O sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil como vetor de proteção da segurança jurídica

6 de maio de 2019

Marcus Vinicius Furtado Coêlho Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB / Membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania

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Influenciado pelo fenômeno da constitucionalização do Direito, o novo Código de Processo Civil (CPC/Lei no 13.105/2015) modernizou institutos processuais para ampliar o acesso à Justiça, privilegiar as decisões de mérito – com a efetiva solução do conflito – e garantir a celeridade processual sem descuidar de princípios como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

Nesse contexto de inovações encontra-se a criação de um sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Inserido em uma tendência global de aproximação entre os modelos da civil law e da common law, o novo Código ampliou significativamente a observância dos juízes e tribunais brasileiros aos precedentes e enunciados de força vinculante.

Estabelecendo expressamente o objetivo de que os tribunais mantenham sua jurisprudência estável, íntegra e coerente, as alterações promovidas apontam, certamente, para a valorização do princípio da segurança jurídica, indispensável ao desenvolvimento social, político e econômico da sociedade.

A ampliação do sistema de precedentes instituída pelo novo CPC

Entre as modificações mais recentes e relevantes no Brasil rumo à implantação de um sistema de precedentes estão as inovações trazidas pelo novo CPC. O novel diploma buscou resguardar valores caros à sociedade e ao acesso à Justiça, quais sejam a eficiência, a isonomia e a segurança jurídica.

Chama-se atenção para a previsão instituída pelos artigos 926 e 927 do Código. O art. 926 estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. O preceito também dispõe quanto à edição, pelos tribunais, de súmulas correspondentes a sua jurisprudência dominante.

Ao comentar o dispositivo, Guilherme Amaral pontua que trata-se de verdadeiro imperativo da segurança jurídica, que por sua vez pressupõe, para sua realização, dentre outros fatores, a continuidade da ordem jurídica, a clareza dos textos e o conhecimento das regras jurídicas. Não apenas a lei, mas também a jurisprudência deve ser clara e previsível, sendo ameaçadoras da segurança jurídica as decisões exóticas ou surpreendentes1.

É necessário que haja razoável previsibilidade quanto ao resultado da demanda judicial, sem causar estranheza no meio social em que a decisão é proferida, sob pena de se deslegitimar o próprio Poder Judiciário perante os jurisdicionados.

Ademais disso, a questão ultrapassa a esfera do processo e do Poder Judiciário, uma vez que tem sido cada vez mais compreendida como pressuposto de desenvolvimento social e econômico de um país. Assim, “sociólogos como Raymond Aron, instituições internacionais, como o Banco Mundial, e economistas vinculados ao nosso BNDES, como era o professor Armando Castelar Pinheiro, convergem em suas opiniões quanto à necessidade de considerar a estabilidade e a segurança jurídica como pressuposto do desenvolvimento”2.

A estabilidade e integridade da jurisprudência, além de proporcionar segurança ao cidadão que procura a resposta de um conflito social no Judiciário, proporciona, ainda, solidez quanto aos investimentos econômicos, empregabilidade, custos das operações financeiras, resultando, ainda, em maior desenvolvimento econômico e social.

Merece relevo, também, o art. 927 do CPC e seus parágrafos. O dispositivo estabeleceu que devem ser observados pelos juízes e tribunais: (i) as súmulas vinculantes, (ii) as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sede de controle concentrado da constitucionalidade, (iii) os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, (iv) os julgados dos tribunais proferidos em incidente de resolução de demanda repetitiva e (v) em incidente de assunção de competência, (vi) os enunciados da súmula simples da jurisprudência do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e (vii) as orientações firmadas pelo plenário ou pelos órgãos especiais das cortes de segundo grau.

Conforme se observa, o referido dispositivo ampliou, substancialmente, o rol de decisões que passam a ser dotadas de caráter vinculante no ordenamento jurídico. Além das decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade e das súmulas vinculantes, o novo CPC ampliou o efeito vinculativo para dois institutos criados pelo próprio diploma, quais sejam o incidente de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência.

O primeiro corresponde a procedimento especial para julgamento de caso repetitivo que pode ser instaurado em segundo grau de jurisdição. Já o segundo, consiste em julgamento de relevante questão de Direito, com grande repercussão social, que não se repita em diferentes processos, seja apreciado por órgão específico, indicado pelo regimento interno do tribunal. Em ambos os casos, as decisões proferidas em segundo grau produzirão efeitos vinculantes3.

Por fim, o Código Processual imprimiu efeitos vinculativos aos enunciados da súmula simples da jurisprudência do STF e do STJ e às orientações firmadas pelo plenário ou pelos órgãos especiais das cortes de segundo grau.

Isso significa dizer que a inobservância de quaisquer dos enunciados ou precedentes listados no art. 927 do CPC dá ensejo ao ajuizamento de reclamação dirigida diretamente ao tribunal cujo entendimento foi violado. É o que se estabeleceu no art. 988, II a IV do CPC4, sem prejuízo do eventual recurso cabível contra a decisão.

Além disso, garante também a força vinculante dos enunciados e precedentes, o art. 489, §1o, IV do CPC, segundo o qual não se considera fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Assim, seja para aplicar, seja para afastar enunciado ou precedente judicial, o julgador deverá observar o dever de fundamentação, demonstrando os elementos do caso concreto que invocam a aplicação da súmula ou precedente ou que se distinguem deles, repelindo sua aplicação.

O sistema de precedentes do novo CPC e os reflexos na garantia da segurança jurídica

A adoção, pelo novo CPC, de um sistema de precedentes mais robusto imprime reflexos de substancial importância no que tange à garantia da segurança jurídica e da estabilidade e integridade das decisões judiciais. Nesse sentido, o novo diploma concedeu ampliado valor à estabilidade dos precedentes, prevendo que, em caso de alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos, poderão ser realizadas audiências públicas e facultada a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

Ora, a frequente e irrefletida modificação da jurisprudência dominante provoca impactos muitas vezes não previstos pelos tribunais. Assim, de extrema relevância a possibilidade de participação de interessados, na forma de amicus curiae, para contribuir com o processo de deliberação quanto à atualização e modificação do entendimento predominante dos tribunais.

Ademais disso, o Código de Processo Civil estabeleceu a possibilidade de modulação dos efeitos na hipótese de alteração da jurisprudência dominante, com vistas a resguardar o interesse social e a segurança jurídica. Essa previsão, aliás, foi estendida para decisões administrativas e controladoras, a partir da recente modificação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, promovida em 2018. O art. 23, acrescido à lei, estabeleceu que no caso de “interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá ser previsto regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

Bem assim, o CPC/2015 frisou o dever de fundamentação “adequada e específica” nos casos de alteração do entendimento predominante, “considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia5”.

Por fim, estabeleceu a necessidade de que os tribunais confiram publicidade aos seus precedentes “organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores” (art. 927, §4o).

Todas essas previsões instituídas pelo novo diploma vão ao encontro da proteção da segurança jurídica e dos valores que lhe são inerentes, tais como a previsibilidade das decisões, a estabilidade das situações jurídicas e a confiança legítima. Tal é a importância da segurança jurídica que Rafael Valim6 a classifica como um sobredireito, vez que se presta a coordenar outras normas jurídicas – formal e temporalmente – visando a previsibilidade que se espera da atuação estatal.

A segurança jurídica é elemento essencial do Estado Democrático de Direito, já que, como leciona Canotilho, o princípio remete “à durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas7”, pelo que é indispensável ao cumprimento das finalidades do Estado, que deve não somente garantir direitos, mas garanti-los com estabilidade, durabilidade e segurança.

Os princípios da isonomia e da eficiência são, da mesma forma, privilegiados com as inovações promovidas pelo diploma. Com o Código atual, consolida-se uma nova fase no Direito brasileiro, até então construído sob a base da civil law. A força vertical atribuída aos precedentes judiciais imprime a decisões de tribunais superiores a feição de stare decisis. Inserido no processo de “commonlawlização”, a Lei no 13.105/2015 realça a importância da jurisprudência no ordenamento jurídico, determinando diretamente o modo de atuação dos juristas, que deverá atentar-se mais do que nunca ao entendimento fixado por tribunais superiores e pelo STF em sede de controle de constitucionalidade, súmula vinculante, incidente de resolução de demandas repetitivas e orientações predominantes. Privilegiando a boa-fé, a segurança jurídica e a dialeticidade, rupturas bruscas de jurisprudência podem ser atenuadas com a modulação de seus efeitos e terceiros poderão atuar como amicus curiae.

Barroso e Patrícia8 identificam, ainda, que o respeito aos precedentes possibilita que os recursos de que dispõe o Judiciário sejam otimizados e utilizados de forma racional. Se os juízes estão obrigados a observar os entendimentos já proferidos pelos tribunais, eles não consumirão seu tempo ou os recursos materiais de que dispõem para redecidir questões já apreciadas. Consequentemente, utilizarão tais recursos na solução de questões inéditas, que ainda não receberam resposta do Judiciário e que precisam ser enfrentadas. A observância dos precedentes vinculantes pelos juízes, mesmo que não concordem com eles, reduz, ainda, o trabalho dos tribunais, que não precisam reexaminar e reformar as decisões divergentes dos entendimentos que já pacificaram.

O aumento da tutela da segurança jurídica impacta positivamente não apenas sobre as expectativas do jurisdicionado, uma vez que este passa a possuir maior previsibilidade quanto às decisões a serem proferidas, mas também sobre a estrutura mesma do Poder Judiciário e no cotidiano da jurisdição. A integridade, coerência e estabilidade das decisões judiciais possibilitam uma entrega mais célere da jurisdição, bem como maior probabilidade de tratamento igual a casos semelhantes, permitindo a uniformização do entendimento e ampliação do sentimento de justiça para julgados e julgadores.

Assim, o novo sistema de precedentes instituído pelo novo Código de Processo Civil está em consonância com a moderna tendência de aproximação dos modelos da civil law e da common law, bem como acerta em resguardar substancialmente os valores da isonomia, eficiência e, sobremaneira da segurança jurídica, visando ao cumprimento da função máxima do Judiciário de alcançar a pacificação social segundo os valores constitucionais vigentes.

Referências Bibliográficas:

AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

BARROSO, Luís Roberto e MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. In: Revista da AGU. Brasília: AGU, ano 15, n. 3, jul./set. 2016.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2.ed. São Paulo: Ed. RT, 2011.

VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves. Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.

WALD, Arnoldo. Eficiência Judiciária e Segurança Jurídica: a racionalização da legislação brasileira e reforma do Poder Judiciário. In: MACHADO, Fábio Cardoso; MACHADO, Rafael Bicca (coord.). A reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

Notas:

1 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 945.

2 WALD, Arnoldo. Eficiência Judiciária e Segurança Jurídica: a racionalização da legislação brasileira e reforma do Poder Judiciário. In: MACHADO, Fábio Cardoso; MACHADO, Rafael Bicca (coord.). A reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 51).

3 BARROSO, Luís Roberto e MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. In: Revista da AGU. Brasília: AGU, ano 15, n. 3, jul./set. 2016, p. 12.

4 Art. 988.  Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:

(…)

II – garantir a autoridade das decisões do tribunal;

III – garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (Redação dada pela Lei nº 13.256/2016)   (Vigência)

IV – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência.

IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. 

5 Art. 927, § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

6 VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves. Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.

7 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 374.

8 BARROSO, Luís Roberto e MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. In: Revista da AGU. Brasília: AGU, ano 15, n. 3, jul./set. 2016, p. 12.