Edição

Superendividamento do consumidor e direito da empresa

5 de dezembro de 2023

Compartilhe:

O superendividamento é um mal que aflige o mundo moderno, colocando para fora do mercado de consumo milhares de pessoas, que já não dispõe de dinheiro, nem de crédito para fazer frente às suas necessidades fundamentais. Não se trata de um fenômeno tipicamente brasileiro: em maior ou menor escala, ele se repete por todo o mundo, independentemente de sexo, idade, classe social ou grau de instrução. Buscando números atualizados sobre o assunto, encontramos alguma divergência, conforme a fonte consultada. De acordo com o Banco Central, no final de 2022, havia quase 15 milhões de endividados de risco no País; a Serasa aponta mais de 70 milhões de negativações; e a Febraban menciona aproximadamente um trilhão de saldo devedor em contratos bancários.

Os números revelam uma triste realidade que tem várias faces: são milhões de pessoas postas à margem do mercado de consumo (porque não têm dinheiro para honrar os seus compromissos nem, na maioria das vezes, acesso ao crédito de maneira adequada para suprir esta dificuldade). O mercado, por sua vez, se vê diariamente privado de recursos que seriam fundamentais para propiciar o crescimento da economia, bem como a tão almejada estabilidade. No meio desta situação, em uma posição igualmente prejudicada, temos o Estado que vê a sua receita cair (superendividados não costumam pagar impostos), ao mesmo tempo em que recebe uma crescente demanda de assistência social. O Poder Judiciário não fica imune: diariamente é assolado por milhares de processos que refletem esta situação – são credores, que não conseguem receber, e devedores, que discutem contratos e negativações, de maneira normalmente fracionada e não tão eficiente. Tudo isto demanda tempo e tem um custo muito elevado, pago por toda a coletividade.

A situação, contudo, não é recente: o Banco Mundial já alertava, no ano de 2014, que o endividamento em massa da população trazia um risco sistêmico, que poderia afetar a economia do mundo como um todo e que algo precisaria ser feito para evitar um colapso.

Observamos que a insolvência empresarial conta com um sistema próprio, que vem se aprimorando há anos e ganhando contornos transnacionais. A Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral), por exemplo, tem um guia legislativo que aponta objetivos e princípios a serem buscados pelas leis locais, buscando conciliar as dificuldades financeiras do devedor, dos credores e de terceiros interessados, como mercado e Estado por exemplo. Já a insolvência pessoal é um tema cuja disciplina é deixada exclusivamente aos Estados individuais. No arguto dizer de Iain Ramsay (2017, p. 16), trata-se de uma “batata quente”, que demanda muita habilidade para ser enfrentada, pois cria o que alguns consideram um “direito de não pagar dívidas” ou de “não cumprir contratos” o que, embora não corresponda à realidade, é algo que certamente impõe altos custos políticos.

O endividamento crescente da população é uma conjuntura real e que precisa ser enfrentada. Para tanto, há que se buscar um ponto de equilíbrio entre o pacta sunt servanda e a impossibilidade de cumprimento das obrigações, e ainda se conferir a necessária e estabilidade às relações comerciais e de crédito.

Existem diversas leis pelo mundo que regulam o assunto, mas os doutrinadores costumam apontar dois principais sistemas de tratamento. O primeiro é o norte americano, que privilegia o fresh start, partindo de um fundamento pragmático: o endividamento é considerado falha do mercado, um erro na concessão do crédito a quem revelou não ter condições de pagamento (e não do consumidor) e deve ser sanado para que a economia siga funcionando. A figura de uma engrenagem ilustra a ideia: fornecedores e consumidores fazem com que ela funcione de forma conjunta e harmônica – se um destes grupos falhar, o outro sentirá os efeitos. Existem lá duas formas de reabilitação, previstas nos Capítulos 7 e 13 do Código de Falências, que basicamente preveem a liquidação de ativos ou a formação de um plano de pagamento. Em ambos os casos, uma vez pago o quanto possível, de acordo com as condições do devedor, abre-se a possibilidade de perdão para o remanescente (excepcionalmente, se não houver solvabilidade, desde que preenchidas determinadas condições, passa-se diretamente ao perdão do passivo).

O segundo sistema é o francês, que nos serviu de inspiração.  Ele considera a dívida uma falha pessoal do consumidor que, como tal, primeiro deve ser expiada para depois, se for o caso, perdoada. No início, a lei francesa só falava em plano de pagamento. Depois, passou a prever liquidação de passivo e perdão. Lá o procedimento desenvolve-se grande parte do tempo na esfera extrajudicial, perante as comissões administrativas (ligadas diretamente ao Banque de France). A atuação do magistrado fica restrita a hipóteses e momentos específicos. A ideia central é obter o pagamento, através de planos ou mediante a venda do ativo, respeitando sempre o reste a vivre que, por expressa disposição legal (art. 732-2, Code de la Consommation), deve ser suficiente para despesas com moradia, eletricidade, gás, aquecimento, água, alimentação, educação, cuidados infantis, viagens de negócio e saúde.

A Lei nº 14.181/2021 cuida de alguns aspectos da reorganização patrimonial do devedor pessoa física, mas não chega a estabelecer um sistema detalhado de insolvência para os não comerciantes. Diversamente do que muitos pensam, ela não traz medidas para premiar o não pagamento. Ao contrário, seus principais paradigmas propõem uma mudança de mentalidade aos dois envolvidos na relação de crédito: para o credor determina que conceda crédito responsável (ou seja, que verifique as reais condições da contraparte e lhe ofereça algo que seja passível de cumprimento); ao devedor reforça a obrigação de pagamento decorrente dos contratos, pois não prevê a possibilidade de discharge como faz a norte americana (ou de esdebitazione, na forma italiana). Queremos com isto criar uma cultura do pagamento – do pagamento possível, é certo – mas que seja efetivamente feito.

Para o que interessa a esta análise, a lei cuidou de definir o superendividamento como a impossibilidade manifesta do consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar suas dívidas de consumo vencidas e vincendas, sem prejuízo do mínimo existencial. A partir deste conceito, deduzimos seu âmbito de aplicação: destina-se apenas a pessoas não empresárias, sem condições de pagar dívidas de consumo contraídas de boa-fé (militando em favor do consumidor a presunção de que assim tenha agido, o que pode ser rechaçado através de prova produzida pelo credor). Não se destina à contratação de produtos de alto luxo e valor (circunstância a ser analisada caso a caso, de acordo com a realidade das partes envolvidas). Excluem-se, ainda, as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real; financiamentos imobiliários e de crédito rural. A finalidade da norma é evitar a exclusão social e preservar o mínimo existencial.

Em resumo, a lei trouxe três maneiras de enfrentar a questão: o processo de repactuação de dívidas (do art. 104-A), que tentará em audiência montar um plano de pagamento que contemple o melhor interesse do devedor e dos credores; o processo para revisão e integração dos contratos (art. 104-B), no qual, frustrada a tentativa de conciliação, o juiz elaborará um plano de pagamento compulsório; e o procedimento administrativo para tentativa de solução consensual (art. 104-C), conduzido pelos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

O processo para repactuação de dívidas tem formato simples e inovador: é instaurado a pedido do consumidor (e exclusivamente dele), apresentado tanto em juízo quanto perante os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs). Vale dizer que no último dia 4 de setembro o Tribunal de Justiça de São Paulo editou o provimento do Conselho Superior da Magistratura (Provimento nº 2.717/2023), que instituiu o Núcleo de Conciliação e Mediação de Conflitos Oriundos do Superendividamento. Qualquer interessado poderá acessar e preencher um formulário padrão, disponibilizado no portal e-SAJ, cadastrando ali a sua pretensão. De maneira bastante simples, ele é levado a prestar as informações necessárias para que se possa conhecer sua situação financeira, tanto sob o ponto de vista dos débitos (quem são os credores, quais os contratos e valores e quais as ações já em curso) quanto da capacidade de pagamento (qual a composição familiar, sua renda e principais despesas).

A partir do formulário, ou da petição inicial, dá-se início ao procedimento, cujo principal ato é a audiência coletiva para tentativa de conciliação. Os credores são intimados e tem o dever de comparecer pois, se não o fizerem ficarão sujeitos à aplicação de algumas penalidades previstas na lei: suspensão da exigibilidade de seu crédito e interrupção dos encargos da mora; sujeição compulsória ao plano de pagamento que vier a ser formulado em juízo; que o seu pagamento tenha início apenas quando terminar o plano acordado. Na audiência, realiza-se uma espécie de mesa redonda, na qual o devedor poderá negociar com a totalidade de seus credores uma forma de cumprimento de suas obrigações. Se houver acordo, ele seguirá para homologação judicial (constituindo título executivo). Caso não haja, abre-se ao devedor a possibilidade de instaurar processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas mediante plano judicial compulsório.

Em São Paulo, tendo tramitado o procedimento pelo Cejusc e sendo o caso de um devedor sem capacidade de arcar com pagamento de honorários advocatícios será expedido um ofício à Defensoria Pública para que dê o necessário seguimento (com o ajuizamento da ação adiante tratada). 

Se o procedimento tiver início na Vara Cível, o magistrado poderá encaminhar o feito ao Cejusc para que conduza a conciliação, providenciando todos os atos necessários. Para o processo de revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas, a legitimidade ativa também é atribuída exclusivamente ao consumidor. Recebida a petição inicial, o juiz verificará se já se tentou fase conciliatória. Em caso negativo, é salutar que, após analisado o pedido de tutela de urgência (que pode veicular medidas importantes para possibilitar a formação de um bom ambiente de negociação, como, por exemplo, a suspensão dos apontamentos em cadastros de maus pagadores, a suspensão da fluência de encargos moratórios ou até mesmo, conforme a situação apresentada, da própria exigibilidade do débito).

O passo seguinte é a designação de audiência de conciliação, que poderá ser presidida pelo magistrado ou encaminhada ao Cejusc para tanto. Se os autos retornarem sem composição, ou se ela já tiver sido tentada sem sucesso anteriormente, os devedores são citados para dizer o motivo pelo não acederam ao acordo ou renegociaram. Entendo que neste momento o juiz poderá proceder à análise dos contratos sob o aspecto jurídico, procedendo sua adequação à legislação (e afastando eventuais cobranças irregulares). Na sequência, poderá nomear um administrador, que terá 30 dias para realizar eventuais diligências e apresentar um plano de pagamento (com medidas de temporização ou atenuação de encargos). O plano judicial compulsório, estabelecido em sentença, assegurará aos credores um pagamento mínimo obrigatório – o valor original do contrato monetariamente corrigido, em no máximo cinco anos, podendo a primeira parcela vencer em até 180 dias contados da homologação.

O procedimento administrativo para tentativa de solução consensual é basicamente o mesmo que o previsto no art. 104-A, mas com a particularidade de ser conduzido pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Em poucas palavras podemos dizer que a Lei nº 14.181/2021 trouxe a esperança de dias melhores para o mercado de consumo, representando o embrião para um sistema de recuperação financeira do não empresário.