Edição

O Direito à indenização do hemofílico soropositivo

5 de janeiro de 2001

Compartilhe:

Trata-se de avaliar se hemofílicos, portadores do vírus HIV, causador da síndrome de Imunodeficiência Adquirida – AIDS, contaminados, em momento que não se pode precisar, através do tratamento da própria hemofilia, doença que exige constantes transfusões de sangue ou recebimento de hemoderivados, têm direito à indenização pelo dano sofrido.

Segundo o roteiro histórico resumido por Marco Fridolin Sommer Santos, a partir de 1967 os órgãos da Previdência Unificada, no Brasil, passaram a comprar sangue de bancos particulares, para uso em hospitais públicos e conveniados, prática essa que conduziu a uma especulação do sangue, durante os anos 70, por doadores “voluntários” de baixa renda e por um grande numero de pequenos bancos de coleta, que operavam sem qualquer padrão de ética, qualidade ou fiscalização.

Foi a Portaria Interministerial n. 7, de 30/04/80, que impôs uma reorganização total da atividade hemoterápica nacional, instituindo-se o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados – o Pró-Sangue -, tendo, em decorrência, sido criados hemocentros públicos, como base de um sistema de coleta de sangue de doadores voluntários, com vistas a processar e fornecer sangue e derivados gratuitamente ao sistema de saúde.

No inicio dos anos 80, porém, um novo fato veio a abalar os sistemas de hemoterapia do mundo inteiro: a GRID – primeiro nome da AIDS, surgida em 1981 e ate então tida como doença apenas de homossexuais -, foi também detectada em pacientes hemofílicos, confirmando as suspeitas de que a contaminação também se dava pelo sangue.

Até os idos de 1983, ante a ausência de testes apropriados para prevenir a transmissão do vírus na transfusão de sangue, uma das únicas medidas preventivas possíveis era a seleção de doadores de sangue, evitando-se aqueles que constituíam um risco para a transmissão da AIDS, o que era diligenciado no momenta da coleta do sangue, por médicos especializados, através de interrogatório sobre a vida do pretenso doador.

Trabalhando contra o tempo, chegou-se, em 1984, ao teste conhecido por ELISA – enzime-linked immuno-absorvent assay – que servia para analisar as amostras sanguíneas quanta a infecção e, experimentalmente, as doações de sangue. Esse teste somente passou a ser distribuído comercialmente a partir de 1985.

Já nessa época, porém, suspeitava-se que a utilização de produtos sanguíneos preparados a partir de pools de doadores, como é o caso típico do Fator VIII de coagulação liofilizado – utilizado em larga escala pelos hemofílicos – estivesse disseminando o vírus da AIDS entre os hemofílicos, o que veio a se confirmar, tendo os Índices de contaminação atingido percentuais bastante elevados em todos os países que dispunham de sistemas de hemoterapia desenvolvidos e bem estruturados, em percentuais que, não raro, ultrapassavam a 50% de hemofílicos soropositivos, inclusive no Brasil.

Através da Portaria Interministerial MPAS/MS nº 14, de 18/05/87, os Ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social determinaram que “a aplicação transfusional de sangue e hemoderivados de sangue, patrocinada com recursos previdenciários, fosse precedida pelos testes sorológicos necessários à detecção e confirmação da infecção pelo agente AIDS”.

Apesar dessa portaria, somente através da Lei n. 7.649, de 25/01/88, e que a realização dos testes para a detecção do vírus HIV passou a ser obrigatória.

O assunto obteve grande discussão na Assembléia Nacional Constituinte, tendo sido incluído o preceito contido no art. 199, § 1º, da Constituição Federal promulgada em 05/10/88, vedando todo tipo de comercialização de sangue, e o contido no art. 200, I, que atribuiu ao Sistema Único de Saúde, nos termos da lei, a participação na produção de hemoderivados.

A responsabilidade Civil

Em rápidas palavras, a responsabilidade civil consiste na obrigação de alguém reparar o dano injustamente causado a terceiros. Pode ser contratual (art. 1.056, do Código Civil), ou extracontratual, também chamada aquiliana (art. 159, também do Código Civil).

Quanto ao aspecto da atuação do causador do dano, pode ser subjetiva, quando baseada na culpa lata sensu, ou objetiva, quando independente de culpa. Destaque-se que a responsabilidade subjetiva e a regra e a objetiva a exceção, somente vigorando esta para os casos expressos em lei.

À Responsabilidade do centro de hematologia

A transmissão do vírus HIV por transfusão de sangue havida regularmente por hemofílicos, ao contrário da contaminação decorrente de contato sexual, tem, em principio, caráter contratual, haja vista que o paciente se dirige ao hospital para obter determinado produto – o sangue -, que lhe é ministrado pelo mesmo.

Por outro lado, os constantes avanços da medicina fizeram evoluir também o conceito de prestação de serviços médicos, deixando de ocorrer a singela contratação efetuada entre paciente e medico, para alcançar a contratação havida entre paciente e c1inica médica, na qual a obrigação passa a ser assumida pela empresa, ainda que a sua responsabilidade decorra de fato alheio, como no caso do medico que trata diretamente do paciente, do medicamento produzido por laboratório alheio, mas que é ministrado ao paciente como parte de seu tratamento hospitalar, ou do sangue que lhe é transfundido, por força também de recomendação dos médicos que o acompanham, e que foi colhido em locais diversos e repassado ao hospital. Em todos os exemplos, o tratamento é feito por terceiros, em nome da entidade hospitalar.

Pode acontecer, pois, que, dentro da clinica, seja causado um dano que decorra de um fato do serviço prestado por terceiro ao hospital – como é o caso de um erro médico -, como também um dano decorrente de um fato do produto – o caso de utilização de medicamento já vencido.

No caso dos hemofílicos soropositivos, entretanto, não se trata de erro ou falha de médico ou da equipe de enfermagem de algum Centro de Hematologia, mas sim de distribuição de sangue contaminado pelo vírus HIV, tratando-se, pois, de responsabilidade civil por fato do produto produzido por terceiro e utilizado pelo hospital.

A natureza terapêutica da atividade medica não raro conduz a utilização de tecidos, órgãos ou substâncias de origem humana, que podem também ser contidos na definição de produtos, fixada no § 12, do art. 32, do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que podem ser distribuídos e até mesmo importados ou exportados.

A partir dessa premissa, o sangue também é um produto. E se o sangue é um produto, seu usuário enquadra-se no conceito de consumidor, contido no art. 2º do referido código, estando, por conseguinte, por ele protegido.

De resto, essa proteção pelo Código de Defesa do Consumidor é mais ampla e mais moderna do que a prevista no Código Civil, vez que, sem excluir a responsabilidade contratual, adota também o regime da responsabilidade extracontratual pelo fato do produto, eliminando as exigências já ultrapassadas do Codigo Civil, não datasse ele de 1916.

Essa evolução pode ser resumida na observação do autor italiano Guido Alpa, segundo quem “nasce o problema de acertar se respeita ao produtor do frasco ressarcir o dano causado ao paciente ou se a responsabilidade diz respeito ao hospital que utilizou o frasco de sangue para realizar a transfusão”.

Ora, reza o art. 18, do CDC, que os fornecedores de produtos de consumo respondem solidariamente com os produtores pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam.

Tal regra equivale a dizer, nas palavras de Marco Fridolin Sommer Santos, que: “A simples existência do vírus HIV em produtos de origem humana caracteriza um vício intrínseco e oculto. A utilização desses produtos de origem humana, de acordo com a sua destinação social, e nociva à saúde, por transmitir o vírus HIV ao consumidor. Sem sombra de duvidas, trata-se de bens que, em decorrência da presença do vírus HIV, ‘tornam-se impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam… nos termos do caput do art. 18 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Resta saber se essa responsabilidade é também objetiva, da mesma forma que a responsabilidade do fabricante, prevista no art. 12.

Ora, no âmbito das relações de consumo, a imposição da responsabilidade na forma objetiva exerce função moralizadora, invertendo o ônus da prova e obrigando os envolvidos no ato do comercio a envidar seus maiores esforços na boa qualidade de seus produtos.

Por outro lado, exigir do consumidor a comprovação da culpa pelos fatos do produto conduziria à impossibilidade indenizatória, ante as dificuldades obvias de realiza-la.

Ademais, não haveria lógica num sistema que atribuísse ao fabricante responsabilidade objetiva e ao fornecedor responsabilidade subjetiva, especial mente em casos como o presente, que envolve a própria vida do consumidor, impondo-se, dessa forma, uma obrigação de resultado, e não de meio, ao submete-lô, na qualidade de hemofílico, a uma transfusão de sangue, única forma de mantê-lo vivo, não sendo admissível que essa sua única tabua de salvação é que, ao invés de salvá-lo, resultasse em sua condenação à morte, em razão da presença do vírus HIV.

Destaque-se, ainda, que as pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços públicos, como é o caso dos Centros de Hematologia, também respondem objetivamente pelos riscos decorrentes de sua atividade.

Assim, o Centro de Hematologia respondera objetivamente pelo fornecimento viciado de sangue, especialmente por se tratar de local especializado, o que lhe atribui uma responsabilidade ainda maior pelos produtos que utiliza, que devem corresponder ao esperado, trazendo saúde à sua clientela, e não mais um dano a ser tratado.

A responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público

É, via de regra, aplicável ao Estado a responsabilidade objetiva, tendo a doutrina evoluído desde a irresponsabilidade total do Estado – baseada na máxima inglesa “the King can do no wrong’, felizmente já superada – passando pelo conceito da responsabilidade com culpa, também já abandonado, em face das dificuldades evidentes de sucesso em demandas dessa ordem, e finalmente aportando na teoria da responsabilidade objetiva ou independente de culpa.

Por essa teoria, na forma mitigada do risco administrativo, a obrigação de indenizar surge do próprio até lesivo e injusto causado a vitima por um dos agentes do Poder Publico.

Nos dizeres do saudoso mestre Hely Lopes Meirelles: “Tal teoria, como o nome esta a indicar, baseia-se no risco que a atividade publica gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano através do erário, representado pela Fazenda’ Publica. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina, que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz a mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194 da CF de 1946.”

A Constituição outorgada em 1967, no art. 105, e a Emenda Constitucional de 1969, no art. 107, repetiram a redação da Carta de 1946, tendo a Constituição Federal atualmente em vigor reafirmado o princípio da responsabilidade objetiva do Estado, vale dizer: pela simples ocorrência da falta, ainda que anônima, do serviço público, responde a Administração, uma vez que esta assume, para consecução de seus fins, os riscos da execução da atividade (art. 36, § 6Q).

Em conseqüência desse principio consagrado em nosso Direito pátrio, basta ao prejudicado provar o dano e o nexo de causalidade entre aquele e a atividade estatal, ou, nos dizeres do eminente Desembargador Federal ora aposentado D’Andréa Ferreira, “a noção de culpabilidade e substituída pela de causalidade”.

A idéia é, assim, a de “socializar o ônus injusto recaindo sobre um ou alguns isoladamente; a vitima também não é culpada, e como foi a ação própria e direta da administração a causadora do mal, é mais justo, em tais casos, a divisão de custos pela coletividade, representada pelo ente público”.

Não se argumente que se trata de obrigação de meio, e, portanto, de responsabilidade civil subjetiva, vez que o que se examina aqui não é a imperícia de um determinado medico no atendimento dado a um determinado paciente, que, em decorrência veio a falecer.

Analisa-se, isto sim, a falta do produto, que ao invés de manter a vida do hemofílico, termina por servir de causa a sua contaminação pero mortal vírus da AIDS.

Por outro lado, não é “correto dizer, sempre, que toda hipótese de dano proveniente de omissão estatal será encarada, inevitavelmente, pelo angulo subjetivo. Assim o será quando se tratar de omissão genérica. Não quando houver omissão específica, pois aí há dever individualizado de agir.”

Tampouco isenta os órgãos públicos de seu dever de indenizar o fato de a doença ser desconhecida, à época da possível contaminação, pois esta a se apreciar uma questão de justiça distributiva: toda a sociedade deve, por solidariedade, comparecer para amenizar o dano injusto sofrido pelos hemofílicos, não suportados pelos demais membros da coletividade, compensando-se, com isso, a desigualdade por eles havida.

É, pois, razoável a socialização do prejuízo, dentro dos c1aros ditames do principio da solidariedade: as vitimas não foram imprudentes, imperitas ou negligentes, e o dano decorreu de transfusão de sangue efetuado em hospital privado prestador de serviço público ou em hospital público.

Cabível, pois, a indenização aos hemofílicos soropositivos, contaminados pela transfusão de sangue.