A Constituição e a MP 873/2019

8 de abril de 2019

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No dia 1o de março deste ano foi editada pelo Presidente da República a Medida Provisória no 873/2019, que pretende disciplinar a organização e administração financeira das entidades sindicais, exigindo que qualquer contribuição sindical facultativa ou mensalidade somente poderão ser cobradas e pagas mediante prévia, voluntária, individual e expressa autorização do empregado, sobrepondo-se à autorização assemblear e aos estatutos da entidade sindical.

Além disso, a MP 873/2019 estabelece que a cobrança das contribuições facultativas ou das mensalidades só poderá ocorrer, exclusivamente, na forma de boleto bancário ou equivalente eletrônico. Nesse contexto, cabem três abordagens em relação às normas contidas na MP: i) do ponto de vista formal; ii) do mérito, e iii) das ideias.

Do ponto de vista formal do processo legislativo, a MP 873/2019 padece de inconstitucionalidade por não observar os requisitos exigidos para edição da medida provisória, quais sejam, a presença de urgência e relevância à autorizar tal proposição legislativa, conforme exige o art. 62 da Constituição Federal (CF): “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.

No presente caso, não se vislumbra nenhuma circunstância de necessidade imperiosa na sociedade, que não foi objetivamente demonstrada na exposição de motivos da MP 873/2019. Isto porque não se identifica nenhuma situação extraordinária ou de anomalia no sistema jurídico, social e político, tampouco de anormalidade ou ruptura no plano da vida real quanto à matéria a autorizar a edição de medida excepcional. Até porque é recente o tratamento parcial da matéria no plano legislativo pela Lei no 13.467/2017.

Aliás, ao contrário e a revelar a inexistência de situação nova de excepcionalidade, a MP 873/2019 é dissonante com os princípios e normas fixadas no recentíssimo Decreto no 9.571, de 21/11/2018, que ao estabelecer a responsabilidade do Estado brasileiro com a proteção dos Direitos Humanos laborais, fixa nas alíneas “a” e “b” do art. 7o que compete às empresas: “II – observar os direitos de seus colaboradores de: a) se associar livremente, b) afiliar-se a sindicato de trabalhadores”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) admite a declaração de inconstitucionalidade de medida provisória se demonstrado o abuso da competência normativa do chefe do Poder Executivo quando a ausência dos requisitos constitucionais de relevância e urgência se revele evidente (cfr. ADI 4717, ADI 2527-MC, ADI 4029 e ADI 2213-MC), face a violação do princípio da separação dos poderes (art. 2 c/c art. 62 da CF).

Em relação ao mérito, a MP 873/2019 atenta contra os princípios constitucionais da liberdade e autonomia sindical, esvaziando a densidade dos preceitos constitucionais que garantem a autonomia e a liberdade sindical, ao proibir ao Estado sua intervenção e interferência (incisos I, III e IV do art. 8o e inciso VI do art. 37 da Constituição Federal) na forma de organização e administração financeira das entidades sindicais.

Com efeito, o caput e os incisos I, III e IV art. 8o da CF são expressos nesse sentido:

 Art. 8o É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;

III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

IV – a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”.

A forma de organização e administração financeira interna relativa ao modo pelo qual se fará a cobrança de mensalidade facultativas dos seus associados é matéria própria e essencial da liberdade e autonomia sindical, a ser definida pelo estatuto da entidade sindical.

As medidas propostas pela MP 873/2019 afrontam a autonomia e a liberdade sindical tendo em vista que, de forma auto evidente, criam obstáculo ao funcionamento das entidades sindicais ao exigir a adoção de sistema de boleto bancário para cobrança de qualquer contribuição, inclusive das mensalidades, devidas pelos trabalhadores filiados aos sindicatos.

Registre-se que o inciso IV do art. 8o da CF menciona expressamente a cobrança através de desconto em folha, o que revela outra inconstitucionalidade auto evidente.

Embora o referido preceito constitucional diga respeito especificamente à contribuição confederativa, é certo que a forma de cobrança das demais contribuições se localiza no mesmo princípio da regra constitucional que, igualmente, só é devida pelos filiados (Súmula vinculante no 40 do STF).

Já o inciso VI do art. 37 da CF, em relação aos servidores públicos, estabelece que: “é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical.”

Destaque-se que, pela Portaria no 110/2016 do Ministério do Planejamento autorizando o desconto em folha das contribuições dos servidores públicos mediante a realização de convênio com órgão operacionalizador, os custos são pagos pelo próprio sindicato, no oposto do que consta nos considerandos da MP 873/2019.

Vale ainda mencionar o inciso XVIII do art. 5o da CF, que veda, especificamente, a interferência estatal no quesito funcionamento das associações, inclusive de classe, como são as entidades sindicais: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.

Cumpre mencionar que, igualmente do ponto de vista individual do próprio trabalhador, estaria sendo interditada, sem nenhuma justificação plausível, a sua manifestação de vontade e de iniciativa, ou seja, a sua autonomia da vontade e liberdade sindical e mesmo de contratar, garantida pelo inciso IV do art. 1o da CF: “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, bem como pelo inciso IV do art. 5o da CF: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Realmente, a interferência indevida do Estado na autonomia da vontade das partes se dá não apenas no plano coletivo da autonomia privada coletiva, ou da liberdade e autonomia da organização sindical, mas, também, no plano individual, pois interdita a vontade do indivíduo desautorizando que o mesmo regule conforme sua livre iniciativa e manifestação de vontade ajuste especifico com particular.

Finalmente, no plano das ideias, uma situação de perplexidade. Independentemente da própria inconstitucionalidade que envolve o conceito e a possibilidade prevista pela Lei no 13.467/2017, do negociado prevalecer sobre o legislado em uma relação que envolve subordinação – que por conta dessa condição especial é que se justifica a prevalência do legislado (caput do art. 7o da CF) – o fato é que a MP 873/2019 estabelece que o legislado prevalece sobre o negociado, justamente, numa relação entre sindicato e trabalhador que não envolve a subordinação.

As entidades sindicais foram escolhidas como principal inimigo a ser abatido, não obstante já estarem na defensiva por conta da reforma trabalhista que extinguiu a obrigatoriedade do imposto sindical, bem como pelo desemprego estrutural.

Claro é o objetivo da MP 873/2019, para benefício do mercado, de estabelecer uma estrutura sindical debilitada, que não permita o enfrentamento coletivo por melhores condições de trabalho, a partir do trabalhador isolado, sem identidade de classe e sem vínculos de pertencimento a uma coletividade maior.