Condomínio edilício e a alienação de frações de utilização exclusiva pelo condômino

16 de junho de 2014

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otavio-e-rubens1. Introdução: objetivo do artigo
O presente artigo tem por objetivo ilustrar o panorama atual do regime jurídico dispen­sado às frações de propriedade de utilização exclusiva em condomínios edilícios, especifica­mente no aspecto da sua possível alienação pelos condôminos, trazendo alguns breves apontamentos sobre a natureza dos institutos correlatos e pequenas anotações históricas a fim de ilustrar o contexto trazido à discussão, obviamente sem a pretensão de esgotar o conteúdo sob análise.

2. Natureza e personalidade jurídica do condomínio edilício
No que se refere à natureza jurídica do condomínio edilício, conclui Caio Mário da Silva Pereira pela inadequação da sua aproximação com os institutos da servidão ou da sociedade, por exemplo. Segundo ele, trata-se de instituto novo, advindo da fusão dos conceitos de domínio exclusivo e de propriedade comum, que se aglutinam para a formação de um todo indissolúvel, unitário e complexo que difere da simples justaposição dos conceitos (2002, p.92-93).

Outro ponto que merece rápida abordagem é a questão da personalidade jurídica do condomínio edilício. Em que pese a existência de entendimento em sentido contrário, perfilhamos da doutrina tradicional, que não reconhece ao condomínio personalidade jurídica distinta dos condôminos, vez que neste caso haveria a apropriação de uma cota imaterial de uma pessoa jurídica, e não sobre fração do solo ou da edificação, em total subversão de sua natureza. Nesse sentido, colhemos o entendimento de Caio Mário da Silva Pereira (op. cit., p.89).

A doutrina e a jurisprudência admitem, a despeito disso, a personalidade ou a capacidade processual do condomínio para atuar ativa ou passivamente em juízo, representado pelo síndico (artigo 12, inciso IX, do CPC). Vale dizer, admite-se a possibilidade de o condomínio demandar ou ser demandado em seu próprio nome, em que pese a inexistência de personalidade de direito material.

O condomínio é, sob tal perspectiva, um ente despersonalizado, vale dizer, conquanto não seja pessoa, é sujeito de direitos e deveres correlacionados com as suas finalidades naturais (p.ex., contratar funcionários, realizar obras e as demais atividades afins), podendo exercê-los ou ser exigido judicialmente, porque dotado de capacidade processual.

3. Código Civil de 2002 e a Lei no 4.591/64
A Lei no 4.591/64, conforme informa seu próprio preâmbulo, dispõe sobre o condomínio em edificações (artigos 1 a 27) e as incorporações imobiliárias (artigos 28 em diante).

Posteriormente, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, foi inaugurado capítulo nomeado “Do Condomínio Edilício”, que trata exatamente dos condomínios em edificações, portanto matéria idêntica àquela disciplinada, em parte, pela Lei no 4.591/64. Inexistia qualquer tratamento específico da matéria, conferido pelo Código até então vigente.

Desse modo, surgiu na doutrina e na jurisprudência discussão acerca da relação existente entre o novel Código e a Lei no 4.591/64, questionando-se a ocorrência da revogação tácita desta por aquele.

No entanto, considerando que tanto o Código (em tese, lei geral) quanto a Lei no 4.591/64 (legislação especial) versam exatamente sobre o mesmo conteúdo jurídico, a saber, o condomínio edilício ou em edificações, julgamos impossível a aplicação do critério de especialidade para definir a primazia de uma sobre outra, vez que neste caso inexiste na norma dita especial qualquer partícula especializadora da norma dita geral, pelo que não há que se falar em qualquer relação de especialidade entre elas.

Há sim, a nosso sentir, um diálogo de fontes, sob a forma de complementaridade, não ficando excluída a incidência da norma extravagante pela superveniência do Código, e evidência disso é o seu artigo 1.332, o qual dispõe por exemplo que, com relação à instituição do condomínio edilício, não se aplicam somente suas regras, mas também as previstas na lei especial, que no caso correspondem à Lei no 4.591/64.

4. A alienação de frações de utilização exclusiva pelo condômino: panorama jurídico atual
O artigo 1.331 do Código Civil vigente trata dos requisitos do condomínio edilício. O caput normatiza que no condomínio ‘pode haver’ partes de propriedade exclusiva e partes comuns, senão vejamos:

Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos.

Nada obstante, como bem observa Francisco Eduardo Loureiro (2008, p. 1.299), a verdade é que pela própria natureza do condomínio não apenas pode como deve haver ali partes de utilização exclusiva, vinculadas de modo indissociável à fração ideal de terreno.

Dito isso, passando à análise do § 1o do mesmo artigo, a redação original do Código Civil de 2002 dispunha nos seguintes termos:

§ 1o As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas ou abrigos para veículos, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários.

Todavia, a Lei no 12.607/12 modificou o texto do Código no ponto em destaque, quando então passou a vigorar a seguinte regra:

§ 1o As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio. (destaquei)

Fazendo o cotejo da alteração promovida pelo legislador, vê-se que o mesmo quis dar tratamento específico aos abrigos de veículos, ou vagas de garagem, excluindo-lhes do tratamento geral dispensando às partes de utilização exclusiva que, via de regra, podem ser livremente alienadas, gravadas ou locadas pelo condômino a terceiros, sem maiores restrições.

Pois bem. Com a redação atual do Código, conclui-se que os proprietários ou possuidores de abrigos para veículos ou vagas de garagem que quiserem alugá-las ou vendê-las somente poderão fazê-lo a pessoas não estranhas ao condomínio.

Ponto de contato entre as duas disciplinas (do Código revogado e do atual) é que entre condôminos inexiste e inexistia qualquer restrição à disposição patrimonial destas frações de propriedade, que podiam, portanto, livremente gravá-las, permutá-las ou por qualquer modo aliená-las.

Nesse sentido, julgamento de minha lavra, cuja ementa segue abaixo, em caso onde, sob a batuta do Código revogado, reputei válida a permuta realizada entre os então proprietários dos abrigos para veículos, senão vejamos:

EMENTA: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO E OBRIGAÇÃO DE FAZER. ADITAMENTO DA CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO E ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PERMUTA DE VAGAS DE GARAGEM. NEGÓCIO VALIDAMENTE ENTABULADO ENTRE OS PROPRIETÁRIOS ANTERIORES. INEXISTÊNCIA DE VONTADE VICIADA, DEFEITO FORMAL OU ILICITUDE DO OBJETO. VALIDADE. NULIFICAÇÃO DO NEGÓCIO. IMPOSSIBILIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. (…). 2. No condomínio edilício, as partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas, etc., com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários – artigo 1.331, § 1o, Código Civil. Lícita portanto é a disposição de permuta das vagas de garagem das unidades imobiliárias, validamente concretizada pelos respectivos proprietários, sem a necessidade da intervenção de outros condôminos. 3. Não verificado qualquer vício de consentimento, ligado ao objeto ou de ordem formal nos atos jurídicos impugnados, o caso é de improcedência dos pedidos de nulificação de tais negócios. (TJMG – Apelação Cível no 1.0024.10.171284-2/001. Relator Des. Otávio de Abreu Portes. Julgado: 13.03.2013. Acórdão publicado: 26.3.2013 – unânime. Destaque inexistente no original).

Persiste crítica que reputamos de sonora importância na técnica legislativa dispensada à Lei no 12.607/12. Veja que o legislador utilizou a expressão “pessoas estranhas ao condomínio” para restringir o direito à alienação dos abrigos para veículos. Todavia, a redação do dispositivo não foi a melhor, e assim julgamos porque a expressão “pessoa estranha” impregna-se de subjetividade e propicia interpretações de toda ordem, o que por certo mitiga a eficácia da norma.

Afinal, o que seria uma pessoa estranha ao condo­mínio para os fins do artigo 1.331, § 1o, do Código Civil? Um vizinho, por exemplo, bem conhecido nas cercanias, ou um funcionário do próprio condomínio, poderia ser considerado não estranho, a ponto de poder adquirir ou locar uma vaga de garagem de um condômino, independentemente de expressa autorização na convenção?

Interpretamos que a mens legislatoris traduzida pela Lei no 12.607/12 foi principalmente a preocupação com a segurança dos condôminos, de fato prejudicada quando se permitia, no regramento anterior, que pessoas de fora do condomínio pudessem adentrar nas suas dependências para estacionar seu veículo provocando, eventualmente, um descontrole no acesso à parte interna do edifício.

Assim sendo, torna-se evidente que a redação legal, especificamente quanto à expressão “pessoas estranhas” não exprimiu adequadamente a disciplina da matéria, pelo que seria mais apropriada a utilização do conceito de “não possuidor” em substituição, já que este termo, juridicamente técnico, possui aferição objetiva nos termos do artigo 1.196 do Código Civil:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Outra crítica que se pode pensar ao artigo em estudo reside no fato de que, da forma como redigido, pode-se interpretar que somente alienações onerosas, ou o aluguel da vaga de garagem estão encartados na proibição contida no artigo 1.331, § 1o, do Código Civil, ficando excluídas as disposições gratuitas da propriedade.

Com efeito, da forma como redigido o texto legal, acaso adotada absurda interpretação literal, não seria difícil concluir que um eventual comodato da vaga de garagem não seria alcançado pela norma sob enfoque, já que neste tipo de relação jurídica não há alienação e nem locação. Pensamos, sempre orientados pelo espírito da lei, que a redação mais apta a exprimir de forma eficiente a vontade do legislador seria “(…) exceto os abrigos para veículos, cuja utilização não poderá ser cedida, ainda que de forma gratuita (…)”.

Em que pese tais críticas à técnica legislativa, pensamos que a lei civil, motivada pelo viés da segurança pública, inaugurou importante restrição ao direito de propriedade e à autonomia privada dos condôminos ao limitar a alienação de partes específicas de exclusiva utilização em condomínios edilícios, a saber, os abrigos para veículos, impondo mitigação necessária ao exercício de tais direitos no contexto social atual.

Conclusão
Tecidas tais singelas considerações sobre o tema abor­dado, pensamos que a Lei no 12.607/12 trouxe impor­tante modificação no contexto dos condomínios edilícios, imbuída da ideia da segurança. É certo que, embora reflita restrição à propriedade e à autonomia privada, conceitos tão caros à privatística civil, é igualmente verdade que não se pode ignorar a tendência atual de tais institutos, no sentido da sua função social, ou seja, não mais se tolera seu exercício de forma desligada do bem-estar e, especificamente no caso, da segurança coletiva.

Referências bibliográficas ___________________________________________________

PEREIRA. Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 10a Edição. Editora Forense, 2012.
LOUREIRO. Francisco Eduardo. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador Cézar Peluso, 2a Edição. Editora Manole, 2008.