na perene garantia do mínimo existencial para todos os brasileiros. Esta sim, seria verdadeira reforma, em linha com a redução das desigualdades.

A projeção do custo permitiria que se identificassem as possíveis fontes de financiamento desse programa de inclusão social.

E, aqui, nos deparamos com outra questão intrigante.

É que há manifesta dissociação entre as reformas previdenciárias que ocorreram até agora e a nunca concluída reforma tributária. Basta que se examinem as duas propostas de emenda constitucional de reforma tributária que já se encontram na pauta de discussão do Poder Legislativo. Neles se constata a ausência de quaisquer projeções atuariais que deem verdadeiro suporte às necessidades financeiras da seguridade social. Logo, é imperativo que se associem esses dois elementos na pauta de discussão.

A fórmula de arrecadação está (ou deve estar) baseada em cálculos atuariais. Isto é, cada contribuição social representa o montante necessário e suficiente ao custeio de determinadas prestações. Se o cálculo atuarial prevê a entrada de 100, não pode ingressar nenhum centavo a menos do que esse montante. Qualquer que seja a deficiência da entrada haverá insuficiente base financeira. Se entrar 50, ao invés dos 100, fatalmente faltarão os outros 50 para a cabal cobertura das prestações previstas nos planos de proteção. Esta é a lógica atuarial a que a Constituição por duas vezes faz expressa referência, nos artigos 40 e 201, ao exigir a observância do equilíbrio financeiro e atuarial. Cumpre sublinhar, com duplo sublinhado: sem observância estrita da regra da contrapartida não se chega ao ideário da seguridade social.

Lembremo-nos da Súmula Vinculante nº 8, que fez ruir a expectativa de expressiva arrecadação ao equiparar pura e simplesmente os prazos decadenciais e prescricionais das contribuições sociais aos dos tributos em geral. E a perspectiva atuarial considerava que tal prazo, tratado em separado pela legislação social deveria se dar de modo bastante mais alongado.

Força reconhecer que o Estado brasileiro se vale das costas largas da seguridade social para beneficiar determinados setores, mediante o conhecido mecanismo das desonerações fiscais. Tais medidas nunca foram acompanhadas do demonstrativo financeiro e atuarial de redução dos ingressos, mesmo quando o mesmo Estado lançava a atoarda do déficit do sistema.

Ressalte-se que a pandemia revelou que o Brasil não sobreviveria sem poder contar com o notável legado da Constituição Cidadã: o Sistema Único de Saúde (SUS), sempre desprestigiado e negativamente criticado. Pois é esse sistema que está a dar notável e impressionante suporte indispensável ao povo sofredor dos efeitos trágicos da covid-19. Mas quanto falta de dinheiro para o SUS? Quanto falta para o modelo de financiamento para o SUS, que fica sempre à margem das discussões sobre receita.

Outro aspecto é o assistencial. É necessária e imprescindível a inclusão social. A inclusão social não é programa de governo, é programa da Constituição de outubro de 1988. Promover o bem de todos, erradicar a pobreza e a marginalização é o que pretende a Constituição. A seguridade social é parte integrante desse compromisso formalizado pelo constituinte que, que nos termos do art. 193 da Lei Suprema estipula que a Ordem Social deve ter como fim o bem-estar e a justiça social.

Importa compreender que o modelo de seguridade engendrado por Beveridge em prol do seguro social e dos serviços afins, lançado em 1942, deveria ser acompanhado necessariamente por outro programa com ele conexo, lançado logo em seguida pelo mesmo pensador.

Trata-se do célebre: Pleno emprego em uma sociedade livre.

Para o futuro do bem-estar social importa investir na criação de postos de trabalho, consoante a Constituição também ordenou: a busca do pleno emprego.

Eis o comando lógico de sustentabilidade das finanças de seguridade social. Sem expansão do emprego, nos termos do modelo beveridgiano, o sistema de proteção social funcionaria como espécie de mecanismo defeituoso.

Os alarmantes indicadores do desemprego, aos quais há de se somar necessariamente a precária estatística dos que nunca tiveram no mercado formal de trabalho exigem reflexão e abertura de pautas de discussão sobre o modelo de desenvolvimento adotado aqui.

Não se afirma, naturalmente, que inexistam outras fontes de financiamento. Ocorre que o modelo de William Beveridge associa pleno emprego com plena proteção social, posto que o desenvolvimento, quando provocado pela produção e pelo emprego, atinge o homem todo e todos os homens.

Aliás, desde a promulgação da Constituição, parece evidente que o compromisso da seguridade social é compromisso de transição que caminha para o atendimento integral e para a universalidade do atendimento.

No momento atual, em plena pandemia, vislumbrar o futuro pode restar comprometido.

Mas a meta de longo prazo consiste na redução do risco de doença, e não se pode dizer que o SUS não cumpriu da maneira mais eficiente possível esse objetivo.

A meta da Previdência continuou, segue e continua sendo a da implantação de modelo desigual no qual são mantidas as desigualdades constatadas no mundo do trabalho. Portanto, as reformas só podem caminhar para a redução das desigualdades.

E a meta da assistência ainda se apresenta como desafio a ser enfrentado. Ela exige, de pronto, a proteção pelo mínimo existencial, mediante a outorga de benefício permanente apto a garantir as necessidades básicas tão bem sumariadas no art. 6º da Constituição: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.