Teixeira de Freitas: paradoxos do projeto e da gênese do Código Civil do Brasil e da Argentina

2 de fevereiro de 2024

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883) foi convidado para elaborar o Código Civil do Império do Brasil por José Thomás Nabuco de Araújo (1785-1850), que veio a substituí-lo quando ele se afastou da redação do Código. A iniciativa preliminar, como estudioso e percuciente jurista, foi elaborar uma Consolidação das Leis Civis do Império com método hábil e critério eficiente dos legisladores que contribuíram para o Corpus Juris Civilis (Romani), fundamento histórico e pressuposto do Direito Civil no mundo ocidental.

Estava diante de uma diversificada evolução legislativa que viabilizaria o Corpus Juris Civilis (Romani), consolidado por uma comissão especial nomeada pelo Imperador Justiniano (533 D.C). Dentre esses documentos jurídicos preliminares estavam: as Leis Licínias Sêxtias (367 a.C., que restringiam a posse de terras públicas – ager publicus); Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum; 449 a.C., que formava o cerne da Constituição da República Romana) e a  Lei Canuleia (445 a.C., que permitia o casamento – ius connubii – entre patrícios e plebeus). 

Para maior compreensão do Corpus Juris Civilis é fundamental reconhecer que ele se constituía de quatro livros consolidados: o Digesto e/ou Pandectas (compilação dos iura novit cúria, ou seja, cabe às partes trazer os fatos ao processo e ao Juiz a função de submetê-los a norma); as institutas (manual escolar); as Novelas (reunião das constituições promulgadas por Justiniano) e o Código ou Códex (compilação das leges)¹. 

Esta estrutura do Corpus Juris Civilis evoluiu em circunstâncias muito especiais no Direito Francês, onde prevaleceu a leitura do Digesto à luz dos princípios iluministas e liberais que presidiram a Revolução Francesa. Os estudos sobre o Corpus Juris Civilis evoluíram na linha de recuperação histórica dos precedentes jurídicos da Grécia e Roma antiga, reconhecidos na sua nova formatação como pandectas. Ao iniciar a sua consolidação no Brasil Império, Teixeira de Freitas mais se aproximou da leitura francesa reconhecida como Digesto. Na evolução de sua pesquisa inclinou-se para viabilizar o Código Civil brasileiro na perspectiva do pandectas, que estava mais próximo de uma efetiva dogmática jurídica, apoiada na ortodoxia que evoluiu na pesquisa dos antigos e deu origem à dogmática, infensa a uma leitura iluminista, liberal ou ideológica.

A leitura do Corpus Juris Civilis, apoiada na compreensão evolutiva do Digesto, levou à sua releitura por Tomás de Aquino (1285) no século XIII, apoiada nos princípios do catolicismo medieval. Em tese, essa leitura mais flexível do Digesto é aberta a correntes alternativas aos estritos limites da subsunção dos fatos à lei pelo juiz, a uma leitura mais profunda que tinha o seu reconhecimento a partir de Aristóteles e que permitiu o seu reconhecimento como uma teoria própria do Direito – a Dogmática Jurídica. Após a aprovação da Consolidação das Leis Civis pelo Imperador Pedro II, em 24 de dezembro de 1858, Teixeira de Freitas iniciou seus trabalhos para propor um Código Civil ainda influenciado pela hermenêutica do Digesto. Com o início dos trabalhos para a elaboração do Código Civil, mais se aproximou da leitura apoiada no Pandectas, numa eventual e especial dogmática de dimensão jurídica própria, ou seja, o Juiz tem que se ater à Lei, evitando uma hermenêutica mais aberta dos fatos.

Esta segunda posição adotada por Teixeira de Freitas, que mais se identificava com a dogmática pandectista, o afastou significativamente da Constituição Política do Império do Brasil de 1824, que se apoiava na união do Estado e Igreja Católica, ou seja, no Estado Circa Sacra. Independentemente de preservar os princípios do Estado imperial e da igreja, no denominado Direito Pátrio Eclesiástico que se fundamentava no Direito Canônico (iuris Canonici), ele passou a ter dificuldade de viabilizar o seu projeto de Código Civil (iuris Civilis), a partir da consolidação das leis civis do Império, antecedentes sujeitas aos Estado Circa Sacra.

Identifica-se, assim, a influência da dogmática pandectista no projeto de elaboração do Código Civil, dado que a Consolidação da Legislação se apoiava na história passada do Império e não tinha maiores aberturas para a construção do Direito Civil fundamentado nos direitos reais e pessoais. Evidentemente, a questão da propriedade não foi esclarecida com a Lei de Propriedade de 1850, assim como as relações produtivas do Império estavam na escravidão (aliás, chegou a se falar no ‘Código Negro’) e a legislação sobre o matrimônio o reconhecia como indissolúvel, o que não correspondia aos propósitos que procurava viabilizar o divórcio – mais tarde definido como desquite, um neologismo do Código de Beviláqua. A partir dos anos 50 o mundo já estava evoluindo para uma sociedade civil mais aberta e economicamente comprometida com a industrialização e o comércio, cujos padrões referenciais eram a propriedade na forma de seus limites legais.

Interessante notar que as condições de organização do Estado eram mais precárias na Argentina do que no Brasil, dado que as províncias argentinas ainda não estavam unificadas, o que dificultava uma legislação central. Em 1824, o Brasil teve uma Constituição outorgada pelo Imperador e iniciativas antecedentes como a Constituinte de 1823, de propensão democrática contrária ao poder moderador e também à união de Estado e Igreja. Mesmo considerando a Independência da Argentina em 1816, datada de 9 de julho, antes do Brasil (1822), sua unificação territorial não ocorreu imediatamente dado a diferença política entre Buenos Aires, fundada em 1536, e as demais províncias do interior.

Na linha evolutiva do pensamento jurídico de Teixeira de Freitas para a elaboração do Código Civil, suas proposições com relação às definições dos direitos reais, seja nas relações de direito pessoal ou de família, evoluíam em profundo contraste com a tradição jurídica do Império brasileiro. Todavia, as dificuldades argentinas para a sua unificação territorial e política inviabilizaram a construção jurídica imediatamente após a independência. 

A Constituição Argentina só foi promulgada em 1853, quando os parâmetros jurídicos das nações da América Latina já estavam bastante evoluídos em relação ao período colonial e anos subsequentes, até a criação da República. Apesar das divergências políticas internas entre a província de Buenos Aires, autonomista, mais aberta ao comércio e sensível ao desenvolvimento cultural e laico, a Constituição não sofreu a influência do período sucessível a sua declaração de independência, o que permitiu uma sensibilidade jurídica maior para os novos institutos do Direito. Também não sofreu qualquer influência de natureza imediatamente religiosa, sendo que estava pautada inicialmente por uma declaração de Direitos e garantias, comprometida com a propriedade, com a liberdade, com o livre comércio, acesso à terra e tolerância religiosa, inclusive a Constituição.

As posições que vinham sendo adotadas por Teixeira de Freitas com relação à questão da propriedade e as questões da família foram rapidamente admitidas na construção jurídica da Argentina. Pensadores como Friedrich Savigny (1779-1861) e Georg Friedrich Puchta (1798-1846), da Escola Histórica, foram reconhecidos pelos juristas argentinos e, assim, a Argentina teve a influência do confederalismo americano. Não apenas isto, mas também evoluiu para uma estrutura federalista aberta que deixava as províncias com fortes poderes, embora resguardasse um Executivo forte.

Houve um período posterior à Constituição de 1853 em que Buenos Aires não aderiu à Confederação das províncias argentinas, o que só veio a acontecer em 1859. Esta unificação é um dos fenômenos mais importantes da Argentina e ocorreu a partir de 1860, quando ficou efetivamente marcada pela ascensão de Bartolomé Mitre Martinez na estrutura de poder da nação. Mitre não apenas contribuiu para a criação da República Argentina, viabilizando a unificação das províncias com Buenos Aires, como também promoveu a instalação da Corte Suprema Argentina, em junho de 1863, com cinco ministros – este número flutuou durante toda a história da Argentina moderna.

Grande pensador argentino foi Juan Bautista Alberdi (1810-1884), um constitucionalista liberal que deixou para o futuro do país o livro “Bases para a Organização Política da República Argentina”, que até hoje influi na recuperação institucional daquela nação. Alberdi adotava como princípio fundamental, devido ao despovoamento longitudinal e latitudinal da área territorial externa de Buenos Aires, “que governar era povoar”. Criticava, ainda, o Direito Constitucional sul-americano como “cópias” da Constituição dos Estados Unidos e da França, era contra o modelo monárquico e optava por uma República Federalista Presidencialista. Esta posição contribuiu para a adoção de um volume significativo dos dispositivos que estavam em discussão no projeto de Código Civil de Teixeira de Freitas para o Brasil, naquele momento influenciado pela Escola Histórica e pela ortodoxia pandectista.

Este quadro argentino não permitiu propriamente adotar as linhas jurídicas do Direito Constitucional brasileiro no Império, mas encaminhou para reconhecer a importância de Augusto Teixeira de Freitas como formulador de um projeto de Código de Direito Civil, que busca seus fundamentos na evolução da leitura pandectista dogmática do Direito Civil a partir do Corpus Juris Civilis. Demonstra, assim, um fenômeno interessante até os dias atuais no sentido de que o fundamento do Direito Civil estaria no Corpus Juris Civilis e não propriamente no constitucionalismo, que, como aponta a situação brasileira, com o Código de 2002 transmigrou dos limites do Corpus Juris Civilis e do próprio entendimento de Clóvis Beviláqua, com o Código Civil de 1916, para se fundamentar na Constituição brasileira de 1888.

De volta a Bartolomé Mitre Martinez, uma das grandes representações políticas na Argentina, é importante recordar que sua atuação contra a negação do autoritarismo de Juan Manuel de Rosas (1793-1877), Governador de Buenos Aires entre 1829 e 1832. Mitre foi importante na modernização da Argentina, que transmudou a natureza de longos períodos autoritários, além de desempenhar um papel significativo na guerra travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta por Brasil, Argentina e Uruguai – conflagração à qual se pôs termo apenas em 1870, com a morte do General paraguaio Francisco Solano López, na batalha de Cerro Cora. Durante o governo de Mitre, superada a questão da guerra, organizou-se também a administração da Justiça, que deixou de ser um assunto privado para ser uma atribuição do Estado. 

No período presidencial de Mitre, o jurista Dalmacio Vélez Sársfield (1800-1875), formado em Direito pela Universidad Nacional de Córdoba, na Argentina, foi convidado para a tarefa de elaborar o Código Civil Argentino. O projeto de Código Civil de Teixeira de Freitas serviu de modelo para Sársfield. Nas palavras de Sílvio Venosa, “embora o esboço de Teixeira de Freitas não se tenha convertido em Projeto entre nós, o trabalho de Teixeira de Freitas teve grande repercussão no Código Civil argentino, como confessa com honestidade o jurista daquele país, Vélez Sarsfield. Esse Código partiu da Consolidação e do Esboço, tanto que Teixeira de Freitas é até hoje autor citado e acatado naquele país”.

O Código Civil Argentino foi o primeiro Código Civil no mundo, promulgado em 1871 depois de ser aprovado em sessões legislativas. O Código passou a ser aplicado pelos tribunais e nas relações civis, especialmente nas questões de propriedade e de família. Como já dito, sofreu influência direta de Teixeira de Freitas, absorvendo a formulação do esboço que distingue os direitos pessoais e os direitos reais. 

O brilhante trabalho de Teixeira de Freitas acabou não se tornando o Código Civil do Império do Brasil, mas tendo influído ainda nos Códigos do Chile, da Bolívia e do Peru. Somente no período da República, em 1916, o Brasil chegou a ter um Código Civil, o de Clóvis Beviláqua, que também se inspirou, guardados os limites da história brasileira do Direito Civil, em Teixeira de Freitas.

Sobre a matéria, Jorge Horácio Asterini manifestou que, “não por acaso, o Código Civil argentino sofre a influência do esboço de Freitas, o que permitiu, no entanto, que Vélez em curto prazo (cerca de seis anos) desenvolvesse a sua proposta”. Nas palavras do próprio Vélez: “para este trabalho, consultei todos os Códigos Publicados na Europa e na América e comparei o projeto argentino com o projeto de Código Civil para Espanha e utilizei principalmente os estudos referentes ao Código do Chile que se apoiava nos códigos europeus, mas o projeto argentino sobretudo se apoiou no projeto de Código Civil em que vinha trabalhando no Brasil Teixeira de Freitas, citando os seus artigos referências sobre a matéria”. O Código argentino esteve vigente de 1871 até 2016, com a promulgação do novo Código Civil argentino em 2014, que unificou o Direito Privado argentino, seguindo a orientação do Código Civil brasileiro de 2002, com as marcas impressas de Miguel Reale.

Como Teixeira de Freitas, no seu segundo momento de estudos para o desenvolvimento do Código Civil brasileiro, Sársfield era um admirador de Savigny, onde possivelmente estavam fundamentos semelhantes entre o esboço de Freitas e aquilo que veio a ser o Código Civil argentino, especialmente no que se refere a teoria jurídica das pessoas, domicílio, ato jurídico e obrigações, como também em relação a teoria de posse e domínio. O trabalho de Sársfield foi deveras elogiado pela comissão, sendo convertido em lei sem nenhuma modificação. Ressalta-se essencialmente que o Código Napoleônico de 1803, a legislação civil americana, vem a preceder o Bürgerliches Gesetzbuch – BGB, em desenvolvimento desde 1881. A introdução do Código de Napoleão na França, em 1804, criou na Alemanha um desejo semelhante para a obtenção de um Código Civil, de forma parecida com a Argentina e como acontecerá também com os Estados Unidos, que vinha de uma experiência política e jurídica confederada. 

Teixeira de Freitas contribuiu, ainda, em seus estudos relativos a Savigny e Friedrich Puchta para o próprio Código Civil Alemão (1900), o que demonstra que todos esses Códigos evoluíam da mesma fonte jurídica, a se considerar também que a Confederação Alemã (em 1871) e Confederação Americana (já depois de 1876) do Norte e a precária Confederação Argentina (depois dos anos 1800), aos tempos em que a província de Buenos Aires ainda não integrava a Confederação e depois a Federação Argentina. 

Não é de todo impossível afirmar que estas confederações, posteriormente unificadas na forma de federação, vieram a sofrer a influência de Teixeira de Freitas que evoluiu nos estudos – não a partir de uma realidade política republicana, federativa e presidencial, mas do Estado imperial brasileiro unificado feito em República Federativa Presidencial em 1889-91, que viabilizou e precedeu o Código Civil de Beviláqua 1916.

Nota_____________________________

¹ Aurélio Wander Bastos, Teixeira de Freitas – Histórias e Dilemas em Fundamentos do Direito, Estudos em Homenagem ao Professor Francisco dos Santos Amaral Neto, Ed. Processo, Rio de Janeiro 2021.

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