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Ainda a questão dos juros

31 de dezembro de 2007

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A figura dos juros nos contratos bancários, como é sabido, tem como finalidade remunerar o dinheiro emprestado pela instituição financeira ao cliente, estando consolidado na jurisprudência pátria o entendimento no sentido de que tais instituições não estão sujeitas a limitações quanto ao respectivo percentual (Súmula 596 – STF), a não ser àquelas impostas pelo Banco Central e pelo Conselho Monetário Nacional, que, em última análise, são nada. Efetivamente, nas palavras de Carlos Roberto Siqueira Castro, as instituições financeiras, “a partir de 1964, contaram com a cumplicidade, intencionada ou não, das entidades governativas da Federação, que, desse modo, tornaram-se dependentes ou mesmo reféns do processo especulativo de rolagem da dívida pública.” (Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – 26/95)
Outrossim, induvidoso que o lucro é objetivo de qualquer negócio ou profissão, salvo algumas exceções que não é a de que se trata. Entretanto, o lucro exagerado não se coaduna com o estado democrático de direito em que vivemos. É bem verdade que inexiste lei que fixe a taxa de juros em determinado percentual. Entretanto, não vejo razoabilidade naquelas cobradas pelos bancos, muito acima da taxa básica de juros e também daquelas que paga na captação de dinheiro em público. A Selic, hoje, é de 12.5% ao ano, enquanto a captação gira em torno de 1% ao mês. A única justificativa dos bancos é o mercado, o que entendo insuficiente.
Partindo de tais premissas e tendo presentes o objetivo constitucional de construir uma sociedade justa e solidária (art. 3º), os princípios da defesa do consumidor (art. 170, V) e da vedação ao abuso do poder econômico e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4º) e o ditame expresso no art. 5º, da LICC (“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”), é que volto a insistir no tema da taxa de juros, especialmente aquelas praticadas nos contratos de cartão de crédito e de cheque especial.
Conforme lição do festejado mestre Carlos Maximiliano, citando Saleilles (Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense. 16ª edição, 1997, p. 160), verbis:
“Não queremos o arbítrio do juiz. Não o admiti-mos por preço nenhum. Pretendemos, entretanto, quando a lei não ordene com uma certeza im-perativa, que o magistrado possa marchar com o seu tempo, possa levar em conta os costumes e usos que se criam, idéias que evolvem, necessidades que reclamam uma solução de justiça”.
Daí me convenci de que a intervenção estatal se faz necessária em alguns contratos bancários, principalmente naqueles já referidos, “no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social.” (Cláudia Lima Marques. Contratos no CDC. RT. 4ª edição, p. 176)
Com efeito, se o juiz pode intervir nas leis propria-mente ditas (o direito positivo), inclusive declarando-as inconstitucionais, por que não poderia fazê-lo nas leis de economia, não escritas, buscando compatibilizá-las com aquilo que seria razoável admitir em cada caso concreto?
Em primeiro lugar, e ninguém diz o contrário, induvidoso que as taxas de juros aplicadas nos contratos de cartão de crédito e cheque especial sejam exorbitantes e abusivas mesmo, ressaltado que a abusividade não está nas cláusulas da avença firmada, mas sim no modo como são elas executadas, ao facultar ao credor fazer incidir taxas arbitradas de forma unilateral e que não deixa ao devedor outra saída senão aceitar a imposição que lhe é feita. Assim, eventual intervenção não se fará no contrato propriamente dito, mas sim na sua forma de execução.
Nem mesmo a justificativa de que a composição daquela taxa inclui outros fatores, inclusive o lucro do banco, é suficiente para justificar o seu exagero. Ela está longe daquilo que seria razoável admitir, repito, acarretando mesmo desequilíbrio contratual e excessiva onerosidade para o usuário, e ferindo seus direitos econômicos, visto que, por outro lado, enseja lucro demasiado para as instituições financeiras, como constantemente anunciado na mídia.
Isto é incompatível com a boa-fé e a eqüidade.
Por outro lado, nos contratos de mútuo propriamente dito, consegue-se taxa de juros mensal abaixo da metade, mais ou menos, daquela que vem sendo repassada aos usuários de cartões de crédito e do cheque especial. Esta taxa, bem menor, é aquela do chamado “crédito pessoal” que, conforme noticiário de publicações especializadas e site do Banco Central, gira em torno de 5% ao mês, ou até menos, em algumas instituições. Ora, se o cliente do banco, pessoalmente, consegue esta taxa bem menor, como justificar aquelas cobradas no cartão de crédito e no cheque especial? Nem se diga que tal diferença advém dos riscos de cada negócio, pois eles não diferem tanto. Em todas as situações, é colocada determinada quantia à disposição do tomador. Será que tais riscos aumentam ou diminuem, no mesmo banco, só por que contrato muda de denominação?
Outro detalhe que sempre me chamou a atenção,  caracterizando a abusividade da taxa de juros cobrada naqueles contratos, está no fato de os bancos, depois do inadimplemento do cliente, conceder empréstimo ao mesmo, com aquelas taxas do “crédito pessoal” bem mais baixas, exatamente para cobrir o débito do cheque especial ou pagar o saldo devedor do cartão de crédito, novando a obrigação. Ora, como uma mesma pessoa, no mesmo banco e envolvendo o mesmo débito, pode ser alvo de tratamento tão diferenciado? Apenas por que o contrato muda de
nome?
Acrescentem-se as propostas de acordo, principalmente nos contratos de cartão de crédito, em que são dados descontos substanciais, quase que expurgando todos os juros cobrados, para pagamento em prestações a perder de vista e até com as parcelas em valores fixos. Isso, no meu entender, demonstra que as taxas cobradas ensejam um ganho elevadíssimo para a instituição financeira, pois não é de se crer que o banqueiro dê tais descontos e fique no prejuízo. Mais lógico é concluir que os descontos referem-se àqueles ganhos excessivos, dos quais abre mão o mutuante para receber um mínimo e afastar qualquer prejuízo.
Registre-se noticiário do “Jornal do Commercio”, do dia 16 de maio passado, dando conta de que o Bradesco lançará novos cartões de crédito com taxas reduzidas para expandir o número de clientes. Lá está dito que as taxas variarão de 2,725, no cartão consignado, a 4,90%, no Fix Card, ao mês. O primeiro, garantido por consignação, ainda pode justificar a baixa taxa  anunciada; mas, e o outro?
Não bastassem as regras de mercado, econômicas, não escritas, não imperativas e que, em conjunto com diversos outros fatores, influenciam as taxas de juros, temos o substancial reforço do arbítrio e apetite de alguns banqueiros e dirigentes bancários, componentes importantes no encarecimento do crédito e que só pensam no lucro, retratado em repetidos balanços publicados pela imprensa, citando cifras astronômicas, com a receita advinda dos financiamentos em constante elevação.
Não se diga, como dizem, que a taxa de juros cobrada resulta da média de mercado. Um exemplo pessoal afasta tal assertiva. Tenho três cartões de crédito. No “A” e no “B”, os juros estão girando, atualmente, na faixa de 9% ao mês, enquanto no “C”, tal taxa é de apenas 4,70%.  Se é cobrada a taxa média de mercado, como se explicar tal discrepância entre uma instituição e outra? Será que cada instituição tem a sua média ou o seu mercado próprios?
A conclusão mais lógica que se tira das situações acima relatadas é que está caracterizado o abuso do direito de crédito, posto que, no seu exercício, o credor “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes” (NCC, art. 187), lesando o interesse de outrem ao “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.” (CDC, art. 39, V) e violando a norma legal que veda o enriquecimento sem causa (NCC, art. 884)
Aliás, os argumentos acima foram brilhantemente defen-didos pelo eminente Desembargador Rudi Loewenkron, no julgamento da Ap Civ nº 5685/2005, cujo acórdão contém o seguinte trecho:
“Mas sendo deferida a captação de capital para as administradoras reforçarem o seu caixa nas condições tratadas, preciso é definir o real significado dessa permissão, que implica no seu repasse para os devedores originais, não se equiparando a uma dação de carta branca facultando uma livre cobrança embutindo os juros realmente dispendidos mais uma margem de lucro extremamente exagerada, o que é ao mesmo tempo uma estupidez financeira, um alimentador inflacionário e uma agressão ao cidadão, que não pode tugir ou mugir, preso ao leonino contrato de adesão imposto pelos credores, obrigando-o a se submeter a essa extorsão sob o apelido de teoria dos juros flutuantes. No caso vertente como documentado de fls. 21 a 28 debitou a R ao A uma taxa mensal de janeiro a outubro de 2002 igual a 10,82% ao mês, enquanto o site do Banco Central informa que, no mesmo período, as taxas do chamado crédito pessoal bancário variaram de 5,06% a 5,44% ao mês. Está aí o exemplo vivo da ganância dos banqueiros explorando o desaviso do inexperiente cidadão que, iludido pelas facilidades do cartão, não procura um banco para tomar um empréstimo direto e quitar a dívida do cartão com um custo menor. Uma coisa é a cobrança de altos juros prefixados. Ninguém é obrigado a aceitar um contrato com a sua imposição. O comprometimento com valores previamente estabelecidos bilateralmente deve, em regra, ser prestigiado, mas, no caso do cartão de crédito, cuida-se de relação futura sob a contrapartida de um financiamento a custo flutuante deixado potestativamente a critério do credor. Trata-se de excelente instrumento de facilitação de gastos, incrementando negócios e possibilitando aquisições e pagamentos sem a imediata utilização do papel moeda e sem a necessidade do endividamento imediato. Entre-tanto, quando o portador excede a data do vencimento, e, por uma necessidade qualquer, é obrigado a assumir um saldo devedor, é nesse momento que se defronta com a taxa de juros escolhida pelo credor, sempre muito mais elevada do que a já alta do cheque especial e mais ainda do que a do crédito pessoal bancário. Por que isso?”
Recoloco o tema em discussão, através deste pequeno trabalho, propondo a redução via judicial da taxa mensal de juros dos contratos de cartão de crédito e cheque especial para o equivalente à média do “crédito pessoal”, o que não caracterizará qualquer absurdo ou quebra de contrato.