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A Justiça Restaurativa e o Código de Processo Penal

21 de dezembro de 2021

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Busca-se por meio dessas linhas trazer algumas reflexões iniciais sobre a possibilidade de se legislar a respeito de Justiça Restaurativa, especialmente de incluir sua previsão no Código de Processo Penal, razão pela qual é importante ter em mente nortes seguros a respeito do que é e o que propõe a Justiça Restaurativa.

Sabemos que se trata de um conceito fluido, mas existem pilares estruturais a serem observados. Segundo Salm, a JR, na sua forma ideal, trata de um “conjunto de princípios e práticas que nos permite, por meio de participação, engajamento e deliberação, construir coletivamente a Justiça” (SALM, 2018).

O autor elenca cinco princípios. São eles: 1. relações, 2. valores humanizantes, 3. responsabilidade individual e responsabilidade coletiva, 4. tratamento do dano e 5. fortalecimento da comunidade.

A base da JR está nas relações, nas relações havidas entre nós, seres humanos, bem como entre nós e o meio ambiente que nos acolhe, permitindo a nossa existência. Essas relações devem ser consideradas inclusive sob o aspecto intergeracional, interligando passado, presente e futuro.

Nas palavras de Elliot, “Justiça Restaurativa é sempre caracterizada como sendo relacional, de modo que a fonte tanto do dano como da cura dos indivíduos está nas relações” (ELLIOT, 2018).

Os valores humanizantes são os balizadores que nos guiam, que permitem justamente extrair o que há de melhor em nosso ser. Quando falamos em valores, não se pode deixar de pensar no respeito, chave para amparar todos os demais, tanto que Zehr, materializando em uma ilustração, traz o respeito como base em que se colocam os demais elementos da JR (ZEHR, 2015). 

As nossas ações são de fato baseadas nos nossos valores humanizantes, são eles que impulsionam o nosso agir, muito mais do que uma regra posta. 

A responsabilidade está diretamente ligada à conscientização, que parte do reconhecimento da prática de um fato e do entendimento a respeito do que ele causou, de que forma reverberou, tanto para aquele que sofreu seus efeitos diretos, bem como para aqueles que sofreram efeitos reflexos, mas a responsabilidade não está aí limitada. 

Existe um olhar ampliado, identificando as corresponsabilidades de todos os envolvidos que de alguma forma contribuíram para que esse fato tivesse lugar, inclusive o Estado, a corresponsabilidade coletiva.

O tratamento do dano, por sua vez, está ligado às necessidades dos envolvidos. Interessante ter em conta que as próprias necessidades podem ainda não estar evidentes, sendo necessário percorrer um caminho para essa compreensão, o que se dará no bojo do procedimento restaurativo, com o compartilhamento de narrativas pessoais. Certo é que muitas vezes o tratamento do dano não tem qualquer ligação com reparação econômica e também não se resume a restabelecer ou restaurar uma situação anterior.

Aqui é fundamental ser trabalhada a ideia da transformação do conflito para que se possa ir além, olhando para todas as suas dimensões, através de um profundo processo de reflexão, que cure feridas e cuide das causas motivadoras da violência. Mas a chave para a transformação é manter um viés proativo e visualizar o conflito como um potencial catalisador de crescimento (LEDERACH, 2012).

O último princípio diz respeito ao fortalecimento da comunidade, aqui entendido como teia de relações. Em um primeiro momento tem a ver com as pessoas envolvidas, quem praticou ou sofreu os efeitos do comportamento danoso, aqueles que o apoiam, bem como a comunidade mais próxima. Entretanto, essa potência de fortalecimento da comunidade também se espraia, a sociedade também sente seus efeitos através da reverberação do restabelecimento do tecido social antes rompido.

As práticas da Justiça Restaurativa permitem a efetivação desses princípios e pressupõem a existência de facilitadores muito capacitados para bem conduzirem esse caminho. Elas são artesanais e devem ser conduzidas com muito cuidado, pois qualquer processo que tenha poder enorme para o bem poderia inerentemente ter o mesmo poder para causar dano (PRANIS, 2010). 

Com essa premissa estabelecida, temos dois sistemas distintos:

O sistema posto, a Justiça Criminal, que é resultado de muitas conquistas, mas que vem se mostrando insuficiente para dar conta dos anseios da sociedade. Esse sistema está fundado na lógica da culpa e da punição – lógica essa na qual crescemos e está tão sedimentada na sociedade.

Por outro lado, temos o sistema da Justiça Restaurativa, que se funda em princípios e valores e está estabelecido a partir das relações, na busca do que há de melhor na essência de cada um. 

Na JR são abertos espaços de reflexão para que haja a percepção de necessidades, a conscientização e responsabilização ativa não apenas de um indivíduo, dele inclusive, mas também da comunidade, à medida que comportamentos não são vistos como fatos isolados, mas como o resultado da conjugação de diversos fatores, inclusive de violências estruturais que perpassam a realidade, muitas vezes implícitas.

Tudo isso se dá através do mergulho em águas profundas, entendendo e trabalhando as dimensões do conflito, quais sejam, a dimensão relacional, que tem dois enfoques, tanto interno, eu comigo mesmo, e externo, eu com o outro, bem como as dimensões institucional e social.

Isso não é uma proposta simples, é um processo de maturação, realmente uma proposta de transformação da convivência.

Voltando ao sistema posto, quando alguém responde a um processo criminal, o próprio jogo adversarial estimula a negação do comportamento, o que acaba por gerar alienação (ZEHR, 2015). Além disso, aqui a vítima é vista como mero meio de prova, sem receber atenção.

Na JR são aquelas pessoas diretamente envolvidas no conflito e os membros da comunidade que vão refletir e ressignificar o que aconteceu, porque aconteceu e o que isso causou, cocriando propostas que façam sentido, que acolham as necessidades e tratem os danos e com as quais possam se comprometer.

Fica claro que são lógicas diametralmente opostas, mas que podem coexistir, desde que uma não busque cooptar a outra, ou seja, que a Justiça Criminal não busque fagocitar a Justiça Restaurativa.

Isso significa dizer que colocar a previsão a respeito da Justiça Restaurativa dentro do Código de Processo Penal (CPP) traz um grande risco de fagocitose da JR se não for bem preservada toda sua autonomia, sua racionalidade substantiva própria, pondo em risco a sua potência de transformação.

É possível, entretanto, a previsão da Justiça Restaurativa no CPP sem esses riscos? Existe uma possibilidade, mas para isso é fundamental que sejam preservados os princípios e os valores da JR na sua inteireza, na sua completude, sem que ela venha a ser colocada como uma caixinha do sistema posto como mero abrandamento de pena.

Propor JR simplesmente para abrandar pena significa dar com uma mão e tirar com a outra. A JR busca extrair o que há de melhor em cada um, despertando conscientização, responsabilização e vontade de estar em boas relações. Enquanto que falar em punição significa causar dor de forma autorizada pelo Estado, retroalimento a violência.

Essa violência nos levou ao estado de coisas inconstitucional reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.

É isso que queremos? Eu realmente acredito que não.

Acredito na possibilidade de se resguardar toda a racionalidade da JR, de modo a positivá-la com a sua proposta aberta, reconhecendo todo seu potencial transformador, tendo em conta que o procedimento restaurativo é artesanal e desenvolvido sob a ética do cuidado, que não busca números, mas sim qualidade.

Assim, o ponto fundamental é preservar os princípios e valores da JR, respeitando sua autonomia e a possibilidade de que haja efetiva cocriação no caso, na busca do valor Justiça, permitindo e efetivando, assim, a construção efetiva de uma sociedade livre, justa e solidária! 

Referências_____________________________

ELLIOT, Elizabeth M. “Segurança e Cuidado: Justiça Restaurativa e sociedades saudáveis”. Tradução de Cristina Telles Assumpção. São Paulo: Palas Athena; Brasília: ABRAMINJ, 2018.

LEDERACH, John Paul. “Transformação de conflitos”. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.

STOUT, Margaret; SALM, João. “What restorative justice might learn from administrative theory”. Contemporary Justice Review, https://doi.org/10.1080/10282580.2011.565978, 2011. 

PRANIS, Kay. “Processos circulares de construção de paz”. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2010.

SALM, João. Anotações de aula no Grupo de Estudos realizado na EMAG – Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, apud Kayingo, Gerald. Hass, Virginia McCoy. The Health Professions Educator. New York: Springer Publishing Company, 2018.

ZEHR, Howard. “Justiça Restaurativa”. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2015.