A Lei da Ficha Limpa e a inelegibilidade

2 de janeiro de 2024

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Introdução

O presente artigo trata da neblina que paira sobre os reflexos eleitorais advindos com a Lei da Ficha Limpa (Lei no 135/2010), que trouxe reformas significativas na Lei Complementar no 64/1990, que versa sobre a inelegibilidade eleitoral.

A Constituição Federal estipula restrições em certas circunstâncias que a sociedade julga inadequadas para mandatários, traçando situações negativas que excluem do processo seletivo aqueles que incidem nas hipóteses determinas no art. 14, §§ 4, 5, 6, 7 e 9 da Carta Maior.

Em decorrência do comando Constitucional, outras hipóteses de inelegibilidade podem ser instituídas sob forma de Lei Complementar, como a LC no 64/1990, que versa sobre as inelegibilidades infraconstitucionais. Nesta linha, quem incorra nas hipóteses de inelegibilidade terá restrições ao exercício de seus direitos políticos e será impossibilitado de exercer o pleno gozo de sua capacidade eleitoral passiva, ou seja, estará impossibilitado de se candidatar a cargo político.

Assim, passamos a pormenorizar o entendimento da Corte Eleitoral de São Paulo e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no julgamento de registro de candidatura de pretenso candidato a cargo eletivo, cujas contas foram rejeitadas pelo órgão competente, incorrendo no art. 1o, inciso I, alínea G do Lei Complementar no 64/1990.

Caso prático João Teixeira Junior

Pretenso candidato, em sede de registro de candidatura ao cargo de deputado estadual, nas eleições gerais de 2022, foi impugnado a partir de ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC) proposta por candidato adversário, com fundamento no art. 1, inciso I, alínea “g” da Lei Complementar no 64/1990.

O óbice estaria consubstanciado no fato do impugnado ter tido desaprovadas as contas de sua gestão nos anos de 2018 e 2019, pela Câmara Municipal, referente ao período em que foi prefeito de Rio Claro (SP), entre 2017 e 2020. Discorre que o impugnado aumentou o déficit orçamentário, deixou de pagar precatórios, aplicou recursos insuficientes na educação e agiu com dolo quando deixou de recolher encargos sociais e previdenciários, o suficiente para configurar conduta grave com danos ao erário.

Na espécie, incide inelegibilidade a afetar o candidato por oito anos, a contar da segunda desaprovação das contas, referente ao exercício de 2019, proferida pela Câmara Municipal de Rio Claro em junho de 2022, ou seja, até junho de 2030.

Houve apresentação de contestação, fundamentando não ter havido conduta voluntária, livre e consciente de lesar o patrimônio público e, portanto, não houve a prática de irregularidade insanável e de ato doloso de improbidade, não preenchendo, desta forma, os requisitos cumulativos do art. 1, inciso I, alínea G da LC no 64/1990.

Afirma ainda a contestação que o Município de Rio Claro possui a expedição de todas as certidões de regularidade previdenciária, demonstrando a intenção de quitar os débitos com os acordos vigentes, bem como ter havido a devida aplicação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), com a construção de cinco escolas e cinco creches, não havendo dolo na conduta do gestor público.

Continua que, com a vigência da Lei Complementar no 184/2021, que incluiu o § 4-A na Lei das Inelegibilidades, foi suspensa a aplicação de sanção de inelegibilidade nos casos de contas julgadas irregulares, sem a imputação de débito e com condenação exclusiva ao pagamento de multa, e por isso requer a improcedência da impugnação, como no caso concreto.

Nesta linha foi proferido o acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo em 5/9/2022, que julgou pelo deferimento do registro de candidatura do pretenso candidato ao cargo de deputado estadual para o pleito de 2022, fundamentando que para a incidência da inelegibilidade da alínea “g” do inciso I do art. 1, da LC no 64/1990, é exigido preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: (i) rejeição das contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas; (ii) decisão do órgão competente que seja irrecorrível no âmbito administrativo; (iii) desaprovação decorrente de (a) irregularidade insanável que configure (b) ato de improbidade administrativa, (c) praticado na modalidade dolosa; (iv) não exaurimento do prazo de oito anos contados da publicação da decisão; e (v) decisão não suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário.

Assim, como também pela alteração legislativa da Lei Complementar no 184/2021, que instituiu que, além dos requisitos previstos na alínea “g”, a inelegibilidade só restará configurada se as contas forem julgadas irregulares com imputação de débito, desde que não haja sanção exclusiva com pagamento de multa.

Portanto, inexistindo determinação quanto ao pagamento de valores, resta afastada a inelegibilidade em questão, nos termos do art. 1o, §4o-A, da LC no 64/1990, além de restar prejudicada a análise dos demais requisitos previstos na alínea “g” do art. 1o, inciso I, da LC no 64/1990.

Houve interposição de recurso ordinário, fundamentando que a despeito de conhecer a gravidade da falha pertinente à falta de recolhimento das obrigações previdenciárias em razão do posicionamento reiteradamente externado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo nos julgamentos das contas de 2015, 2016 e 2017, o impugnado/recorrido tornou a deixar de adimplir tais obrigações no exercício de 2018, situação que acarretou a desaprovação das contas do exercício; as contas do exercício de 2019 foram rejeitadas em decorrência de diversas irregularidades.

Assim, houve o julgamento pelo TSE, em 16/2/2022, com acórdão fundamentando que o Poder Legislativo, ao julgar as contas anuais de chefe do Executivo, limita-se a decidir por sua aprovação, aprovação com ressalvas ou rejeição, não se prevendo a imposição de qualquer tipo de penalidade, de forma que a nova regra do §4-A limita o alcance da inelegibilidade.

Por outro lado, nas hipóteses em que o Tribunal de Contas da União (TCU) tem competência para julgar as contas (art. 71, II, da CF/1988) há previsão constitucional para que se imponha multa e se impute débito (art. 71, VIII e § 3o, da CF/1988) – o que também se aplica ao julgamento pelas demais cortes de contas. 

Relembre-se, antes de prosseguir, que se trata de regra incluída pela LC no 184/2021, aplicada pela primeira vez no pleito de 2022 e que ainda não foi objeto de análise por esta Corte nas perspectivas propostas pelo recorrente, descabendo acolher a alegação de inconstitucionalidade do §4-A da LC no 64/1990.

Nesse contexto, propõe-se à Corte conferir interpretação conforme a Constituição ao § 4o-A do art. 1o da LC no 64/1990, tendo em vista que não se afigura razoável que essa regra seja aplicada de modo absolutamente incompatível com a proteção dos valores da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, especialmente destacados no art. 14, § 9o, da CF/1988, o que ocorreria caso os chefes do Poder Executivo fossem excluídos de forma quase integral da incidência dessa importante causa de inelegibilidade.

Assim, cabe assentar que o § 4o do art. 1o da LC no 64/1990 se aplica apenas às hipóteses em que as contas forem analisadas por tribunais de contas, o que não é o caso dos autos – que versa sobre contas do prefeito julgadas pela Câmara Municipal.

Após afastar a incidência do §4-A, constatou-se que a decisão de rejeição de contas é advinda de falha insanável que configura ato doloso de improbidade, com reiterada falta de recolhimento de encargos sociais ao regime de previdência do município. Impondo reconhecer o dolo específico do gestor na prática dessa irregularidade considerando-se a reiteração e o agravamento das condutas do exercício de 2018 para o de 2019 e, ainda, o fato de não terem sido realizados nem mesmo o pagamento de todas as parcelas vencidas no exercício em relação a dois acordos judiciais de parcelamento com o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) e o parcelamento junto ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Desse modo, deve-se reconhecer a inelegibilidade do recorrido com base no art. 1o, I, g, da LC no 64/1990.

Em continuidade, interposto recurso extraordinário aponta ofensa aos artigos 14, § 9o, e 71, VIII, da Constituição Federal, sob os seguintes fundamentos: i) a questão debatida ultrapassa os interesses subjetivos do processo “diante da afronta da possibilidade de não aplicação da inelegibilidade aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa. Dessa forma, a questão debatida ultrapassa os interesses subjetivos do processo”; ii) “o debate é necessário frente a possibilidade da não aplicação da inelegibilidade em casos que não haja imputação de débito e sancionados exclusivamente com pagamento de multa”; iii) “necessário afastar qualquer resquício de conduta voluntária, livre e consciente de lesar o patrimônio, com relação a questão das apontadas irregularidades quanto aos encargos sociais (RPPS), tanto para o exercício de 2018 quanto para o exercício de 2019, bastando mera consulta do Município de Rio Claro ao site oficial (CADPREV) para se constatar que, desde quando assumiu a gestão, houve completa regularidade previdenciária, discutindo-se efetivamente a questão em juízo, sendo as teses da procuradoria acatadas para fins de expedição das competentes certidões de regularidade previdenciária nos exercícios reclamados”; iv) “apesar de a competência do Poder Legislativo não albergar a imputação de débito e/ou cominação de multa, verifica-se que o Tribunal de Contas possui a referida competência, ainda que em julgamento de contas do Poder Executivo, conforme preceito contido no art. 71 da Carta Magna”; v)“o julgado exclui a competência do Tribunal de Contas a imputação de débito e cominação de muita às contas do Poder Executivo, ainda que julgadas pelo Poder Legislativo, o que ocorreu no presente caso”.

Conclusão

A matéria reveste-se de natureza constitucional e apresenta relevância, tendo em vista o exercício do direito a concorrer a cargos eletivos, prestigiado pela opção legislativa consubstanciada no § 4o-A do art., 1o da LC no 64/1990, e a proteção da probidade e moralidade para o exercício de mandato. Por essa razão, no caso, mostra-se configurada a repercussão geral da controvérsia.

Portanto, em breve o Supremo Tribunal Federal julgará esta causa de grande relevância social, existindo acentuado interesse geral na solução das questões constitucionais discutidas no processo, que transcenda a defesa puramente de interesses subjetivos e particulares.

Notas_______________

1 REsp no 25.092, Relator Ministro Edson Fachin, DJE 28/10/2020.

2 (i) Déficit na execução orçamentária correspondente a R$ 14.607.416,10, o que acarretou elevação do endividamento; (ii) Falta de pagamento de encargos previdenciários, inclusive das contribuições retidas dos servidores municipais; (iii) Falta de pagamento de precatórios; (iv) Ausência de prova da correta destinação dos recursos provenientes do Fundeb em favor da educação básica.