A jurisdição arbitral e o CPC/15: Breve abordagem à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição pública

22 de janeiro de 2019

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O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) instituiu definitivamente a arbitragem como modalidade jurisdicional, consoante se colhe do seu art. 3o, § 1o, modalidade esta que já se encontrava legislada pela Lei no 9.307/1996 e alterações posteriores feitas pela Lei no 13.129/2015.

Como regra, a jurisdição civil comum não pode rever ou discutir o mérito das decisões da jurisdição arbitral, vez que, como visto, tratam-se de funções judicantes paralelas, sendo uma disciplinada pelo processo civil e outra pela legislação extravagante, não havendo, necessariamente, uma hierarquia entre elas.

A arbitragem surgiu, então, como uma forma alternativa de resolução dos conflitos, colocada ao lado da jurisdição tradicional. Consoante Arenhart (2005), sua tônica está na tentativa de contornar o formalismo do processo tradicional, procurando mecanismo mais ágil para a solução das controvérsias subjetivas.

Ademais, a arbitragem pode representar opção para solução mais apropriada de muitas situações concretas de litígio. Com efeito, o fato de que o árbitro possa ser pessoa de outra área, que não a jurídica, pode contribuir para que se obtenha decisão mais adequada e com maior precisão. Não se olvida, ainda, que contribui para desafogar o Poder Judiciário e retirar a formalidade das controvérsias.

Cretella Júnior (1998) descreve a arbitragem como:

“Instituto que pretende abranger todas as espécies desta figura, ainda não comprometida por nenhum ramo da ciência jurídica, tratando-se de sistema especial de julgamento e com força executória reconhecida pelo Direito comum, mas que a esse subtraído, mediante o qual, duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, de Direito Privado ou de Direito Público, escolhem de comum acordo a quem confiar o papel de resolver-lhes pendência, assumindo os litigantes em aceitar e cumprir a decisão proferida”.

Na verdade, atualmente a relação que se conforma entre uma e outra jurisdição é a de cooperação, bastando para isso um breve lançar de olhos para o novo instrumento de comunicação previsto no CPC, a saber, a carta arbitral, positivada pelo Código no art. 237, inciso IV, ao lado das cartas precatória, rogatória e de ordem, pela qual o juízo arbitral solicita que órgão do Poder Judiciário “pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato objeto de pedido de cooperação judiciária, inclusive os que importem efetivação de tutela provisória”.

Em que pesem tais ilações, todavia, acerca da impossibilidade de revisão, pelo Poder Judiciário e pela Justiça comum, do mérito das decisões do juízo arbitral, e da relação de cooperação entre o juiz e o árbitro, a conclusão deve ser sempre temperada à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição pública, previsto no art. 5o, inciso XXXV da nossa lei maior, e que sabidamente giza: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Nesse quadrante, Nelson Nery Junior obtempera:

“O que não se pode tolerar por flagrante inconstitucionalidade é a exclusão, pela lei, da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se pode ir à Justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional”.

E mais adiante:

“Seria inconstitucional a LArb (Lei da Arbitragem) se vedasse à parte o acesso ao Poder Judiciário, instituindo, por exemplo, casos de arbitragem obrigatória. Como não o fez, não há nenhuma inconstitucionalidade em permitir às partes a escolha entre o juiz estatal e o arbitral para solucionar a lide existente entre elas”.

Hodiernamente, não há mais fundamento para a discussão sobre a constitucionalidade da arbitragem, que está sedimentada tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em virtude dela ser opcional (diante da disponibilidade do direito veiculado) e não obrigatória. A obrigatoriedade, portanto, é que a tornaria inconstitucional.

A impossibilidade de revisão do mérito arbitral pela jurisdição civil, todavia, não significa a inação desta, ou absoluta não intervenção, quando se trata de aspectos ligados à validade da decisão oriunda da jurisdição arbitral ou observância de direitos de índole constitucional.

Com efeito, em que pesem as premissas postas, a jurisdição pública não deve renunciar ao poder-dever de controlar a legalidade e a constitucionalidade do procedimento arbitral, o que não se confunde a toda evidência com rever a questão de fundo decidida pelo árbitro com base nos termos da convenção fixada entre as partes.

É que os limites do poder decisório do árbitro se escoam na aplicação das regras do jogo preestabelecidas pelos sujeitos da relação no termo/convenção de arbitragem, para a resolução de eventual pretensão resistida in concreto, podendo eventualmente ser questionada a lisura e a observância das regras constitucionais – em sua eficácia horizontal – pertinentes ao procedimento arbitral, perante a jurisdição civil.

Assim é que, v.g., hipóteses de inobservância dos limites da convenção de arbitragem e dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa comportam pleno controle pela jurisdição comum, ex vi do disposto pelos artigos 21, § 2o; 32, incisos IV e VIII; e 33, todos da Lei no 9.307/96.

Senão confira-se:

“Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. […]

§ 2o Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.”

Art. 32. É nula a sentença arbitral se: […]

IV – for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; […]

VIII – forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2o, desta Lei.

Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei.

Vale ressaltar, é verdade, que diante do compromisso arbitral não pode o juiz dispor acerca do direito controvertido de forma diversa da que foi disposta pelo árbitro, mas pode, com toda certeza, aferir se a sentença arbitral foi além dos limites da convenção e/ou se o procedimento em si foi obediente ao devido processo constitucional.

Nesse sentido, por exemplo, colhe-se a ementa do seguinte julgado, de minha relatoria:

Ementa: Direito Processual Civil e Direito Arbitral. Legislação extravagante. Apelação cível. Ação declaratória de nulidade de sentença arbitral. Alegação de exasperação dos limites da convenção pelo árbitro e inobservância do contraditório e da ampla defesa. Teses passíveis de controle jurisdicional. Presença de pressupostos processuais e do interesse de agir. Sentença terminativa com conteúdo de mérito. Improcedência liminar do pedido fora das hipóteses do art. 332 do CPC. Sentença desconstituída. Recurso provido, tutela de urgência. Presença dos requisitos legais. Deferimento. Suspensão da execução da sentença arbitral. 1. O julgamento liminar de improcedência do pedido, prefacialmente à instauração do contraditório, somente se admite nas hipóteses taxativamente previstas pelo art. 332 do CPC. 2. Hipótese em que, a despeito da conclusão exposta na sentença (pela extinção do processo), sob o aspecto material albergou-se autêntica improcedência macroscópica do pedido, eis que as teses iniciais foram valoradas uma a uma de forma direta e objetiva no sentido da inexistência do direito alegado, donde se infere manifesto ‘erro in procedendo’ na prolação do decreto sentencial. 3. A inobservância dos limites da convenção de arbitragem e dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa comportam plena discussão e controle pela jurisdição comum, ex vi do disposto pelos artigos 21, § 2o; 32, incisos IV e VIII; e 33, todos da Lei no 9.307/1996. 4. Polêmica envolvendo a subsistência do interesse de agir em tais hipóteses, na qual deve a conclusão meritória ocorrer, se for o caso, após aprofundamento e proficiente da instrução processual, encetada a estabilização da lide. 5. Presentes os requisitos legais, probabilidade do direito e risco de dano grave ou de difícil reparação, deve ser mantida a tutela de urgência, destinada à suspensão da execução da sentença arbitral, até que exaurida a cognição acerca da matéria.” (TJMG – Apelação Cível no 1.0000.18.001125-6/004, rel. Desembargador Otávio de Abreu Portes. Julgado: 03/10/2018. Grifo inexistente no original).

Perceba que tal possibilidade não encerra a possibilidade da reversão da decisão do mérito do árbitro pelo juiz de Direito, mas tão somente outorga a este o poder de investigar a observância dos limites da convenção e do devido processo constitucional por aquele.

Em conclusão, na arbitragem as regras e a solução da pendência são concluídas em caráter privado, contudo, sob o manto do próprio Estado, legislador primário do instituto. O procedimento arbitral não é processo estatal, mas processo estatalmente disciplinado, ordenado.

Destarte, apesar do aparente distanciamento do órgão jurisdicional convencional, quando na verdade se estabelece uma relação de autêntica cooperação entre as jurisdições, a longa manus estatal sempre alcançará a sentença arbitral que violar postulados essenciais ou, enfim, que venha a causar lesão a direito individual, tais como previstos no texto constitucional.

Referencias bibliográficas__________________________

ARENHART, Sérgio Cruz. Breves observações sobre o procedimento arbitral. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, nº 770, 12/08/2005. Disponível em <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Arenhart%20-%20formatado.pdf>. Acesso em 12/10/2018.

CRETELLA JÚNIOR, José. Conceito categorial de arbitragem.
In: O Direito Internacional no terceiro milênio: Estudos em homenagem ao Professor Vicente Marota Rangel, coord. Luiz Olavo Baptista e José Roberto Franco da Fonseca. São Paulo, LTR, 1998, pp. 763-775.