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“A reforma foi burocratizante”

31 de dezembro de 2005

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Na semana em que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou a criação de 230 das 400 Varas Federais propostas no Projeto de Lei (PL) 5.829/05, o presidente do Superior Tribunal Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal, manifestou seu descontentamento com relação à atuação do CNJ. Vidigal, que preside também o Conselho da Justiça Federal (CJF), acredita que o órgão não tem cumprido o papel estabelecido pela Constituição Federal, que é o de traçar políticas administrativas a fim de combater a morosidade da Justiça.

De acordo com o presidente do STJ, a reforma do Judiciário burocratizou ainda mais as ações da Justiça, uma vez que todas as medidas que tiverem repercussão orçamentária no Poder Judiciário terão que ser apreciadas pelo CNJ. Foi o caso da proposta de criação das 400 Varas Federais, cujo projeto foi aprovado pelo Conselho da Justiça Federal e referendado pelo Pleno do STJ. O PL 5.829/05, que já estava em tramitação no Congresso, teve que retornar para ser apreciado pelo CNJ antes de ser votado.
Vidigal considera um despautério que conselhos de tribunais, como o da Justiça Federal e o do Trabalho, tenham que trabalhar sob a supervisão do CNJ. O ministro defende a idéia de que é preciso criar uma lei que possa melhor definir as atribuições e áreas de atuação de cada conselho, evitando que haja burocratização e centralização das políticas estratégicas que visem ao aprimoramento da prestação jurisdicional.

Em seis meses de atuação, que avaliação que se tem do Conselho Nacional de Justiça?

Fui um dos mais ardorosos defensores do CNJ na reforma do Judiciário, num momento em que havia grande maioria dentro da magistratura contra a instalação do Conselho. No entanto, hoje vejo o Conselho com algum desapontamento, com o formato e as ações que têm procurado justificar a sua existência. Imaginava o Conselho como sendo um órgão mais ativo, mais determinado no sentido de formular políticas administrativas, de modo que, economizando recursos públicos de uma forma mais objetiva, pudéssemos formular políticas estratégicas para enfrentar o grande problema que atazana a vida das pessoas no Brasil, que é a morosidade da Justiça. No entanto, até aqui, o Conselho está meio tapeando, como alguém que foi colocado em um enorme espaço e não tem noção do seu efetivo espaço. O Conselho vem ocupando-se com questões comezinhas, perdendo tempo no conhecimento de reclamações que não têm nada a ver com sua finalidade. O presidente do STJ já foi notificado algumas vezes com reclamações de pessoas e de advogados contra o andamento moroso de determinados processos. O Conselho não vai simplesmente notificar um tribunal para conseguir que a morosidade seja reduzida. É preciso resolver esse problema numa ação conjunta administrativa, propondo medidas desburocratizantes, buscando não só medidas legislativas, mas também utilizando a tecnologia da informação, como tem sido feito no STJ. Já reduzimos de três a quatros anos para 250 dias o prazo de tramitação de um recurso especial. Não estamos satisfeitos com isso e queremos que se reduza muito mais.

O que precisa ser feito? 

Evoluir para uma lei que possa definir melhor essas responsabilidades. Não obstante ter essas responsabilidades definidas pela EC 45, o Conselho está contribuindo para a morosidade da prestação jurisdicional. No Conselho da Justiça Federal, que é um órgão com sede constitucional, e, portanto, anterior ao CNJ, aprovamos depois de muitos estudos o projeto de criação de 400 novas Varas da Justiça Federal. Não estamos só preocupados com a interiorização das ações da Justiça Federal, mas também com a celeridade processual. Esse projeto, depois de todas as discussões aprovadas pelo CJF, referendado pelo Pleno do STJ, estava em tramitação no Congresso Nacional quando, de repente, alguém inseriu uma emenda na Lei de Diretrizes Orçamentárias, estabelecendo que todos os projetos de lei em tramitação que tivessem repercussão orçamentária no Poder Judiciário teriam que ser encaminhados ao CNJ para ser apreciado. Houve um equívoco da parte do presidente da Câmara, e insisto nisso porque é preciso definir se há um conselhinho, se há um conselhão. Assim, estamos burocratizando mais ainda o trabalho dos conselhos.

Como ficou a divisão dos trabalhos com a criação do CNJ? 

Quando se criou o CNJ, o CJF já existia. Haveria de se supor que o CJF, conforme a Constituição estabelece, iria cuidar só da supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo graus. O CNJ não faria interferência, assim como o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT). A reforma do Judiciário acabou burocratizando mais ainda as ações, na medida em que não definiu as responsabilidades de cada conselho. Ou extinguimos os conselhos pré-existentes (CJF e CSJT), deixando esse colegiado que parece uma casa legislativa que não está sabendo o que fazer, ou definimos as atribuições de cada conselho. Esta é uma crítica para que nos reunamos outra vez para definir os espaços de atuação e as verdadeiras atribuições do Conselho Nacional de Justiça.

Nestes seis meses de atuação, houve algum prejuízo por conta de alguma decisão do CNJ? 

O CNJ prejudicou a Justiça Federal. E está prejudicando o povo brasileiro na prestação jurisdicional, na medida em que esse projeto já estava com bom andamento e teve que ser enviado ao CNJ para ser apreciado. Se tivesse adivinhado que isso iria acontecer, também teria me posicionado contra (o CNJ) e sido um forte combatente. Temos que desburocratizar as ações do Poder Judiciário no Brasil, e o Conselho, ao contrário, as está burocratizando ainda mais.

Quando o projeto foi para o CNJ, isso o incomodou. Há uma disputa de poder? 

Não é disputa de poder. Até tive a iniciativa e o bom senso de encaminhar uma cópia desse projeto ao CNJ ao mesmo tempo em que o encaminhei à Câmara dos Deputados. O que me incomoda é a morosidade. Corremos o risco de não ampliarmos a presença da Justiça Federal no interior.

O senhor acredita que acabar com o Conselho da Justiça Federal e com o Conselho Superior da Justiça do Trabalho poderia ser uma alternativa para centralizar as demandas no CNJ? 

Na prática, seria um caos. Ou definimos o que cada um tem que fazer sem que um interfira na ação do outro, ou então teremos uma hierarquia extremamente burocratizante. O fato de os conselhos dos tribunais e das áreas infraconstitucionais terem que trabalhar sob a supervisão do CNJ é um despautério. Teremos, então, a excessiva burocracia não só no andamento processual como também na área administrativa dos tribunais. É preciso definir esses espaços.

O senhor acredita que o fato de o CNJ ter votado a Resolução nº 7, que veda o nepotismo, foi uma medida a ser aprovada de imediato como resposta à população, que aguardava pela atuação do controle externo do Judiciário? 

Essa é uma medida para responder aos clamores que foram colocados perante a sociedade. Mas me lembro do verso do poeta Carlos Drummond de Andrade que diz: “Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução”. Então, isso também é apenas uma rima aos anseios da sociedade e não resolve absolutamente nada. Para não dizer que seria uma postura demagógica, na prática é apenas um pingo que se coloca em uma letra “i” cujo ponto havia se perdido. Isso não é tudo. Do ponto de vista ético, as pessoas ficam satisfeitas e eu também, até porque nunca pratiquei nepotismo. As questões do Judiciário não se resumem e não se resolverão pelo ataque a esse aspecto.

Que aspectos devem ser analisados pelo CNJ? 

Precisamos é ter coragem e tocar o dedo em outras feridas. Por exemplo, a questão do teto, que ficou estabelecido que nenhum servidor público receberia mais do que o ministro do Supremo Tribunal Federal. Se isto está escrito na Constituição, temos que pôr a mão nos super salários que existem por aí em muitos Estados. Temos que ver a questão da disponibilidade dos juízes para atender a demanda da sociedade. Creio que os tribunais poderiam prestar atendimento ao público em dois expedientes. Inicialmente, pela manhã e à tarde, e num segundo momento, 24 horas por dia. A Justiça, na democracia, equivale à saúde das pessoas. Da mesma forma que temos que ter hospitais, ambulatórios e pronto-socorros a qualquer hora, temos que ter juízes, que são os médicos da cidadania. Precisamos criar ambulatórios do Judiciário, ou seja, plantões da Justiça nos mais diversos pontos e começar a trabalhar também para que a magistratura entenda que o juiz é um servidor público, que trabalha para a sociedade e o seu patrão é o povo brasileiro. Ao contrário disso, o que vemos são alguns coleguinhas muito empavonados, querendo distância de advogados, sentindo-se incomodados quando um advogado cruza com eles no prédio de um tribunal e se aproxima para entregar um memorial. Então, eles ficam muito aborrecidos, como se o advogado fosse um inimigo, um pedinte, alguém que está a exercer uma atividade estranha à atividade do magistrado. Quero condenar isso e conheço situações até muito próximas. É preciso que isso também seja denunciado. O juiz tem que entender que ele é servidor público. Se não está gostando do que faz, se está trabalhando muito e não tem condições de dar conta do trabalho, então vá para casa, peça a aposentadoria, abra lugar para outro.

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encaminhou propostas para tentar coibir delitos eleitorais. Qual a sua opinião sobre o tema? 

Tenho posição cética quanto a isso. Quando passei pelo Congresso Nacional como deputado, apresentei, em 1982, um projeto de lei que estabelecia normas para o financiamento das campanhas eleitorais. Ouvi um experiente parlamentar dizer que estava sendo muito ingênuo, porque a melhor lei do Congresso que se pode fazer é aquela em que alguém se reelege. Então, é muito difícil conseguirmos mudar a legislação em algumas situações que atrapalham a realização da democracia no Brasil. Penso que a própria Justiça Eleitoral, interpretando a Constituição que é muito clara quanto à tutela de dois direitos da sociedade, poderia editar resoluções de modo a reprimir e coibir determinadas situações que possam configurar abusos de poder econômico e político nas eleições. Não ponho muita fé em que o próprio Congresso possa votar seriamente, de uma forma objetiva, medidas e providências legais que possam atacar pela raiz esses males que contaminam a legitimidade do poder político no Brasil. A não ser, de forma excepcional, que a própria sociedade mobilizada o coloque na parede e diga: ou agora ou nunca.

Como o senhor vê essa possibilidade da falta de quorum nas próximas eleições? 

Ainda bem que o voto no Brasil é obrigatório, porque, caso contrário, correríamos o risco de ver o que aconteceu na Venezuela, uma abstenção superior à metade dos eleitores. No caso do Brasil, não vamos passar por isso, mas poderemos ter um grande contingente de votos nulos. Isso é muito perigoso porque compromete a base da legitimidade da representação popular. O que estamos vendo é uma decepção que se generaliza na sociedade com o atual elenco de atores na cena política. As pessoas se cansam até do teatro rebolado, diante das mesmas caras e dos mesmos papéis. O País precisa sair desse maniqueísmo e oferecer alternativas positivas, olhar para a frente, trabalhar o futuro imediatamente.

Alguns defendem o financiamento público de campanhas eleitorais. O senhor é favorável? 

Não acredito no financiamento público direto, mas sim no indireto. A pessoa poderá ter um limite para doar e os partidos, para gastar. Esse limite de doações poderá ser acertado entre todos os partidos no orçamento geral de campanha. Uma vez estabelecido, as doações seriam feitas em uma conta bancária, que teria o mesmo número do candidato. Qualquer um acessaria a conta pela Internet e saberia quem doou para quem. Dessa doação, haveria um abatimento de 50% no Imposto de Renda, configurando um financiamento indireto. O ideal seria que a sociedade pudesse doar e tivesse uma contrapartida. Com isso diluiríamos o poder econômico, que está concentrado nos bancos, pessoas físicas e grandes empresas, que têm interesse direto e vantagens maiores a obter junto ao poder público. Temos que pensar a democracia como um regime de todos e não apenas um condomínio para a ação de alguns.